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Sobre o capital futeboleiro e a favor da fundamentação dos discursos jornalísticos

Hugo Lovisolo 23 de março de 2012

O trânsito crescente carregado do Rio me obriga a aguardar pacientemente nesse nó que é Praça da Bandeira. Ligo o rádio na frequência da CBN. No programa “Quatro em campo”, os colegas jornalistas discutem a transferência do Ganso para o time do Porto. Expressam a opinião de que ele está ansioso por jogar na Europa e também de que vale mais do que está sendo ofertado pelo “comprador”. Um dos jornalistas disse que, pelo menos, valeria um “zero a mais” do oferecido. Creio que não entendi bem, pois, um zero a mais significa multiplicar por 10. Ou seja, se estavam sendo oferecidos 9 milhões, da moeda que se quiser, significa passar para noventa. Creio que devo ter escutado mal, embora estivesse com janelas fechadas e o ar ligado. Meu problema geral, contudo, é como se chega ao valor de transferência de um jogador.

As conversas e discussões sobre o valor dos jogadores refletem assombro, satisfação e revolta. Assombro-me quando o interlocutor se pergunta: como uma vida útil relativamente curta e sujeita a percalços de todo tipo pode implicar investimentos tão altos. Isto é, como se chega ao preço? É difícil ampliar sem mudanças a lógica do mercado sem grandes transformações, do tomate às ações, para dar conta, como se diz agora, da “precificação”. Eu partilho do assombro. A segunda posição expressa uma grande satisfação, sobretudo, quando o valor pactuado pode ser incluído no recorde internacional. A terceira atitude é de revolta, pois, a venda para o exterior é vista como “descapitalização” da qualidade do jogo praticada no Brasil. Se o leitor visualiza outra atitude significativa além do assombro, satisfação e revolta, por favor, entre “de cheio” nos comentários.

Ganso fala durante a coletiva, Copa América de 2011. Foto: Mowa Press.

Na terça-feira (07-02-2012) assisto ao programa “Entre aspas” (SPORTV) que pego já começado. Os três participantes estão dizendo que o valor dos jogadores dos times do Brasil, digamos dos que cotizam na bolsa fictícia ou imaginária das negociações, é de 1 bilhão. Comparam o valor com o da Argentina que seria de 0,4 e no do México de 0,5. Um dos jornalistas manifesta o temor de que estejamos em uma bolha e agrega que o valor de Neymar seria de 120 milhões, isto é, 12% do total do capital em jogadores. Isto indicaria uma concentração considerável na distribuição dos valores. Imaginemos que um brasileiro tivesse 12% do capital nacional. Isto seria bom? Ela seria boa? Mais ainda, seu valor é pelo futebol que joga ou por ser uma pessoa midiática que partilha e expressa o sentimento brasileiro da alegria, juventude, improvisação e criatividade? Um dos jornalistas realizando uma comparação que não explicita, transmite que a situação do México implica maior desvalorização do capital futeboleiro que no caso argentino. O tema econômico está em pauta, porém, faltam esclarecimentos e apreciações fundamentadas.

Surgem dois problemas: a) como se calcula o valor dos jogadores e b) quais os indicadores para serem feitas as comparações de capitalização no futebol entre países.

Após os programas, continua sendo um mistério para mim sobre como se realiza cálculo do valor de cada jogador. Converso com meu filho, Hugo Jacob, futeboleiro fanático e competente homem do mundo das finanças. Ele sugere que o valor talvez seja calculado a partir das cláusulas de multa contratual. Ou seja, Neymar pode ter assinado que se não cumprir com seu contrato, de cinco ou seis anos, por exemplo, a quebra implicará pagar a multa. A multa implica pressão para que Neymar não desista do Santos e se transfira para outro clube. Estabelece, portanto, uma coação.

Neymar comemora seu gol contra o Equador pela Copa América de 2011. Foto: Mowa Press.

É sabido que as multas contratuais podem, e quase sempre devem, ser negociadas para que se efetivem. A multa é uma dívida e os credores das empresas de praxe a negociam mediante reduções de prazos. Na própria justiça de trabalho são negociadas as dívidas patronais e, hoje, até o FGTS não depositado se paga dessa forma.

Suponhamos, coisa que espero que jamais ocorra, que Neymar fique “doentinho” por um ano. Lá se vai o alto valor da multa por falta de interessados em seu pagamento. Mais ainda, qualquer jogador, Teymar, por exemplo, pode cair em rendimento de forma voluntária ou involuntária ou ficar lesionado, de forma intencional ou não intencional, certamente o valor da multa cairá. Zeymar, por outro lado, com multa de 5 milhões começa a jogar “barbaridade”. A multa pode ficar pequena, muito pequena e ai vão as negociações e as propostas de novo contrato. Caso contrário, Zeymar pode arranjar um time que pague alegremente a multa.

Tenho a impressão que depende da forma do cálculo o grau de “ficção” do valor dos atletas do futebol. A “ficção” parece ser uma estimativa e sabemos que as estimativas são apenas isso, estimativas. Nossa Presidenta estimou e prometeu fazer 6.000 creches com entusiasmo e sinceridade. Uma mulher Presidenta deve entender e sentir o valor das creches para as crianças e suas mães. Os jornais informam que a promessa ou estimativa não saiu do papel e, como na famosa anedota sobre de Garrincha, parece que ela esqueceu de combinar com os zagueiros, isto é, com as prefeituras ou, melhor ainda, estimou que elas entrassem de cheio na sua generosa e necessária proposta. A estimativa, entretanto, não andou.

Presidenta Dilma Rousseff em discurso. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil.

Creio que a análise sobre como são feitas as estimativas do valor dos jogadores e o grau de seu desvio, para cima ou para baixo, daria lugar a um excelente trabalho de economia aplicada.

O segundo problema: significado do capital de 1 bilhão. O Itaú-UNIBANCO teve recorde de lucro, quase 15 bilhões (O Globo, 08/02/2012). O capital em futebol parece pequeno com a magnitude desses lucros. Outra comparação, o Brasil tem um déficit de 1,5 bilhões no intercambio com México na rubrica automotriz e nosso país parece incomodado, pois, como todos, pretende que o saldo seja em nosso favor. Todos os países gostariam de ter saldo comercial positivo, porém, para que isso ocorra, outros deverão ter considerável saldo negativo. Parece que Brasil se irrita quando a Argentina “chicanea” para reduzir suas importações verde amarelas. Entretanto, o governo aumenta o IPI da China para defender ramos da indústria nacional (automotriz e têxtil, como exemplos). O jornalismo econômico acompanha a balança comercial brasileira de modo privilegiado e certa ansiedade se manifesta quando as importações crescem a ritmo mais acelerado que as importações.

Seria interessante visualizarmos a curva do saldo entre exportações e importações de jogadores nos últimos 30 anos, por exemplo. Enfatizo o ponto: quando comparamos com o lucro de Itaú ou com saldo negativo no comércio com México de automóveis parece que 1 bilhão é pouca coisa.

Vejamos a comparação entre países, no caso, Brasil 1 bilhão e Argentina 0,4. O Brasil tem quatro vezes e meia a população de Argentina, então, se o capital no futebol fosse proporcional à população, deveria ter um capital futeboleiro de 1,8 bilhão. Estamos distante disso.

Alguém poderia computar as importações de jogadores argentinos pelo Brasil e suas exportações para o país irmão. Eu não tenho dados numéricos válidos, mas tenho a impressão de espectador que os argentinos exportam mais para nós que a recíproca. E, mais ainda, mandam jogadores que se tornam ídolos das torcidas brasileiras apesar das “inimizades” com os irmãos. Agora penso que o nome de fantasia de Zeymar, que usei acima, talvez seja a história real de Conca. Como é sabido, ele foi para China após jogar “barbaridade” no Brasil.

Conca segura a camisa do Fluminense. Foto: Dhavid Normando/Photocamera.

Ou seja, dependendo das comparações podemos pensar que o capital futeboleiro é significativo ou que é conversa para gringo ver e, em segundo lugar, poderíamos minorar o sentimento de “grandeza” do futebol nacional.

Creio que chegou a hora de produzir e difundir os dados econômicos que podem gerar apreciações fundamentadas sobre a dinâmica de nosso futebol como negócio. O jornalismo deveria contribuir com essa tarefa e entender que não se trata de repetir dados, que a tarefa é analisar como foram produzidos (análise crítica da elaboração) e qual seu significado (mediante comparações que nos ajudem a pensar).

Tenho a impressão de que os alunos de jornalismo não estão muito predispostos a estudar metodologia de pesquisa, estatística e economia. Creio que há uma rejeição não refletida sobre as disciplinas com base ou aporte substancial da matemática, da lógica e da teoria da argumentação. Se esse for o caso, os diplomados pelos cursos de comunicação perderão importância no mercado e, ainda, no campo do reconhecimento social e legal.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

LOVISOLO, Hugo. Sobre o capital futeboleiro e a favor da fundamentação dos discursos jornalísticos. Ludopédio, São Paulo, v. 33, n. 7, 2012.
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