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Sobre viver e torcer longe de casa

Se eu disser que cresci dentro de um estádio de futebol estarei mentindo. Atleticana, nasci em 1987, filha de uma mãe cruzeirense não-praticante e de um pai atleticano, porém calejado de ver bons times do Galo ficarem no quase, decepções essas que, verdade ou não, eram usadas como argumento para assistir os jogos na TV. Meu pai, assim, fez o suficiente pra que eu adotasse a identidade alvi-negra, mas pouco me levava a campo.

Se a prática de ir ao estádio só foi possível a partir da juventude, desde cedo fui construindo meu gosto por ver jogos em grupo, entre tios e primas, depois também entre amigos e amigas ou até entre desconhecidos. Ainda hoje, quando ir a campo não é viável pelo motivo que for, estar entre atleticanos é uma alternativa suficientemente prazerosa.

Apesar de presar por essa prática de me reunir com outras pessoas para assistir ao Galo, nunca tinha prestado muita atenção na importância que esse ritual tinha pra mim. Até perde-lo.

Eu, que sempre vivi em Belo Horizonte, me mudei para Porto Alegre em julho de 2014. Uma das primeiras providências que tomei ao chegar foi procurar uma comunidade no Facebook que reunisse atleticanos. Encontrei uma comunidade fechada com um número relativamente pequeno de integrantes e com a última postagem bastante antiga. Ainda assim esperançosa, enviei uma mensagem para a administradora do grupo perguntando sobre locais onde assistiam os jogos. A resposta demorou, veio meses depois, e afirmava que o grupo não se reunia em nenhum local, mantendo apenas uma comunicação via whatsapp, a qual não fui convidada a ingressar.

Não bastasse ter que aceitar torcer sozinha, o Galo vivia um momento vitorioso e emocionante. Não ter com quem compartilhar aflições e alegrias era especialmente triste. Foi na sala de casa, geralmente sozinha, onde assisti toda Copa do Brasil daquele ano, na qual o Galo chegou ao título passando por Palmeiras, Corinthians, Flamengo e Cruzeiro, numa saga épica. No dia seguinte a cada um desses jogos chegava ao trabalho ansiosa para comentar com alguém, mas ninguém dava muita bola. Muitos não sabiam nem do resultado, os mais antenados tinham visto os gols ou, quando muito, os melhores momentos. Até hoje, ninguém sabe o que é a “quarta-feira do Goulart”[1]. E o pior, ninguém se importava! Por vezes elogiavam o espírito daquele time que acreditava até o último minuto, davam parabéns, mas efetivamente não estavam comemorando ou lamentando. Literalmente, não se importavam.

Torcida do Atlético, em jogo válido pela final da Copa do Brasil contra o
Cruzeiro, no Estádio Independência, dia 12 de novembro de 2014.
Foto: Bruno Cantini / Clube Atlético Mineiro.

No dia em que conquistamos o título pendurei a bandeira do Galo e espalhei cartazes com o escudo do time e dizeres como “Aqui é galo” por toda a sala em que trabalho, um espaço compartilhado por aproximadamente vinte pessoas. Acharam engraçado, mas o dia seguiu como qualquer outro. Estava entre gremistas e colorado, meu gesto não ofendia absolutamente ninguém.

A inocuidade daquele gesto foi apenas mais uma evidência da polarização entre Grêmio e Inter que se vivencia na cidade de Porto Alegre, e possivelmente no restante do estado. Não importava que o título obtido tinha abrangência nacional e envolveu, em fases anteriores, as duas equipes gaúchas. A vitória atleticana não os feria diretamente. Nesse sentido, minha suposta tomada de posse do terreno alheio não teve sentido algum para aqueles que estavam a se preocupar apenas para o grande rival. As jocosidades, tão presentes nas interações sociais mediadas pelo futebol, não são aleatórias. No meu caso, o Atlético não fazia parte daquele circuito, ocupado quase exclusivamente pela dupla Grenal, talvez aceitando esporadicamente a presença de algum outro clube gaúcho.

Assim, ao estar longe de casa, eu não tinha perdido apenas meus/minhas companheirxs de jogo, tinha – ao menos presencialmente – perdido a comunidade na qual minhas emoções futebolísticas circulavam.

2015 seguiu de forma similar ao ano anterior. O Galo indo bem ou indo mal, no dia seguinte não havia “resenha” nem zoação.

Cheguei a ir, também sozinha, aos jogos do Atlético em Porto Alegre. Assisti até a alguns jogos de categorias de base, hábito que não tinha em BH. Me mostrei bastante pé frio, inclusive, assistindo meu time perder todas as pelejas a que assisti. Esses poucos eventos, contudo, eram insuficientes para suprir o desejo de viver meu pertencimento clubístico.

Essa, todavia, não é uma história triste de uma torcedora solitária, mas um relato até meio meloso do reconhecimento da importância da sociabilidade que o futebol me proporciona, sobretudo agora que estou emigrada. Por aqui, essa sociabilidade começou quando conheci outros torcedorxs solitários como eu.

Jogadores do Atlético Mineiro comemoram a conquista da Copa
do Brasil de 2014 sobre o rival Cruzeiro. Foto: Bruno Cantini/Clube
Atlético Mineiro.

Num dia qualquer de meados de 2015 eu vinha caminhando nas redondezas do meu bairro com a camisa do Galo, quando ouvi um grito de “GALO!”. Acenei sem dar muita importância e segui meu rumo. Algum tempo depois, fazendo compras na Feira uma menina me interpela “Eu te conheço. Eu mexi com você um dia porque você estava com a camisa do Atlético”. Coincidência ou não, debaixo do casaco que eu usava estava a mesma camisa. Ficamos um tempo, eu, ela e o marido, batendo papo. Eles eram mineiros e atleticanos que há mais de dez anos viviam por aqui. Nos adicionamos no facebook.

Éramos vizinhos de bairro e vez ou outra cruzávamos o caminho uns dos outros. Numa dessas, já em 2016, o rapaz me disse que um grupo de atleticanos estava se organizando para assistir jogos juntos e que iria me adicionar ao grupo de whatsapp criado.

A primeira convocação do grupo inicialmente nomeado como “Galo RS” foi para o jogo entre Galo e Melgar, no dia 17 de fevereiro, nossa estreia na Libertadores. Algo em torno de dez pessoas compareceram, o que foi suficiente para animar os demais. Hoje, mesmo em partidas vistas como pouco importantes ou interessantes, há representantes no bar que elegemos como nosso.

Demos muita sorte! Somos um grupo relativamente heterogêneo, que talvez não se tornasse um grupo sobre outras circunstâncias, mas a distância de casa e o amor pelo galo foi suficiente pra que nos tornássemos praticamente – e rapidamente – uma família. De maneira geral, estávamos interessados em conhecer uns aos outros e dispostos a ignorar certas diferenças que pudessem existir.

Encontramos também um bar ideal para nos receber. Um lugar agradável, com cerveja gelada a um preço honesto e, sobretudo, com um gerente gente boa e disposto a abrir as portas do bar mesmo nos domingos às 11h.

De lá pra cá fomos renomeados como “Trilegalo” e nos tornamos um Consulado do Atlético. Em nosso “QG”, já tivemos algumas vezes a presença de viajantes que queriam um lugar para assistir o Galo e nos encontraram na internet. Recentemente, também, dez de nós viajamos até Florianópolis para assistir o jogo contra o Figueirense, onde nos reunimos com os Consulados de Coritiba (Galotiba) e Joinville (Galoville), além de, nas arquibancadas, conhecermos grupos de torcedores da própria Florianópolis e de Camburiú. Para além das reuniões nas partidas do Atlético, também já realizamos quatro encontros/festas na casa de integrantes da torcida, certamente determinantes para fortalecer a união do grupo e a constituição de amizades que excedem o contexto do futebol.

Se não é novidade que o futebol se constitui como um fenômeno que media muitos modos de sociabilidade e em contextos bastante diversos, é interessante perceber as nuances que se dão em contextos como os da Trilegalo, sobretudo a partir da sobreposição entre o pertencimento clubístico e regional. E para além de qualquer reflexão acadêmica que essa experiência me traga, é muito bom ter um lugar em que eu possa me sentir em casa.


[1] Na partida anterior à final da Copa do Brasil, o Cruzeiro sagrou-se campeão do Campeonato Brasileiro. Em meio à comemoração, a uma repórter de uma emissora de televisão, o jogador Ricardo Goulart fez a afirmação “Quarta-feira tem mais”, mostrando sua crença na vitória sobre o Atlético, que não aconteceu. A afirmação ainda hoje rende piadas por parte de atleticanos.

Disponível em <Youtube>. Acesso em 11 de julho de 2016.

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Luiza Aguiar dos Anjos

Atleticana, boleira, professora e pesquisadora. Interessada principalmente nas existências invisibilizadas nas arquibancadas e campos.

Como citar

ANJOS, Luiza Aguiar dos. Sobre viver e torcer longe de casa. Ludopédio, São Paulo, v. 87, n. 5, 2016.
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