Quer que eu bata, Galo? Foi o que perguntou Sócrates ao amigo Zico, há trinta e cinco anos, quando a seleção brasileira de futebol enfrentava a francesa pelas quartas-de-final da Copa do Mundo. Valeu, mas deixa comigo, teria respondido o camisa 10, que acabara de entrar em campo. Frente a ele estava o goleiro Joël Bats.

Zico Brasil
Foto: Reprodução

Em uma novela que tem um jogador de futebol como personagem central, Sérgio Sant’ana – um entre os quase 600 mil mortos pela epidemia de covid-19 no Brasil – menciona de passagem, sem nomeá-lo, um romance de Peter Handke, O medo do goleiro na hora do pênalti, narrativa sobre um arqueiro aposentado. Wim Wenders dirigiu um filme, com o mesmo título, baseado nesse ótimo livro do escritor austríaco, um parceiro contumaz em sua trajetória.

De fato, ser goleiro frente a alguém que vai chutar a gol de perto e sem barreira, não deve ser fácil, ainda que os profissionais que hoje vestem a camisa 1 (ou 12, ou outro número qualquer) evoluíram demais nessa jogada, e com a envergadura de causar inveja aos congêneres do passado, são muitos os pênaltis que defendem. Pensava nisso ao me lembrar das cobranças de Sócrates, jogando pela seleção brasileira em diferentes ocasiões. São imagens que me perseguem.

Sócrates começou a atuar no escrete em 1979, já jogador do Corinthians, para onde se transferira em 1978, depois de, no ano anterior, conquistar um título pelo Botafogo paulista e de formar-se médico pela Universidade de São Paulo. A formatura na USP-Ribeirão foi com a faixa de campeão do Troféu Cidade de São Paulo – primeiro turno do estadual – por debaixo da beca. Pela Copa América jogada no ano de sua estreia na seleção, ele marcou os dois gols do empate brasileiro contra os argentinos, então campeões mundiais, no Monumental de Nuñez. O primeiro foi de cabeça, concluindo jogada bem tramada do ataque brasileiro, e o segundo foi de pênalti, com batida forte e alta no canto esquerdo do goleiro Enrique Vidall é, substituto de Ubaldo Fillol naquela competição. Coube ao Doutor a cobrança porque Zico fora expulso junto com seu marcador, Oscar Ruggieri (sempre ele no encalço do Galinho). Como costumava acontecer, praticamente não comemorou.

Sócrates Brasil
Sócrates contra a Argentina em 1092. Foto: Reprodução/Placar/CBF

Ano e pouco depois, na final do Mundialito em Montevidéu, o jogo andava encardido, o time dirigido por Telê Santana, que tanto encantaria na Espanha em 1982, enfrentava a forte seleção uruguaia, com Ruben Paz, Victorino, De León e, sob as traves, Rodolfo Rodríguez. A seleção brasileira perdia por 1×0, quando Sócrates arrancou da intermediária adversária, ganhou do marcador e, quando entrou na área, levou um encontrão do beque-central. Jogado quase para a linha de fundo, ficou alguns minutos sendo atendido e viu Edvaldo, o lateral-direito do Atlético Mineiro, pegar a bola para a cobrança. Recuperando-se a tempo, assumiu a responsabilidade e preparou-se.

Rodolfo Rodríguez, capitão da celeste y blanca, campeão paulista pelo Santos em 1984, fez a tradicional catimba dos goleiros sobre os cobradores. Narrando a partida, Luciano do Vale comentou que o arqueiro poderia tentar desestabilizar Sócrates por dois dias seguidos, que mesmo assim não teria êxito. Estava certo. O camisa 8, que não mostrava qualquer reação, correu para a bola, deu um leve gingado e deixou o ótimo arqueiro parado debaixo das traves, vendo a pelota lhe vencer pelo lado esquerdo. Tento marcado, lá saiu o artilheiro quase caminhando, quase como se nada acontecera.

Brasil 1986
Foto: Reprodução/CBF

À Copa de 1986, disputada no México, depois que a Colômbia renunciou a ser sede por causa da violenta guerra do narcotráfico, a seleção brasileira chegou alquebrada. Renato fora cortado, Leandro abandonara a delegação no dia do embarque, Zico pedira a Telê para não ser convocado, já que não se recuperara de grave lesão no joelho sofrida no ano anterior. O treinador lhe teria pedido para viajar para entrar nas partidas em andamento, apenas quando fosse necessária sua presença. Pois bem, o jogo contra a seleção da França ia difícil quando o eterno 10 do Flamengo deixou o banco para substituir o jovem Müller, do São Paulo, aos 26 do segundo tempo. Três minutos depois, na sua primeira participação efetiva, tabelou com Branco deixando-o cara a cara com Joël Bats. O arqueiro derrubou, dentro da área, o lateral que estreava em mundiais. Parecia claro que o Brasil passaria para as semifinais da competição, um gol àquelas alturas da partida decidiria a peleja.

Com Zico em campo, pênalti era com ele. Pois bem, para minha surpresa e dos três amigos que estavam comigo naquela tarde de meio semana, Bats defendeu a cobrança, uma das cinco ou seis perdidas pelo craque ao longo da carreira. O goleiro reconheceria, mais tarde, ter contado com a sorte, escolhendo um canto para o salto que o levou à bola. O grande jogador estava, por assim dizer, frio, já que acabara de entrar em campo? Sócrates deveria ter assumido a cobrança?

O empate perdurou e a decisão foi para os pênaltis. Zico fez o terceiro, o jovem zagueiro Júlio César viu sua cobrança, a última, morrer na trave. Sócrates bateu o primeiro e, como no jogo contra a Polônia, naquela mesma Copa, fez uma breve parada para deslocar o goleiro. Mas frente a Bats a estratégia não vingou. O francês esperou e saltou certo para espalmar o chute que saiu fraco, à meia-altura.

Palhaço! Foi o que ouviram os que assistiam à partida pela extinta TV Manchete, vindo da boca de João Saldanha, indignado com o Doutor, que caminhava lentamente de volta a meio-campo, onde estavam seus companheiros. Não acho que Sócrates merecesse tal adjetivo, mesmo tendo cobrado mal sua penalidade. De qualquer forma, admiro a espontaneidade do grande João, o Sem Medo, assim como a coragem dos que se apresentam para as cobranças. Naquela tarde, Alemão, Branco, Zico (que não se escondeu, depois do erro no tempo normal), o jovem Júlio César, Sócrates.

Em tempos medíocres como os nossos, em que a coragem é escassa e a solidariedade perde todas as partidas para o egoísmo, louvo João, louvo Sócrates, esses imperfeitos heróis.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Sócrates, de pênalti. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 40, 2021.
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