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Son Heung-min: Ainda resta uma esperança

Igor Costoli 16 de janeiro de 2021

Série do Puntero Izquierdo conta a história de personagens que um dia serão lembrados pelo que fizeram na Copa do Mundo de 2018; no texto, o maior talento do futebol asiático trava uma guerra particular para seguir sem interrupções com sua promissora carreira — ele é obrigado a servir ao Exército na Coreia do Sul em pleno auge futebolístico

ilustração: gustavo berocan

Rostov, 47’ do segundo tempo

Quando limpou o marcador mexicano e deu na bola um tapa indefensável, Son Heung-min acabava de marcar um gol tão bonito quanto inútil. A finalização certeira não foi suficiente para impedir a derrota que deixou a Coreia virtualmente eliminada da Copa da Rússia.

Ao se encontrar com o presidente sul-coreano após a partida, as lágrimas rolaram pela sua face e rodaram o mundo. Na Copa de 2014, Son também marcou numa derrota, 4×2 para a Argélia. Pela segunda vez consecutiva, ele e seus companheiros caíam logo na primeira fase do Mundial.

Mas o atacante de 26 anos tem outro problema tirando o seu sono. Imagine que Neymar precisasse fazer uma pausa no auge de sua carreira internacional para, por dois anos, servir o Exército num quartel em Santos. Esse é o mundo que ameaça desabar sobre a cabeça da maior estrela do futebol asiático.

Europa, 2008

Son deixou a base do FC Seoul aos dezesseis anos, contratado para integrar a academia de formação de atletas do Hamburgo. Sua primeira oportunidade como profissional veio dois anos depois, pelo time B do clube alemão.

Integrado à equipe principal na temporada seguinte, tornou-se o quarto jogador asiático a alcançar dois dígitos de gols numa das três maiores ligas europeias. Foram três temporadas pelo Hamburgo, marcando 21 gols. Em 2013, por 10 milhões de euros, virou aquela que à época foi a contratação mais cara da história do Bayer Leverkusen.

Foram mais duas boas temporadas até um novo salto: sua venda ao Tottenham por 30 milhões de euros, em 2015. Son Heung-min é, desde então, o jogador asiático mais caro de todos os tempos. Virou um dos homens de confiança do técnico Mauricio Pochettino e uma das referências técnicas do time.

Em 2017, formou com Harry Kane e Delle Alli o primeiro trio de ataque da história dos Spurs a fazer mais de 20 gols cada numa mesma temporada (Son marcou 21). Em maio deste ano, tornou-se o maior goleador asiático da história da Premier League.

Brasil, hoje

Atualmente, o alistamento militar brasileiro não passa de um folclórico bicho papão para adolescentes. Um “homem do saco” burocrático, digamos. Ainda que muitos se assustem com a perspectiva do ano compulsório na caserna, já são quase duas décadas que o efetivo tende a ser preenchido exclusivamente por voluntários.

Os motivos são vários, entre históricos, econômicos, sociais e matemáticos. O país não está em guerra, para começar. A oferta de um teto, alimentação, saúde e um salário faz do Exército uma opção para os mais pobres ao mesmo tempo em que a economia de recursos faz encolher a cada ano o efetivo e o expediente nos quartéis.

Em resumo, cada vez mais gente para cada vez menos vagas. Do universo de jovens que se alista todos os anos no Brasil, cerca de 95% são dispensados.

Uma realidade completamente oposta à da Coreia do Sul. O maior dos tigres asiáticos, com a quarta economia da Ásia e a 13ª do mundo, gasta 2,6% do seu PIB e 15% do orçamento anual com as forças armadas.

É o sexto país do mundo em número absolutos de tropas ativas e o segundo lugar proporcionalmente (média de 3,7 milhões de militares para uma população de cinquenta milhões de pessoas). O primeiro lugar nesta proporção pertence aos vizinhos do Norte — justamente com quem estão em conflito há décadas.

Por esse motivo, todo homem sul-coreano tem até os seus 28 anos para servir no Exército por um período mínimo de 21 meses (em alguns casos, pode chegar a 36 meses) para treinamento básico, sem exceção — ou quase.

O país abre um precedente especial para pessoas cujas conquistas representem orgulho e enalteçam o país. Aos 26 anos, Son Heung-min segue empilhando gols e quebrando recordes em ligas de primeiro nível na Europa. Parece uma aposta segura para se tornar o maior jogador não apenas da Coreia do Sul, mas de toda a Ásia.

O que falta a ele provar, então?

Coreia e Japão, 2002

Seong Joon Bang é um torcedor apaixonado por futebol. É membro ativo de comunidades online sul-coreanas dedicadas ao esporte. Para colocar a carreira de Son em perspectiva, ele lembra de Ji-sung Park, o maior nome da história do futebol do país.

Ex-jogador do Manchester United e PSV Eindhoven, Park é o antigo dono de um dos recordes quebrados por Heung-min (de gols na Premier League) e divide com ele e Ahn Jung-hwan o posto de maior artilheiro sul-coreano em Copas (com três tentos marcados).

Park tinha apenas 21 anos quando integrou o time que chegou às semifinais de 2002, até hoje o melhor desempenho de uma seleção do continente. Graças ao feito, ele e seus colegas foram liberados do serviço militar obrigatório.

Daquela campanha, o grande momento de Ji-sung Park foi a vitória por 1 a 0 contra Portugal, encerrando a primeira fase. Sofreu a falta por trás que rendeu um vermelho direto a João Pinto e marcou um belo gol que decidiu a partida e selou a classificação para as oitavas.

Joon Bang conta que, para o povo coreano, Son era mais um de vários jovens que saem cedo para tentar carreira no futebol todos os anos, mas que ficou muito conhecido já a partir do sucesso no Hamburgo.

“Ele é hoje um grande ídolo no país, mas não alcançou o mesmo nível do Park, que foi capitão e teve grande passagem pelo time nacional. Depois que ele se aposentou, é só ver o desempenho da seleção coreana e você vai entender porque Son ainda não chegou lá”, diz.

Capitão sul-coreano de 2008 até sua aposentadoria, em 2011, Park ajudou o time a chegar às oitavas no Mundial de 2010, quando caíram para o Uruguai de Diego Forlán. De lá para cá, são duas Copas seguidas morrendo na primeira fase.

“Acho que esse sentimento de insatisfação deve ser parecido em todo o mundo. Os brasileiros devem estar desapontados com Neymar e tendem a gostar mais de Ronaldo, Rivaldo ou Romário. Son faz muito sucesso, mas acho que andamos bem saudosistas em relação a 2002”. Não só vocês, Joon…

Mas o que aconteceu em 2002 foi uma exceção, não apenas pelo bom desempenho coreano. A decisão de aceitar o quarto lugar na Copa como um feito digno de dispensa da obrigação militar abriu um precedente complexo. Atletas de todos os esportes passaram a brigar pelo mesmo direito nos anos seguintes, obrigando o país a reafirmar a regra antiga: conquistar uma das três medalhas nos Jogos Olímpicos ou então o ouro nos Jogos Asiáticos são as únicas formas de conseguir a dispensa.

Coreia hoje

Lentamente, a atmosfera entre as duas Coreias vai se transformando. E, à medida que cresce a expectativa por tempos de paz, cresce também o número de pessoas que questiona o atual sistema.

A população se divide sobre o tema. Uma parte sente pena dos jogadores que precisam parar a carreira, a outra concorda com a obrigatoriedade. Joon Bang, que já cumpriu seu treinamento militar, também acha que “todos devem fazer, mas esse período? Em seis meses você consegue aprender a usar um rifle, atirar uma granada, conduzir um tanque e outros equipamentos. É tão importante servir esse tempo todo?”, questiona.

Uma pesquisa de opinião pública no país (feita a pedido do MBC Sports Plus, canal de TV a cabo local) mostrou que mais de 75,2% das pessoas torcem para que ele consiga seguir com a carreira. Quase um terço (30,9%) acha que ele já mereceria a dispensa, e 44,3% defendem que o governo adie seu alistamento para que ele possa seguir com a carreira caso não consiga uma conquista que o isente do serviço.

Mas percebam que esses 44,3% mais os 20,6% que são contra qualquer exceção (4,2% não quiseram opinar) também formam uma maioria que não abre mão do alistamento. E aqui entra um outro componente, o moral. O serviço militar na Coreia do Sul é algo que torna todos os homens iguais de ponta a ponta do extrato social. Não importa quão rico ou pobre, famoso ou desconhecido, todos precisam passar por ele.

Logo, buscar qualquer alternativa tem consequências. Aquele que inventa formas de burlar a obrigação pode até conseguir, mas sua imagem cai em desgraça. Eis a grande ironia: ao tentar salvar a carreira, muitas pessoas públicas a prejudicam para sempre.

Adendo: qualquer “jeitinho” é opção apenas para fujões milionários, claro. Segundo o Mirror, cerca de 400 homens estão presos no país por deserção.

Jacarta, 2018

Não se sabe ao certo de onde no ocidente partiu o boato de que chegar às oitavas-de-final na Rússia valeria a liberação para Heung-min. “A mídia estrangeira tem mostrado bastante interesse no serviço militar de Son”, comenta a jornalista sul-coreana Han Young Hye.

O governo segue tendo a prerrogativa de abrir exceções, embora evite muito fazê-lo. Talvez por isso tenha surgido o rumor. A jornalista é clara sobre as condições necessárias: “a partir do bronze olímpico ou a medalha de ouro nos Jogos Asiáticos”.

Son teve uma grande chance nos Jogos do Rio, em 2016. A derrota para Honduras nas quartas de final o impediu de resolver a questão aos 24 anos. Nas Olimpíadas de 2012, ele optou por se dedicar à carreira que engrenava no Hamburgo. Seus compatriotas voltaram de Londres com o bronze e a liberação. Acabou sendo uma decisão ruim.

Outra ausência foi nos Jogos Asiáticos de 2014, mas desta vez ele não teve culpa. Como a Fifa não reconhece como oficial o torneio sub-23 (mais três jogadores acima da idade, como nas Olimpíadas), o Bayer tinha a prerrogativa de não liberar o jogador e assim o fez.

Graças ao ouro conquistado, os jogadores daquela campanha trocaram os dois anos de serviço militar por um cursinho básico de quatro semanas — vale destacar que, mesmo em caso de liberação, algum tipo de treinamento mínimo será exigido. Resumindo, existe toda uma geração de atletas de alto nível que já se resolveu com a lei enquanto o maior ídolo do país vive seu drama praticamente sozinho.

A bola agora está com o Tottenham. No final do próximo mês de agosto, pouco mais de um mês depois da Copa do Mundo, começam os Jogos Asiáticos na Indonésia. Como no caso do Leverkusen, os Spurs não são obrigados, mas a liberação do atacante está quase certa. O clube sabe que, resolvida essa questão, trata-se de um jogador que dá resultado no campo e é um ativo com grandes chances de valorização.

Liberado para jogar, aí será tudo com Son Heung-min e seus colegas…

Kazan, 50’ do segundo tempo

A derrota do México para a Suécia em Ecaterimburgo já está consumada, formalizando o enterro do fiapo estatístico de possibilidade que a Coreia ainda tinha para seguir para a segunda fase do torneio na Rússia.

Mas, em Kazan, a seleção asiática faz sua melhor partida na Copa. O goleiro Jo Hyeon-Woo brilha intensamente contra a blitzkrieg do ataque alemão e segura a vantagem que Kim Young-Gwon abriu no placar.

O goleiro Neuer se lança ao ataque, desesperado. A defesa corta e dá o chutão para frente. Do campo de defesa, Son parte em disparada. Os alemães estão paralisados. Não era para isso estar acontecendo.

O banco invade o campo. Son Heung-min está soterrado nos abraços dos companheiros. Destaque coreano no torneio, o atacante faz 2 a 0 e se junta a Park e Ahn no posto de maior artilheiro da seleção sul-coreana em Copas do Mundo. O país está fora do Mundial da Rússia. Não importa. A vida pode ser dura, mas ela sempre dá novas chances.


Puntero menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

 


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Igor Costoli

Jornalista e radialista mineiro, carreira dedicada ao esporte e à cultura. Escreve de futebol para o Puntero Izquierdo e fala de música dos quatro cantos do mundo no programa Invasões Bárbaras, da rádio UFMG Educativa, de Belo Horizonte.

Como citar

COSTOLI, Igor. Son Heung-min: Ainda resta uma esperança. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 25, 2021.
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