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Soweto: a capital do futebol sul-africano

Gilmar Mascarenhas 2 de janeiro de 2019

Numa sociedade tão radicalmente dividida quanto a sul-africana, o universo esportivo, como qualquer outro aspecto da cultura nacional, corresponde de forma quase reflexa. A brutal separação interna entre brancos e negros se faz sentir no campo esportivo e é também por ele alimentada, revivida e reinventada.

Nesta coluna tratamos, recentemente, da cidade de Cape Town, e discorremos sobre a forte presença inglesa na África do Sul desde o início do século XIX contribuindo para a rápida adoção do futebol. Johanesburgo, maior cidade do país e que viveu, no contexto da “corrida do ouro”, acelerado crescimento na virada do século XIX para o XX, não poderia escapar ao processo. Inicialmente reduto elitista, o futebol foi logo se popularizando e, por conseguinte, se tornando o esporte dos pobres, isto é, dos pretos. Desejosas de manter suas firmes linhas demarcatórias da diferença, as elites abandonaram o futebol e concentraram progressivamente suas atenções no golfe, no rúgbi e no críquete.

Enquanto expressão inequívoca deste “apartheid” esportivo, um caso singular se produziu no país. Uma única zona urbana concentra os dois principais clubes de futebol do país: Orlando Pirates e Kaizer Chiefs. Estamos falando do Soweto, mundialmente conhecido enquanto vasto e populoso reduto marginalizado de negros na África do Sul, na periferia de Johanesburgo. É mais ou menos como se Flamengo e Corinthians coabitassem a parte mais pobre da Zona Leste paulistana ou a Baixada Fluminense carioca. Enquanto as zonas nobres e médias dessas mesmas metrópoles se mantivessem completamente alheias ao futebol local, cultivando outras modalidades, tais como as supracitadas. Situação impensável para a nossa realidade.

O So-we-to (South Western Townships) corresponde precisamente a um conjunto de assentamentos precários destinados exclusivamente à população negra, que foi transformado em município, em 1983, sob essa fria designação. Johanesburgo (doravante Jo’burg, como preferem os locais) se desenvolveu a partir da exploração de ouro e diamantes, produzindo ao seu redor uma paisagem desoladora, pois completamente esburacada pela mineração implacável. O clima seco contribui para o cenário inóspito, praticamente desértico. E foi justamente na direção das minas, ou melhor, para além delas, que o governo cruelmente destinou, desde as primeiras décadas do século XX, áreas para moradia dos negros. Trata-se do Native Urban Areas Act, promulgado em 1914, no âmbito da nascente política do Apartheid. Aproximadamente três milhões de pessoas (equivalente a 40% de toda a população da área metropolitana de Jo’burg) habitam hoje o Soweto, que se espraia por extensa zona em constante crescimento.

No coração do Soweto encontramos o estádio do Orlando Pirates, clube mais popular do país. Nas duas fotografias abaixo, visualizamos o estádio em meio à extrema pobreza circundante. Salta aos olhos a opulência arquitetônica do equipamento em claro contraste com a precariedade material e com o lixo que se acumula nas vias públicas.

Orlando Stadium, setembro de 2018. Foto: Gilmar Mascarenhas.
Orlando Stadium, setembro de 2018. Foto: Gilmar Mascarenhas.

O Orlando Pirates foi criado em 1937, e seu nome deve-se exatamente à primeira township, denominada Orlando, dentre aquelas que formariam mais tarde o complexo Soweto. Em 1931, Orlando tomou forma acolhendo vasto contingente de negros removidos da zona urbana de Jo’burg. A criação do clube, poucos anos depois, quando a nascente “favela” já abrigava mais de quinze mil pessoas, decorre de todo esse processo socioespacial e corresponde ao desejo de afirmação da identidade local pautada na luta e na resistência: os “piratas” de Orlando. A propósito, desde os anos 1950 o Soweto é vulgarmente reconhecido entre os brancos por Wild West.

Participando da Johannesburg Bantu Football Association, o Orlando Pirates atuava desde os anos 1940 em seu modesto estádio com capacidade para 24 mil torcedores. Em 1970, quando a população do Soweto ultrapassava a marca de 400 mil habitantes foi fundado seu grande rival, o clube Kaizer Chiefs, por iniciativa de consagrado atleta local (Kaiser Motaung) que acabara de retornar de sua carreira nos Estados Unidos (jogando no Atlanta Chiefs, daí a designação do novo clube, junção de nomes). Portanto, um clube fundado mais propriamente em bases midiático-empresariais, bem distinto da origem mais comunitária de seu rival. Desde o início, ambos clubes compuseram o “derby do Soweto”.

O contexto de intensificação das lutas antiapartheid nas décadas de 1970 e 1980 reforçou a popularidade do Orlando Pirates. Seu estádio sempre foi palco ou referência material nos grandes acontecimentos políticos do Soweto: de destino de grandes marchas reivindicativas a discursos oficiais de Mandela após a redemocratização do país em 1994, passando por funerais de lideranças antiapartheid. No Brasil temos a Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, mas nem ela atinge o mesmo patamar de importância simbólica para os trabalhadores e sua luta pela democracia.

Joanesburgo (África do Sul – 10/12/2013) – Milhares de pessoas foram ao Estádio Soccer City prestar as últimas homenagens ao ex-presidente Nelson Mandela. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.

Mediante o crescimento contínuo da região, aliada à nova rodada de mercantilização do futebol, no final dos anos 1980 foi edificado na “entrada” do Soweto um imenso estádio, em terreno público cedido para este fim. Distando apenas oito quilômetros do Orlando Stadium, e de propriedade do capital financeiro, o FNB (First National Bank) Stadium surgiu com capacidade para 104 mil atendentes. Sobre ele tenho uma história para contar. Em maio de 1998 estive na África do Sul. Ao visitar Johanesburgo, estava muito interessado em comparecer a este estádio, para assistir um confronto (“mata-mata”) entre o Orlando Pirates e um clube pequeno, de outra cidade. Soube da partida dias antes quando de passagem por Cape Town, lendo a sessão esportiva nos jornais (a internet ainda “engatinhava”), que aliás dedicavam muito maior atenção ao futebol europeu, destacadamente o inglês: Manchester e outros clubes, que, aliás, passaram a ter núcleos organizados de torcedores em Jo’burg a partir de 2001. Globalização em curso.

Ao chegar na cidade, dois ou três dias antes da partida, fui tomado por um dilema. A população branca, mesmo na universidade, advertia-me do “imenso risco”, citando situações violentas e mesmo uso de arma de fogo ao redor do estádio. Os poucos negros com quem conversei, ao contrário, diziam que não havia perigo. Enquanto “colored” (mestiço), eu tinha trânsito razoável entre os distintos grupos raciais, por isso decidi ir, movido também por imensa curiosidade.

Na dúvida, não levei a câmera fotográfica (os celulares ainda não fotografavam), atitude da qual me arrependi profundamente, pelas raras imagens que deixei de registrar. Na imensa (e muito animada) fila para ingressar no estádio, fui bem recebido e até festejado por ser brasileiro. Muitos caminhões chegavam trazendo, cada um, dezenas de pessoas em pé na boleia, muito empoeiradas, mas bem felizes. Lá dentro, mais de 50 mil pessoas em festa ininterrupta. Mulheres trajando roupas muito coloridas e dançando sem parar. Vi um único rapaz branco, loiro, mas “autorizado”, pois membro ativo da torcida organizada responsável pela percussão.

Ao Orlando Pirates bastava o empate para avançar à fase seguinte, de forma que o 0 x 0 foi comemorado como um título, mesmo diante de um adversário muito inferior tecnicamente. Importante registrar aqui que, ao menos nos setores nos quais estive (muita liberdade de locomoção interna), eu era o único a vibrar com desarmes arrojados de “nosso” time, tal qual um “carrinho” mandando a bola para a lateral, impedindo perigosos contra-ataques do adversário. A maioria vibrava muito mais com firulas, “canetas”, “balões”, mesmo os executados da forma mais imprudentes. Experiência inesquecível. O único registro negativo foi notar a enorme quantidade de crianças famintas a disputar os restos de comida nas arquibancadas (refeições vendidas em formato de “quentinha”), ainda durante o jogo.

Atendendo aos requisitos da FIFA, o FNB foi radicalmente remodelado em 2008 para a Copa de 2010. Como sói acontecer nos países periféricos, o superfaturamento nas obras afetou as contas públicas do governo local, gerando saldo negativo e comprometendo outros serviços públicos (HLATSHWAYO, 2011, pp. 201-202), gerando inúmeros protestos populares (ibid, p. 214). Como os gestores não atenderam aos dispendiosos requisitos da FIFA quanto ao uso e veiculação do nome do banco, o estádio foi “apelidado” durante a Copa de Soccer City.

O completo encadeiramento reduziu em vinte mil lugares sua capacidade original, mais tarde ampliada para 94 mil lugares. Por razões de segurança (excessivas, a meu ver), vasta superfície de terras ao redor é mantida como zona non aedificandi, o que mantém o estádio em situação de completo isolamento na paisagem. Sendo acessado basicamente por automóvel, e estando na proximidade de zona de baixa renda, sem oferecer atrativos (penso no Mineirão e sua ampla esplanada a servir de intensa área de lazer), o estádio permanece em condição isolada todos os dias, exceto os poucos destinados a eventos. O geógrafo Fernando Ferreira, a quem devo comentários valiosos em cada texto desta coluna, chamou-me a atenção para o contraste entre a pretensa/alardeada “multifuncionalidade” da arena e a visível “monofuncionalidade” de seu entorno, destinado exclusivamente ao estacionamento de veículos. Função aliás precária, pois acionada tão raramente.

FNB Stadium, setembro de 2018. Foto: Gilmar Mascarenhas.
FNB Stadium, setembro de 2018. Foto: Gilmar Mascarenhas.

Voltando ao Orlando Stadium, este foi remodelado em 2008, igualmente para a Copa do Mundo, passando a abrigar 36 mil torcedores. Busquei informações sobre o valor dos ingressos. Variam entre 40, 60 e 100 rands, enquanto o salário mínimo nacional é de 1,500 rands. Num esforço comparativo com o panorama brasileiro, tais valores corresponderiam a aproximadamente 25, 40 e 70 reais. Estão, portanto, bem abaixo daqueles praticados em São Paulo (Allianz Parque e Itaquerão) e Curitiba, por exemplo. Talvez um pouco abaixo da média do Maracanã em 2018, e nivelando-se com cidades periféricas no contexto da série A do campeonato nacional, como Fortaleza e Salvador.

Infelizmente, desta vez não tive oportunidade de comparecer ao estádio. Mas pude, ao contrário de vinte anos atrás, circular pelo Soweto, e sentir novamente a força do futebol, tema para animada conversa em qualquer situação. E novamente me deparar com cenas inusitadas, agora fora do estádio, como a chamada de um jornal esportivo local, pendurada num poste na rua onde residiu Nelson Mandela, quase em frente à sua antiga casa. Trata-se, segundo fui informado, de um zagueiro do Kaizer Chiefs, Daniel Cardoso, sul-africano, mas com nome de ascendência portuguesa (paterna), com constantes interrupções na carreira por contusões. E derrotas, que Cardoso justifica pela omissão divina

Soweto, setembro de 2018. Foto: Gilmar Mascarenhas.

A África do Sul possui oficialmente três capitais, uma para um dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário). Pensamos numa quarta: concentrando as duas maiores forças do futebol nacional, o Soweto pode ser considerado a capital do futebol sul-africano.


Referências:

HLATSHWAYO, Mandli. Soccer City: who drank all the beer from the Calabash? In: COTTLE, E. (org.) South Africa’s World Cup: a legacy for whom? University of Kwazulu-Natal, 2011. pp 193-223.

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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Soweto: a capital do futebol sul-africano. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 1, 2019.
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