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“sou o resultado de uma reunião em que meus ancestrais decidiram que alguém precisava contar essas histórias”

Natália Silva 1 de novembro de 2021

Título pretensioso, né? É meu post fixado no Twitter, retirado do livro “o que o sol faz com as flores”, da rupi kauh. Pensando por esse sentido, começar a estudar futebol, racismo e a interseccionalidade raça-gênero foi a minha faísca, “A Negra no Futebol Brasileiro” foi esse sol que me fez florir. No entanto, esse texto não é sobre mim, é sobre a importância de mulheres negras contarem as suas próprias histórias e as histórias de suas semelhantes, até porque não fui eu que descobri a roda e antes de mim vieram muitas, muitas mesmo. Mas aprendi lendo Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Grada Kilomba e outras mais que nosso jeito de escrever nunca vai ser igual àquilo que nos ensinaram por anos a fio. Escrevendo e entrevistando muitas mulheres negras, eu aprendi a me incluir nas perguntas e suposições, que as minhas experiências são importantes para elas como as dela são importantes para o meu trabalho. Aprendi ainda,  que na maioria das vezes, no Brasil, a gente é acostumado com um jornalismo (ao menos na grande mídia, mas não só nela), que se coloca totalmente de fora da situação porque, realmente, boa parte dos jornalistas que exerce a profissão não fazem a mínima ideia do que é viver aquilo que está retratando. 

Enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou. (KILOMBA, 2019, p.28)

Quando Grada Kilomba (2019) fala sobre isso, em Memória de uma Plantação, ela aborda o fato de que ao ter suas histórias contadas por pessoas brancas, as pessoas negras são colocadas na posição de objeto. E mesmo que os jornalistas negros sejam formados, na maioria das vezes, por pessoas brancas, o seu jeito de olhar para os fatos são diferentes. E aqui, sinceramente, eu espero que você não acredite mais naquela baboseira de imparcialidade. Sério. Depois das Eleições 2018 no Brasil, não tem como acreditar. 

O jornalista utiliza todo o conhecimento e experiências acumulados ao olhar para um fato e isso não quer dizer que não possamos ser objetivos e apurar corretamente o que noticiamos. Nem todo mundo vai sair publicando por aí aquela história de escolha difícil, os bons jornalistas não vão. Mas não dá pra descolar o profissional do ser humano e não tem como debatermos racismo no futebol de uma maneira ampla, se quem conta essa história do futebol for somente os privilegiados pelo sistema desigual. Até porque, como escreveu Lélia Gonzalez (2020, p.68), “é desnecessário observar que os meios de comunicação de massa apenas reforçam e continuam a seguir a ideia de ‘superioridade branca’.” 

A intervenção maior de ser formado por pessoas brancas, no meu ponto de vista, é na inibição do nosso instinto criativo que é baseado em tudo que a gente aprendeu com os nossos, ao longo dos anos. É difícil se desprender de um padrão de olhar, escrita e leitura imposto a nós por quem escreveu e dirigiu a história ao seu bel prazer. A verdade, é que entre o certo e o errado dentro da escrita jornalística e até mesmo a acadêmica existe uma linha tênue. Às vezes, o que alguns chamam de errado é uma questão de estilo e quem está chamando de errado, se realmente tem algum conhecimento técnico, sabe muito bem disso. Mas esses padrões servem como uma forma de exclusão, de colocar cada um em uma caixinha de possibilidades, dividir para conquistar e todas essas coisas. Já perceberam que adoram a irreverência de jogadores e jogadoras negras, mas ao demonstrarem quaisquer irreverência fora de campo, já começam a chamar de indisciplina? Sim, tudo que eu disse até agora tem a ver com futebol. 

Não só com futebol como com esporte no geral. Hoje eu sei que em qualquer coluna, reportagem ou numa notícia do dia a dia que eu escreva, estará marcada pelo meu olhar de mulher negra e que jamais verei o que acontece com uma semelhante a mim com o mesmo olhar de um homem branco, um homem negro ou uma mulher branca. Por muito tempo eu tentei me enquadrar no que esperavam de mim como jornalista, assim como sei que outras mulheres negras fizeram, porque de tanto falarem que estamos erradas e enxergarmos poucas pessoas ou ninguém parecido conosco nas redações, realmente, parece que não estamos fazendo direito. Mesmo não sendo estudiosa do tema, especificamente, já sei que a solidão da mulher negra vai muito além da questão afetiva e/ou amorosa. Ficamos sozinhas porque quando conquistamos espaços acabamos sendo colocadas como a mulher negra excepcional que conquistou um lugar ao sol, mesmo com tantas adversidades, quando na verdade essas adversidades nem deveriam existir. 

“O fato é que, enquanto mulheres negras sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, em vez de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais.” (GONZALEZ, 2020, p.77)

Não só das ciências sociais, como da história, do jornalismo, do esporte e de todos os aspectos da sociedade. Foi por isso que resolvi falar sobre isso num espaço dedicado ao debate de futebol e racismo, porque não tem como descolar o futebol da realidade do mundo em que ele está inserido. Só existe racismo e machismo no futebol porque existe racismo e machismo no mundo, assim como outras tantas formas de preconceitos. Encare esse texto como uma continuação do que publiquei no Relatório Anual da Discriminação Racial 2020, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol do Brasil porque para construir um novo futebol a gente precisa ter claro não só o que queremos, mas quais são as desigualdades e privilégios que temos na estrutura. 

RELATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL 2020

Quando falei sobre a solidão da mulher negra nesses espaços é, realmente, sobre uma questão numérica em relação a quantidade de mulheres negras ocupando as redações de jornalismo esportivo, por exemplo. Olhando de relance você pode pensar, nós às vezes pensamos, que se tiverem várias mulheres brancas ou vários homens negros no mesmo ambiente, as mulheres negras já estarão acolhidas. Mas não é assim que funciona, pois a pirâmide social foi muito bem construída para que, quando fosse aberto o espaço para os negros, fosse para homens negros, e quando fosse paras mulheres, fosse para mulheres brancas. E aqui entra a especificidade do futebol. O futebol universal é masculino, é um espaço assumidamente machista, negado às mulheres, inclusive, de forma institucionalizada. Então, mesmo que alguns homens esperneiem, reclamem, tentem desqualificar, eu posso falar da necessidade de mais mulheres nos ambientes do futebol. Mas percebam que quando a tensão do debate racial se tornou mais intensa, principalmente, em meio aos protestos Vidas Negras Importam, a alternativa do jornalismo esportivo (padrão) foi imediatamente começar a inserir mais homens negros e mulheres brancas em sua programação.

E aqui eu não quero dizer que o homem negro não pode ser machista, longe de mim, todo mundo sabe que a realidade não é essa. Mas como mulher negra eu posso afirmar, tranquilamente, que na hora de cobrar mudanças: é muito mais fácil dizer que o homem negro é machista do que apontar o racismo da mulher branca. E aí na concepção da estrutura a lógica é a mesma. O senso comum diz que o homem negro comentando ou reportando futebol não me representa, mas se eu disser que a mulher branca também não, logo serei acusada de dividir o movimento. 

O privilégio racial é uma característica marcante da sociedade brasileira, uma vez que o grupo branco é o grande beneficiário da exploração, especialmente da população negra. E não estamos nos referindo apenas ao capitalismo branco, mas também aos brancos sem propriedades dos meios de produção que recebem seus dividendos do racismo. Quando se trata de competir no preenchimento de posições que implicam recompensas materiais ou simbólicas, mesmo que os negos possuam a mesma capacitação, os resultados são sempre favoráveis aos competidores brancos. E isso ocorre em todos os níveis dos diferentes segmentos sociais. O que existe no Brasil, efetivamente, é uma divisão racial do trabalho. (GONZALEZ, 2020, p.46)

É comum ouvirmos/lermos de mulheres brancas que elas estão abrindo caminho para que a gente possa ir depois. Gostaria, sinceramente, de saber se elas não conseguem ver o absurdo do significado dessa frase. Se a gente pensar que há menos de 150 anos, enquanto mulheres brancas sofriam por não terem acesso a educação, não poderem votar, serem obrigadas a casar com quem não queriam e só ficarem em casa gerenciado o lar, mulheres negras estavam em senzalas cuidando das feridas dos homens que apanhavam nos troncos dos senhores de escravos, quando elas mesmas não estavam feridas após terem sido punidas por um “desrespeito” qualquer – talvez, por pegar uma alimento da casa grande para os seus filhos. Não, qualquer semelhança com mães sendo presas para alimentarem seus filhos, em pleno 2021, não é mera coincidência. É só o reflexo de uma sociedade que continua sendo tão escravocrata que mulheres brancas se acham no direito de abrir um tal caminho, mesmo sabendo que as mulheres negras que ficaram pra trás, dificilmente, vão conseguir fazer esse mesmo trajeto. Sabe por quê? Não tivemos as mesmas oportunidades, nunca tivemos as mesmas escolhas. E não diga que a nossa luta é a mesma, quando olha para o lado, mulheres brancas só veem mulheres de sua cor e acham que está tudo bem. Não, eu não tenho paciência para a síndrome da Princesa Isabel. 

Ah Natália, mas você vai trazer esse papo pesado de escravidão para um assunto leve como o futebol? Vou. Vou porque o futebol só é leve para quem tem o privilégio de poder viver o esporte em sua plenitude, sem ter mil preocupações e medos no processo. Até porque a maioria dos brancos não gosta de falar de escravidão, mas adora nos tratar como se, ainda, não tivéssemos saído dela. Como se não tivessem sido os nossos que se organizaram e lutaram em busca de um futuro melhor. Um futuro que se tornou um presente ainda difícil, mas que não tem nem padrão de comparação com o daqueles que nos colocaram aqui. A gente dá a cara a tapa, fala mais do que vocês gostariam de escutar ou escrevemos mais do que vocês gostariam de ler porque estamos construindo um futuro ainda melhor, em que vocês não possam gritar aos quatro ventos que precisamos da sua autorização para jogar um jogo popular, que precisamos passar pelos caminhos abertos por vocês ou que foi a sua princesa branca que acabou com os 300 anos de escravidão dos negros neste país. 

Já escrevi neste texto e repito: tudo isso tem a ver com futebol. 

Referências

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 375 p.

KAUR, rupi. o que o sol faz com as flores. 19. Ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. 248 p

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. 244 p.

SILVA, Natália. A Negra no Futebol Brasileiro. Revista Gambiarra – Jornalismo, Cultura e Ativismo, 2020.

_____. A Negra no Futebol Brasileiro – 2ª Temporada. Revista Gambiarra – Jornalismo, Cultura e Ativismo, 2021. 

_____. Candeia que vai à frente alumia duas vezes: qual papel você quer ocupar na construção do novo futebol?. In: Relatório anual da discriminação racial no futebol 2020. Porto Alegre: Museu da UFRGS, 2021.

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Natália Silva

Jornalista, é doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal), estudando o jornalismo esportivo e a interseccionalidade raça-gênero, através da história oral de jornalistas negras. É membro do grupo de pesquisa Jornalismo Esportivo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Rede Nordestina de Estudos em Mídias e Esportes (ReNEme). Idealizou e produziu o projeto A Negra no Futebol Brasileiro, que fez parte das ações globais Black Lives Matter Football, #FootballPeople e Football v Homophobia, da Fare Network (Inglaterra). Atualmente, é parte do programa Mudjeris di li i di lá (programa de intercâmbio Brasil - Cabo Verde).

Como citar

SILVA, Natália. “sou o resultado de uma reunião em que meus ancestrais decidiram que alguém precisava contar essas histórias”. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 1, 2021.
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