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Sobre futebol e antropofagia

Guilherme Trucco 7 de agosto de 2019

“Aí vem pulando a nossa comida” – Frase atribuída aos índios tupiniquins, antropófagos, cativos do alemão Hans Staden por volta de 1550. O alemão escapou.

Em 1889, o Brasil deixava de ser império. Iniciava sua república. Cortava o derradeiro cordão umbilical com Portugal. Andava, finalmente, com as próprias pernas. Em Abril de 1895, 6 anos depois, foi realizado o primeiro jogo oficial de futebol em terras brasileiras.

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Entre 1889 e 1940, um curto período de 50 anos, nem uma geração inteira se passava, foi crucial para a formação da identidade do brasileiro, da forma como passamos a nos enxergar como povo, como país.

Os seguintes fatos aconteciam:

Conflitos armados internos: Antônio Conselheiro mostrava o sertão para o resto do país, e provava que o sertanejo era um forte. A revolta da chibata, por meio de João Cândido (o Almirante Negro) apontava um encouraçado da marinha contra a própria capital. Coluna Prestes e revolução constitucionalista percorriam o Brasil adentro. Conflitos contestadores da organização social, do poder, e sua representatividade do povo.

Contexto político econômico: República oligárquica do Café com Leite, e ciclo da borracha na Amazônia. Definições territoriais e de fronteiras nacionais. Construção de ferrovias que começavam a interligar o litoral com o interior rural. A partir de 1930, temos o populismo da era Vargas.

Contexto artístico/intelectual: Gilberto Freyre publica Casa-grande e senzala, primeira obra que se propõe a entender a construção do povo brasileiro. Lima Barreto publica seu nacionalista Triste fim de Policarpo Quaresma. Semana de arte moderna de 1922, com seu movimento antropofágico, questionando o que é ser brasileiro. Mário de Andrade com o herói sem nenhum caráter Macunaíma.

Abaporu, de Tarsila do Amaral. Foto: Wikipedia.

A industrialização e urbanização chega de forma rápida e avassaladora em um país essencialmente voltado para o campo, comandado por uma república conhecida como Café com Leite. O homem do campo, de pequenas populações e vizinhanças, jogado no meio urbano, seria o pilar da construção, anos mais tarde, do “homem cordial” brasileiro, de Sérgio Buarque de Hollanda.

Não sabíamos quem éramos.

Não fazíamos ideia alguma.

Uma mistura sem identidade, sendo atacada por tudo o que vinha de fora, como o próprio futebol bretão.

O futebol era inglês, aristocrático, das elites. Seus praticantes eram os Sportsmen, que visavam a mens sana in corpore sano, o fair play, um esporte rico e distinto. Não se tratava de um prazer, uma festa ou bagunça. Era uma prática edificante de lazer social de alta estima.

Em 1919, o primeiro fato que emaranhou o futebol ao Brasil: Ganhamos a Copa América. Éramos bons em algo. Entretanto, mais que bons, tínhamos um diferencial. Surgia um certo estilo brasileiro de jogar futebol. Deturpava as regras. Era festa, drible, prazer. Éramos bons em fazer festa, em prazer, em ócio. Uma das muitas lendas do surgimento do drible, conta que, neste contexto, em um jogo, quando um branco fazia uma falta, nada acontecia, quando um negro o fazia, era severamente punido. Para continuar no jogo, o negro inventou o drible.

Surge uma polêmica: Amadorismo versus profissionalismo. Até então, os jogadores eram sócios dos clubes que atuavam, e não ganhavam nada para tal. Pelo contrário, pagavam joias e anuidades de sócios. Claro, era uma atividade da aristocracia, diferenciadora. Entretanto, os melhores jogadores começam, sutilmente, a receber para jogar nos clubes. Dinheiro, não raro, vindo do jogo do bicho. A discussão é densa, e passa, claro, fortemente pelo racismo. Mas existe um ponto importante, que não pode passar desapercebido: os melhores jogadores, pobres, criativos, mulatos e negros, estavam recebendo dinheiro, e o “pior” de tudo, não para trabalhar, e sim para se divertir. Uma inversão completa dos valores industriais e positivistas da época. Como diria José Miguel Wisnik, o brasileiro iniciava a traçar uma tecnologia de ponta do ócio. O homo ludens.

Eis que surge Leônidas da Silva.

Detalhe do painel que trata de apelido de jogadores de futebol, no Museu do Futebol de São Paulo. Fonte: wikipédia

Em 1938, o Brasil fica em terceiro colocado no mundial, e Leônidas é artilheiro da Copa. Talvez o primeiro a ser amplamente acusado de “mercenário” ao trocar de clubes por salários maiores. Ídolo do Flamengo à época da Copa. O Flamengo estava há anos sem ganhar títulos, ainda assim, Leônidas era ídolo incontestável. Por que transformou o time numa máquina de vitórias? Não, não se trata disso. Pelo contrário. Apenas porque jogava como jogava. Inventou a bicicleta, uma subversão cheia de fantasia do chute no ar.

O futebol passou a ser algo tangível, palpável, que unificava o país. Trazia uma imagem clara. Um povo criativo, misturado, capaz de encantar o mundo com sua forma de viver cheia de prazer. Soa clichê e é. Uma generalização sem tamanho nos dias de hoje. Mas não se enganem, essa foi, sim, a primeira imagem que o país teve de si mesmo. E é até hoje a imagem que o mundo tem de nós. Verdadeira ou não, o futebol foi o pilar desta construção imagética do Brasil. Isto não é nenhum exagero.

Em 1939, a Lacta, utilizando-se da fama de Leônidas, pagou ao jogador cerca de 3 mil réis para estampar o nome Diamante Negro (seu apelido) em uma linha e chocolates. O chocolate foi um sucesso nacional, e existe até os dias de hoje. Em tempos de movimento antropofágico, o Brasil inteiro comeu seu maior jogador de futebol da época. E gostou. Fato similar aconteceria anos depois com a marca Café Pelé. O futebol brasileiro deglutiu aquele esporte inglês aristocrático, digeriu, e se transformou em produto de exportação genuinamente tupiniquim.

Como pode existir um esporte, ou qualquer atividade, em que um país subdesenvolvido seja melhor do que as potências mundiais? Uma atividade em que o poderoso Estados Unidos da América não apita nada. Trata-se de um jogo que subverte as regras da ética protestante e o espírito do capitalismo, como talvez observasse Max Weber. Um jogo no qual é possível empatar: Não existem metas e métricas objetivas, é possível errar, perder, e ainda assim, sair aplaudido, como em 82.

Os anos 80 e 90 foram, aliás, outra importante virada nesse emaranhado entre futebol e país. De significativa simbologia é a Copa União de 1987, na qual a Coca-Cola, símbolo máximo do capitalismo, adentrou os campos, patrocinando 10 dos 13 times do campeonato nacional. Chega a ser hilário o fato de este campeonato ser tão marcante na história do futebol brasileiro, com a sua famosa “taça das bolinhas” sendo disputada juridicamente até hoje.

Taça das bolinhas. Foto: Wikipedia.

Infelizmente, a espetacularização e a comoditização do jogo fizeram com que sua essência e inicial representatividade brasileira fosse, pouco a pouco, solapada. O mesmo profissionalismo que possibilitou a entrada de todas as classes sociais no jogo, levado ao seu limite, deturpou a sua essência hedonista.

Entretanto, o futebol continua, cinicamente, a ser representativo e espelho para a sociedade brasileira. Em curta retrospectiva, a Copa de 2014, e os 7 x 1 para o pragmático futebol alemão, seguidos de um conturbado processo de impeachment já começam a fazer algum sentido.

A Copa de 2022 se aproxima. Ano importante. 200 anos da independência do Brasil. 100 anos do movimento antropofágico e a semana de arte moderna. 70 anos do primeiro título mundial brasileiro. 40 anos da tragédia de Sarriá. 20 anos do nosso último título mundial. Eleições presidenciais. Será que o nosso escrete e os deuses do futebol serão capazes de nos surpreender novamente, e realizarmos uma nova antropofagia de nós mesmos?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Guilherme Trucco

Escangalho a porosidade das palavras. Rabisco um Realismo de Encantaria e futebol. Filho de Xangô e Iemanjá.

Como citar

TRUCCO, Guilherme. Sobre futebol e antropofagia. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 7, 2019.
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