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Sobre o futebol e outras coisas

Jorge Arbage 20 de abril de 2020

Sobre a guerra

Rinus Michels, o lendário criador do ‘Carrossel Holandês’, disse certa vez que o futebol é uma guerra. Honduras e El Salvador que o digam: em 1969 os dois países entraram em um conflito armado de cinco dias desencadeado por uma partida de futebol – 100 horas nas quais o futebol foi guerra de fato. Cinco anos depois, voltaria e ser casus belli entre nações que disputavam um triunfo em terreno neutro. Pela semifinal da Copa da Alemanha de 1974, Brasil e Holanda disputaram uma partida que por milagre, não resultou em mortos ou feridos. Isso não quer dizer que orgulhos e carreiras não tenham sofrido os efeitos colaterais da batalha. Vejamos só Luís Pereira, zagueiro que não aceitou bem a humilhação de ver seu país (tricampeão do mundo!) cair do pedestal diante de um novato do futebol. Após ser expulso, deixou os gramados fazendo o número três com os dedos, apontando-os como uma arma contra a torcida holandesa. Balas de festim, apenas.

O futebol é, acima de tudo, uma guerra simbólica. Classe, raça, nação, tudo se mistura em 90 minutos. Mas eis o paradoxo: ao tornar-se simbólico, deixa de ser guerra: passa, então, a ser sonho e objeto de memória.

Sobre o sonho

Diego Armando Maradona era seu nome. Nas palavras de Eduardo Galeano, “o mais humano dos deuses”. Errante, vaidoso, polemico. Não faltavam adjetivos – bons ou ruins – para descreve-lo. Mas o gigante argentino de 1,65 fez história. “Um pouco com cabeça de Maradona e y otro poco con la Mano de Dios”, ele diria. Até onde as fontes nos informam, nenhum morto saiu de seu túmulo, tampouco os mapas mudaram os nomes de Falklands para Malvinas; entretanto, não houve um argentino sequer que não tenha vibrado nos quatro espetaculares minutos em que o camisa 10 fez dois dos mais memoráveis gols da história humana. Não bastava agradecer aos céus pela cegueira do árbitro. Era preciso agradecer ao sonho da vitória, finalmente realizado. Quatro anos após acabar, a Guerra finalmente chegava ao fim. E o vencedor foi a Argentina, liderada não por um general, mas por um deus. Aliás, o mais humano deles.

Não é somente futebol. Foto: Guillaume de Germain/Unsplash.

Sobre a morte e o silêncio

Para alguns, o jogo é questão de vida ou morte. Literalmente.

Na Copa de 1994, Andrés Escobar, zagueiro colombiano, fez um gol contra sua própria equipe em jogo contra os Estados Unidos. Derrotada novamente, a Colômbia estava fora da Copa. Apenas cinco dias depois de retornar a seu país, o jogador foi assassinado com seis tiros. Ao que tudo indica, um gol contra e uma eliminação precoce não estavam nos planos das casas de apostas colombianas, controladas, é claro, pelos cartéis. Alguém precisava pagar o preço da decepção.

Também foi questão de morte (e somente de morte) para os argentinos presos na ESMA, a Escola Superior de Mecânica da Armada. Ao todo, mais de 5 mil prisioneiros morreram no local nos cinco anos da infame ditadura. Em junho de 1978, os militares descobriram um novo método de tortura: colocar os prisioneiros em carros blindados e levá-los para um ‘passeio’ no quarteirão. A ESMA ficava a somente 400 metros do Monumental de Nuñez, palco da final entre Argentina e Holanda. Todas as ruas do bairro estavam tomadas pelo público eufórico que celebrava o título inédito. Os prisioneiros, famintos, machucados, observavam a festa pela minúscula abertura da janela. “Viram, só?”, perguntavam os carrascos, “ninguém se importa com o sofrimento de vocês”.

Sobre a perda

Um velho e milenar ditado inglês diz: “O futebol é um esporte simples: 22 homens perseguem uma bola por 90 minutos e no final os alemães sempre vencem”. Enquanto a bola rolava em Turim pela semifinal da Copa da Itália de 1990, nem alemães e nem ingleses sabiam se o ditado se faria verdadeiro. Do lado inglês, havia um garoto-problema chamado Paul Gascoigne, apelidado carinhosamente de ‘Gazza’. Aquela fora sua copa, todos diziam. De repente, ele se viu como o principal nome do elenco que levava seu país a uma semifinal de copa pela primeira vez em 24 anos. Gazza: o maior herói inglês desde Churchill.

Mas aos nove minutos da prorrogação, o sonho chegou ao fim. Gazza cometeu uma falta violenta e foi advertido com um cartão amarelo. Devido à punição, ele estava suspenso e, caso a Inglaterra fosse à final, não a jogaria. Um cartão amarelo, um evento banal em um jogo de futebol que, no entanto, entrou para a história quando o mundo inteiro viu o rosto de Gascoigne se contorcer, seus olhos se encherem de lágrimas, os dentes apertando os lábios enquanto a bola rolava. O empate persistia, o jogo sequer havia terminado e ele chorava sem parar. No final o futebol foi realmente um esporte simples e os alemães (como sempre) ganharam. Mas o choro de Paul Gascoigne por saber que não iria jogar uma final que não era sequer garantida foi de longe, muito longe, a mais bela de cena de toda a Copa da Itália. Talvez, de todas as copas. Porque o futebol é assim: é sobre andar na linha tênue onde os sonhos são conquistados ou perdidos. É sobre ganhar e perder. E, como na vida, ninguém sai ileso. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Jorge Arbage

História (USP) e Relações Intencionais (PUC-SP). Nascido em Belém do Pará e torcedor do Paysandu Sport Club.

Como citar

ARBAGE, Jorge. Sobre o futebol e outras coisas. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 28, 2020.
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