.20

Muito além da arquibancada: sociabilidade feminina na Gaviões da Fiel

Nesse texto irei debater de maneira rápida a inserção feminina nas arquibancadas, principalmente, dentro das torcidas organizadas de futebol, essa estrutura densa e complexa presente nas arquibancadas de todo Brasil. Para mapear quais são as dificuldades e as possibilidades encontradas pelas mulheres na construção e participação dentro das torcidas organizadas, utilizo como estudo de caso o Grêmio Recreativo e Escola de Samba Gaviões da Fiel Torcida. Os relatos aqui expostos fazem parte de algumas entrevistas que venho realizando em minha pesquisa de mestrado.

Aqui, abro um pequeno parênteses para destacar a escolha do estudo de caso ser feito especificamente com a torcida Gaviões da Fiel. Essa escolha não vem do fato de eu ser torcedora do Corinthians, e sim, pelo fato da torcida ser majoritariamente reconhecida como a primeira torcida organizada do Estado de São Paulo, apesar de conterem registros sobre o surgimento da Torcida Jovem da Ponte Preta de Campinas, alguns meses antes da fundação dos Gaviões da Fiel, em abril de 1969. Além disso, a escolha decorre também pelo caráter político contestatório que existe entre os Gaviões desde o motivo de sua fundação, seus posicionamentos na época da Ditadura Civil Militar no Brasil, a experiência da Democracia Corintiana, e até os dias atuais. Sendo assim, uma das inquietações principais sobre este tema é: será que uma torcida organizada politicamente mais ativa e contestatória que as demais, é necessariamente uma torcida que também atende, abarca e respeita os debates de gênero?

Para debatermos esta questão, gosto sempre de retroceder um pouquinho na história e pensar a grandiosidade do futebol e consequentemente das torcidas organizadas como uma forma de identificação coletiva muito importante na história das arquibancadas.

Pode-se dizer que as coletividades de torcedores de futebol existem no Brasil desde 1940, quando foram fundadas algumas das denominadas “Torcidas Uniformizadas” dos clubes mais populares de São Paulo, formada em sua maioria por pessoas vinculadas aos clubes esportivos, e as ditas “Charangas” nas arquibancadas do Rio de Janeiro. Este modelo implementado pelas torcidas uniformizadas perdurou até anos 1970, quando outra modalidade de participação, bem mais popular, ganhou apelo entre os torcedores. Surgiam então as torcidas organizadas com inspirações que vinham de fora do país, como a existência dos Ultras no futebol italiano ou dos Hooligans, na Inglaterra. É aí que surgem então os Gaviões da Fiel, em julho 1969, inspirando também a criação de mais uma torcida organizada no estado de São Paulo, dessa vez a Torcida Jovem do Santos Futebol Clube, em setembro do mesmo ano.

O surgimento das torcidas organizadas mudou as formas de torcer. Como diz Eduardo Galeano, o torcedor, é este jogador número 12, que:

“sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor, que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música”.

Com a criação das torcidas organizadas, isso fica ainda mais forte dentro do imaginário dos torcedores. Fazer parte de uma instituição torcedora, poder eventualmente protestar contra decisões do clube, incentivar durantes os jogos e socializar em momentos para além da arquibancada com outras pessoas que possuem uma grande paixão em comum, brilhou os olhos da maioria dos torcedores durante a década de 1970. Mas e as mulheres, onde estavam nessa história?

Contrariando o imaginário popular, as mulheres sempre estiveram presentes nos momentos de consolidação no futebol no Brasil. No âmbito das torcidas, isto não é diferente e até o termo “torcedor” surge justamente por conta da presença das mulheres das arquibancadas. Tudo começou quando em 1906, o jornal O Estado de S. Paulo, começou a usar a palavra “torcedora”, substantivo feminino, em aspas, o que mostrava uma certa novidade neste termo. As torcedoras eram mulheres da elite que iam ao estádio assistir jogos e por conta das altas temperaturas, mas também pelo nervosismo do jogo, tiravam as luvas e torciam em gesto de angústia. Desde então, o termo ficou conhecido e é utilizado para descrever quem está nas arquibancadas.

Apesar da presença das mulheres na arquibancada sempre ter existido no futebol, a mídia no início se apropriou para sexualizar a mulher neste contexto, associando as mulheres na arquibancada à beleza e à elegância. Nos dias atuais, os meios de comunicação, em sua maioria, seguem comentando sobre a presença das mulheres nas arquibancadas para sexualizá-las, além de criar estereótipos como o de “Maria Chuteira”, fazendo referência a mulheres que assistem futebol apenas por interesses sexuais em jogadores ou nos torcedores.

Este estereótipo se faz presente também nas próprias arquibancadas e entre membros das torcidas organizadas. É praticamente um consenso entre as torcedoras que tenho conversado a irritabilidade delas em relação ao assédio nas arquibancadas durante os jogos ou até mesmo na própria quadra da torcida sob o pretexto das roupas “curtas” que elas estão vestindo. Elas também comentam que algumas mulheres só conseguem ser mais respeitadas quando frequentam os jogos e os eventos da sede acompanhadas de maridos/namorados. Com as solteiras relatando ainda, que existe a ideia de que elas só estão ali para arrumar namorado e não porque são tão apaixonadas pelo clube quantos os homens são. É curioso perceber que para alguns homens, a ideia de torcedor só pode abarcar determinada masculinidade, e não pode pertencer também às mulheres, ou aos LGBTs, por exemplo.

As diferenças entre os gêneros também ficam demarcadas quando analisamos a estrutura interna e hierárquica que uma torcida organizada possui. Nas minhas primeiras entrevistas descobri que a sala de bandeiras e patrimônios não pode ser frequentada por mulheres. Isso mesmo, além delas serem impedidas de tremular bandeiras em jogos ou em eventos na própria sede, elas também são impedidas até mesmo de entrar no espaço onde ficam estes materiais. Os gaviões nunca contaram com nenhuma presidente mulher, com as torcedoras geralmente ocupando cargos ligados ao departamento social ou de comunicação. Algo que gera um incômodo a alguma delas, segundo relatos nas entrevistas, pois reforça a ideia de que a mulher só serve para organizar eventos festivos e preparar comidas.

Outro assunto que se faz completamente presente quando o assunto é “ser mulher” dentro de uma torcida organizada são as caravanas. É sabido que na sociabilidade das torcidas organizadas, existem caravanas para jogos em outras cidades e estados, que são conhecidas como “caravanas de guerra”, por irem de encontro a uma outra torcida extremamente rival. Com a justificativa de “proteção a violência” devido a “fragilidade” das mulheres, em muitas dessas caravanas elas são impedidas de fazerem parte.

Com todas as buscas e pesquisas que tenho feito sobre a temática, percebo que a questão das caravanas de fato transcende os Gaviões da Fiel. Porém se tratando especificamente dos Gaviões, algumas das interlocutoras dizem respeitar, outras acabam fazendo a viagem por fora das caravanas, e ficando na arquibancada comum e não na área destinada a organizada. Existem relatos também de torcedora que driblou este impedimento e acabou indo a uma caravana proibida, arcando com as discussões posteriores que a burlagem dessa regra acarreta.

Entendendo então, que claramente havia algumas regras de impedimentos destinados especificamente às mulheres, comecei a questioná-las sobre quando e como essas “regras” foram criadas. Sempre foi assim? Algumas delas contam que também se questionam sobre isso, e recorrem à história oral da própria torcida e aos jornais, documentos e, principalmente, fotos mais antigas, na tentativa de entender em qual lugar esteve a mulher “Gaviã” ao longo desses mais de 50 anos de existência.

A teoria de uma delas é que no início, lá na fundação da torcida, não era bem assim. Os fundamentos libertários dos fundadores da torcida, defendidos por Flavio de La Selva, dava às mulheres um lugar muito mais aberto. Existindo até fotos onde as mulheres tremulavam bandeira e tocavam bateria e outros instrumentos, por exemplo. Muitas delas notam que a partir dos anos de 1990, o discurso sexista foi ganhando forma em nome de uma “tradicionalidade” (palavra que os próprios homens costumam usar para justificar as ações e impedimento para as mulheres).

Se olharmos para o contexto das arquibancadas no geral, a década de 1990 foi marcada pelo início de algo que perdura até os dias de hoje, a criminalização das torcidas organizadas. Grandes acontecimentos mundiais como a tragédia de Hillsborough ou até mesmo nacionais, como a Batalha Campal do Pacaembu, criaram um discurso distorcido sobre a violência vinda das arquibancadas. O debate que liga violência e torcidas organizadas é extremamente longo e complexo e não é o foco do texto, porém, esse também foi o discurso utilizado para afastar muitas mulheres das arquibancadas e das próprias torcidas organizadas, mudando a forma em que poderiam participar desses espaços até hoje.

Mulheres dos Gaviões da Fiel em alguma festividade pós jogo na década de 1990. Fonte: Acervo Gaviões da Fiel.

Com um pouco dessas histórias, passo a bola para que nós, amantes do futebol, sigamos pensando a importância do contexto das minorias nas arquibancadas. Destaco ainda que a ideia aqui não foi homogeneizar a questão da “mulher torcedora” dando a elas um lugar universal dentro das torcidas organizadas. É impossível resumir o que pensa cada mulher dentro dos Gaviões da Fiel, assim como os homens da torcida também não pensam e agem de forma generalizada. Apenas nos faz pensar nas contradições inerentes ao futebol, reflexo de problemas, contradições e falhas que existem, sobretudo, em outros âmbitos da sociedade, que faz com que o futebol construa parte de uma importante disputa para análise do Brasil.

*A trilha sonora que acompanha a matéria é Só se não for brasileiro nessa hora dos Novos Baianos.


A Revista Pelota em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marianna Andrade

Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tem experiência na área da Antropologia e estuda as torcidas organizadas e as relações de gênero no futebol.  Compõe o Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da EFLCH (GEFE) e o LELuS (Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e Sociabilidade). Contato: [email protected]

Como citar

ANDRADE, Marianna C. Barcelos de. Muito além da arquibancada: sociabilidade feminina na Gaviões da Fiel. Ludopédio, São Paulo, , 2020.
Leia também:
  • 177.31

    A necessidade de se provar: misoginia e racismo no futebol

    Nathália Fernandes Pessanha
  • 177.30

    Marielle, Robinho, Daniel Alves e a eternização do machismo estrutural brasileiro

    Leda Costa
  • 177.14

    Resumos do GTs XI e XII – III Seminário Online do Ludopédio 2024

    Equipe Ludopédio