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Sobre literatura e futebol: Mário Filho

Leda Costa 6 de março de 2013

Há tantos assuntos sendo comentados no momento: a faixa da torcida do Náutico que foi proibida pelo árbitro, o caso Adriano, as porcentagens dos matemáticos em relação aos times que podem ser campeões e os que podem ser rebaixados, as polêmicas a respeito da convocação de Kaká para a seleção e as dúvidas acerca do futuro da seleção etc, etc.

Prefiro compartilhar algumas indagações e descobertas a respeito daquele que está no centro da história do jornalismo esportivo: Mário Filho. Tenho pesquisado os jornais A Manhã e Crítica, nos quais Mário trabalhou. Estava analisando o modo de produção das notícias esportivas especialmente a respeito da participação da seleção na Copa de 1930.

É deliciosa a cobertura que Crítica faz da Copa de 1930. Cobertura humorada, excessiva e que tentava conferir a Copa e a Seleção uma dimensão especial não muito comum na época. A viagem de navio feita pela seleção rumo ao Uruguai foi narrada quase como um romance folhetim, cheia de personagens pitorescos como, por exemplo, “o homem que aboliu o hábito de sentar para não machucar o terno” (Crítica, 06/07/1930). Esse homem era o jogador Fernando do Fluminense que se recusava a sentar porque, segundo o repórter, temia amassar um terno cintilante e recém-comprado.

Seleção Brasileira de 1930. Foto: Autor desconhecido.

Trata-se de um tipo de abordagem bastante diferente da cobertura feita pelos jornais considerados mais tradicionais da época, muito cerimoniosos e lacônicos em relação à Copa de 1930. A cobertura de Crítica já contava com a influência de Mário Filho (que dialogava frontalmente com a linha editorial popular de Crítica) imprimindo às notícias características fabulatórias, uma técnica que acompanhará sua carreira de jornalista e, sobretudo, a de escritor de livros.

Sempre que investigo Mário Filho me lembro de O Negro no Futebol e do momento no qual o autor defende a veracidade de seu texto, afirmando que tudo que relatava não era fruto da imaginação, mas sim de fatos fidedignamente comprovados. Essa defesa se justificava em grande medida porque O Negro no Futebol era um projeto que objetivava preservar a memória do futebol brasileiro. Um projeto no qual Mário Filho não desejava ser confundido com um romancista.

Perceber Mário Filho como um romancista era um risco um tanto compreensível, dada a qualidade de seu texto e a sua tendência de privilegiar um tipo de narrativa capaz de despertar a imaginação do leitor.

Mas poucos conhecem o lado de fato ficcional de Mário Filho. No final da década de 1920, Mário publicou dois livros: Bonecas e Senhorita 1950. O primeiro foi impresso, ao que parece, na gráfica do jornal de seu pai, sendo vendido nos jornaleiros da cidade. Em várias edições de A Manhã, em 1927, publicou-se um anúncio que dizia: “Peça ao seu jornaleiro BONECAS novela de Mario Rodrigues Filho. O MAIOR SUCESSO LITERÁRIO DO ANNO” (07/01/1927). Já Senhorita 1950 foi vendido nas livrarias e na redação de A Manhã.

Mas além dessas produções, em 1927, Mário publicou periodicamente contos e poemas no jornal A Manhã. E o que se pode depreender da análise dessa breve produção literária é a pouca qualidade da escrita de Mário Filho. A maioria de suas histórias, publicadas nessa época, se reduzem a um universo romântico banal que beira o erótico e que em diversos momentos transmite uma visão de mundo soturna. Não sem motivos, o tema da noite, seus mistérios e sombras percorre grande parte dos escritos ficcionais de Mário. A noite geralmente serve de cenário de amores sem limites, mas que geralmente eram cercados de empecilhos e tristeza, como fica claro no poema “Saudade”:

“Noite triste: noite de bruma – longa e triste

(…)

Dentro da noite: dentro da noite ouve-se um rumor de água; tão somente – tão somente rumor de água…

Dentro da noite: porque em meu íntimo, amada minha, há somente, tão somente um rumor de voz, o rumor da tua voz.

Chove porque aqui; aqui tudo chora a tua ausência. E meus olhos estão secos; não sei chorar.

Faz-se noite. Noite triste; noite de bruma longa e triste – sem uma estrela; sem uma estrela e sem céu…” (A Manhã. Espírito Moderno. 27/03/1927)

Essa literatura mostra-se antiquada para uma época de importante renovação artística no país, especialmente por conta do Modernismo. Antiquada e a partir da qual Mário demonstra pouquíssima habilidade na criação de enredos e de narrativas bem construídas e literariamente relevantes. Destaca-se nessas tentativas, o fato de que essas histórias geralmente vinham acompanhadas dos belos desenhos do irmão de Mário, Roberto Rodrigues, ou do ilustrador Guevara. Destaca-se também o fato de que essas histórias publicadas no início do 1º semestre de 1927 vinham em um caderno denominado “Arte e Cultura” que compunha o jornal aos domingos e que posteriormente foi rebatizado de “Espírito Moderno”. Naquele suplemento de uma única página publicavam-se contos, poemas e outras formas literárias de autores conhecidos ou não (Augusto dos Anjos chegou a publicar um poema seu). E quase sempre era possível ler algo de Mário Filho.

Lendo essas histórias de Mário, dificilmente poderíamos imaginar que ele se transformaria em um importante personagem do jornalismo esportivo. Sua ambição parecia ser a literatura de cunho ficcional.

Mas Mário teve bom senso crítico ou talvez alguns de seus amigos literatos o tivessem aconselhado a mudar de ramo. O que sabemos é que Mário deixou de lado aquele tipo de ficção e rumou para os esportes.

Pôster da Copa de 1930, no Uruguai. Foto: Wikipédia.

E o interessante é que foi por intermédio dos esportes – especialmente o futebol – que Mário pode realizar-se enquanto escritor, dono de uma refinada técnica de contar histórias. Foi com o futebol que Mário pode se construir como um grande narrador que mistura fato e imaginação. Dessa mistura nutriu-se seu estilo de jornalismo esportivo, assim como a escrita de seus livros sobre futebol, incluindo O Negro no futebol.

Pois como disse seu grande amigo José Lins do Rego na introdução de Copa Rio Branco, 1932, o primeiro livro de Mário sobre futebol: “A Copa Rio Branco teve a sorte de encontrar um historiador que é um romancista. E é nesta aliança do fato com a imaginação que está a grande história que sobrevive (Grifos meus, 1932, p.8).

Quando se fala na relação entre futebol e literatura, geralmente se costuma afirmar que a Literatura Brasileira pouco produziu sobre esse tema, especialmente o futebol. Não é bem assim. Temos os livros de Mário Filho, um narrador do futebol ainda não alcançado especialmente em termos de produtividade.

Bicicleta de Leônidas da Silva. Foto: Autor desconhecido.

Seria um problema afirmar a relação entre Mário e literatura?

Creio que não, sobretudo se alargarmos a compreensão a respeito do termo, não fazendo dele um sinônimo de mentira.

A literatura em Mário se faz presente na sua capacidade de fazer com que jogadores e jogos se cravassem em nossa memória: Jaguaré que rodava a bola na ponta do dedo, Domingos da Guia, Leônidas da Silva e tantos outros que não foram apenas retratados, mas convertidos em personagens. Um tipo de conversão que Mário deixou de herança para grande parte do jornalismo esportivo no Brasil.

A literatura, portanto nunca deixou de acompanhar Mário Filho. Esteve presente em seus livros, nas suas páginas esportivas e na sua capacidade de perpetuar o futebol para além das quatro linhas do gramado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leda Maria Costa

Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social (UERJ) - Pesquisadora do LEME - Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte -

Como citar

COSTA, Leda. Sobre literatura e futebol: Mário Filho. Ludopédio, São Paulo, v. 45, n. 2, 2013.
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