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Sobre deuses e ídolos: Leandro, o duplo imortal do Flamengo

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 13 de julho de 2021

“A imagem dos deuses que a estátua antropomorfa fixa é a imagem dos “imortais”, dos bem-aventurados, dos “sempre jovens”: aqueles que, na pureza de sua existência, são radicalmente estranhos ao declínio, à corrupção e à morte”. (VERNANT, 1990, p. 327)

Se existe um jogador que é um duplo do Flamengo, esse, com toda a certeza é Leandro. De uma geração de ídolos daquele fantástico time de 1981, Leandro foi o único dentre todos que jogou durante toda a sua carreira de atleta somente no Flamengo – nunca vestiu a camisa de nenhum outro clube. Do início, em 1976 (nas categorias de base da Gávea), até o fim de sua trajetória em 1990, Leandro atuou em 417 partidas oficiais com o manto rubro negro. Diante disso, o argumento que esta crônica quer sustentar consiste em dizer que Leandro é o duplo do Flamengo, e em decorrência disso, uma entidade imortal do clube.

Bem, vamos às alegações. A palavra ídolo tem seu fundamento etimológico no termo grego eídolon que nos remete a concepção de “duplo”. Ter um ídolo é se duplicar a partir dele, se “com-fundir”, ter algo dele duplicado em mim ou comigo: ter uma camisa do jogador, um pôster, imitar seu corte de cabelo, ter sua estátua em miniatura, dar o mesmo nome a um filho, dentre outras manifestações ou coisas. Ter um ídolo significa estabelecer uma relação icônica com alguém, pois o ícone é um signo que é determinado por seu objeto por compartilhar características dele. Compartilhar das características do objeto (em nosso caso, o ídolo) significa ter com ele semelhança, ou seja, qualquer coisa que possa substituir algo com o que se pareça.

Mas, para que um jogador passe a assumir a condição de ídolo ele precisa gerar o desejo de ser imitado, de ser uma cópia, um modelo a ser reproduzido. Para possuir tal poder é preciso que sua figura humana de jogador seja consagrada. Isto é, nos rituais “religiosos” do futebol – jogos/partidas – o jogador necessita se tornar uma espécie de “deus”. Com ou sem a bola nos pés cabe a ele, nos jogos, possuir privilégios e a exclusividade de certos poderes. “A vitória consagra o vencedor no sentido pleno do termo. Ela o cinge de auréola com um prestígio sagrado” (VERNANT, 1990, p.326). O personagem humano se revela semelhante aos deuses por sua vitória nos jogos ou por alguma outra consagração. Depois de consagrado os traços ou mesmo um ícone do ídolo passa(m) também a ser(em) figuras interpostas entre o rosto de um deus e o olhar humano – espelho e reflexo… imagem e semelhança.

Leandro se consagrou entidade divina no Flamengo não apenas pelos títulos que conquistou, mas por se reconhecer flamenguista desde criança[1] e em vários momentos confundir sua condição de jogador com a de torcedor. Na volta do Japão em 1981, com o título mundial na bagagem, Leandro se misturou com a torcida no aeroporto do Rio e cantou com ela o hino do clube. Além do Mundial de Clubes de 1981, Leandro também ganhou a Taça Libertadores da América daquele mesmo ano. Somados a estes conquistou quatro Campeonatos Brasileiros (1980, 1982, 1983 e 1987) e cinco cariocas (1978, 1979, 1979-Especial, 1981 e 1986).

Na seleção de todos os tempos do Flamengo, Leandro é escalado como lateral-direito e como zagueiro central. Ambidestro, ele inicia no Flamengo como lateral-esquerdo, depois muda de lado e se consagra como um dos melhores laterais do mundo pelo lado direito. Foi nessa posição que atuou na épica seleção brasileira de 1982, na Copa da Espanha. Entretanto, um problema crônico nos joelhos fez com que Leandro migrasse para a zaga em 1985. Tais problemas nos joelhos foram a causa de sua parada precoce como jogador, ainda em 1990.

José Leandro de Souza Ferreira é natural de Cabo Frio onde reside atualmente cuidando dos negócios de sua pousada (ramo hoteleiro). Ali, em sua cidade natal, na Praça das Águas na Praia do Forte, há uma estátua de bronze de corpo inteiro de Leandro com a bola nos pés. No dia 17 de março de 2019 Leandro completou 60 anos de vida. Em decorrência disso, na Gávea, no dia 23 do mesmo mês, o Flamengo lhe homenageou colocando na sede do clube um monumento com o busto do atleta. Homenagens em vida a ídolos são raras e esse monumento eterniza Leandro como entidade sagrada do Flamengo.

A condição humana de Leandro – ou a de “semideus” do Flamengo – não consente a ele o status de imortalidade, pois somente aos deuses é concebido tal agraciamento. No entanto, as estátuas em sua homenagem o manterão vivo para sempre: elas fazem de Leandro, de fato, um DEUS. Para Marc Augé (2005), o monumento, como a etimologia da palavra o indica[2], quer-se expressão tangível da permanência ou, pelo menos, da duração. Desta forma, o monumento inscreve e materializa a presença do que se foi no tempo e o faz sobreviver. É a instauração da permanência.

Na linha argumentativa de que Leandro é um deus (entidade imortal) do Flamengo, retomamos o conceito de ídolo (eídolon) que significa o fenômeno mitológico do duplo – da existência dupla, por assim dizer. Os deuses gregos, na tentativa de imortalizar seus filhos semideuses[3], criaram a estratégia de produzir seus duplos na dimensão terrena. Deste modo, quando seus filhos morriam, criavam o eídolon deles na tentativa paradoxal de inscrever a ausência na presença (VERNANT, 1990). O eídolon se manifesta em dois planos ao mesmo tempo contrastados: o plano material (eikón[4]) e o plano imaterial (psyché); o primeiro reproduz o segundo mediante operações de mímeses.

A pretensão de fazer com que o corpo inalcançável dos seus filhos mortos não desapareça no além-mundo (do qual fazem parte) fez com que surgisse a necessidade dos deuses de fixá-lo na matéria, de dar-lhes uma forma visível, de dar-lhes um corpo: o eídolon então se fez matéria enquanto ícone (eikón). As estátuas e o busto de Leandro são monumentos que o fixam na matéria, materializam os “monumentais lances” que Leandro, outrora, eternizou em campo: roubadas de bolas espetaculares, cortes precisos em ponteiros e atacantes, assistências para Zico e companhia.

Flamengo 1983
Flamengo de 1983. Foto: Reprodução

Até gols Leandro metia! Que o diga o goleiro Paulo Vitor do Fluminense, que no triangular final do carioca de 1985 sentiu o feitiço da bola no chute de Leandro de fora da área. O Flamengo perdia o jogo por 1 x 0 quando, aos 44 minutos do segundo tempo, o camisa 3 da Gávea acerta um chute fantasmagórico (que habita até hoje os sonhos dos mais afeiçoados flamenguistas) para empatar o jogo.[5] E o gol do segundo jogo da final do brasileiro de 1983 contra o Santos? Inesquecível!!! O Flamengo perdeu a primeira partida no Morumbi por 2 x 1 e precisava vencer por um gol de diferença para levar o jogo para mais 30 minutos de prorrogação e penalidades, ou então vencer por dois ou mais gols e sagrar-se campeão. Porém, Zico, Leandro e Adílio fazem 3 x 0 e “fritam o peixe”[6] naquela tarde no Maracanã diante do maior público já visto em um jogo pelo campeonato brasileiro: 155.523 pagantes.

A psyché – plano imaterial do eídolon – tem associação com as manifestações do duplo através do óneiros (sonhos), phásma (fantasmas/aparições), póthos (personificação do desejo amoroso). A psyché “é semelhante ao ser real a ponto de se confundir com ele; mas conserva a chancela da irrealidade; envolve a ausência na sua presença” (VERNANT, 1991, p.33). Sobre a psyché, enquanto flamenguistas, só temos um desejo a externalizar: que a estátua de Leandro se torne carne e se apresente no Ninho do Urubu para então dizer ao técnico do Fla: “Voltei… Tô pronto pra jogar!”.

 

Notas

[1] A paixão pelo rubro negro carioca Leandro herdou do pai Eliziário. Conta Leandro que em dias de jogo do Flamengo ele deitava na cama com o pai e ambos ouviam pela rádio os jogos na voz do lendário Jorge Curi. Em 1969, na final do carioca o Flamengo estava perdendo de 2 x 1 para o Fluminense. Leandro vendo o semblante entristecido do pai diz-lhe que ia ao banheiro urinar, quando na verdade foi à sala e se ajoelhou em oração, pedindo a Deus que o Flamengo empatasse o jogo. Quando volta ao quarto o jogador Dionísio empata de cabeça para o Flamengo e a partir de então Leandro se torna flamenguista. O Fluminense venceria a final daquele ano por 3 x 2, porém nesse dia Leandro se torna torcedor de um clube que o consagraria como divindade do panteão da Gávea.

[2] Palavra que deriva do latim monumēntum que significa “o que traz à memória”.

[3] Semideuses eram filhos híbridos: filhos de deuses com humanos. Por tal condição, eram mortais.

[4] A primeira manifestação do eídolon material foi o Kolossós que era anicônica em pedra bruta ou madeira – estátua grosseira sem forma humana. Contudo, o Kolossós passa por uma mudança na confluência dos séculos V e VI influenciado pela teoria da mímesis (imitação) elaborada e sistematizada por Platão. O invisível sobrenatural torna-se visível através da imagem imitativa (eikón). “O morto não é mais evocado pela pedra bruta, sem inscrição, mas pela beleza visível de uma forma corporal que a pedra fixa para sempre” (VERNANT, 1990, p. 328). Surge o eikón.

[5] Este jogo aconteceu em 11 de dezembro de 1985 e foi o último gol de Fla x Flu narrado por Jorge Curi que faleceu dias depois acometido por um acidente automobilístico (em 23/12/1985). Exatamente: o mesmo Jorge Curi que narrou o Fla x Flu de 1969 e que fez de Leandro um flamenguista. A exemplo de 1969, o Fluminense em 1985 também se sagrou campeão carioca.

[6] O trocadilho é para fazer menção ao apelido de Leandro: “Peixe frito”.

Referências

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Tradução Michel Serras Pereira. Lisboa: 90 graus, 2005.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos da psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1990.   

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Sobre deuses e ídolos: Leandro, o duplo imortal do Flamengo. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 23, 2021.
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