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Por que somos Sparta? A nova e tradicional marca do Coelhão

Marcus Vinícius Costa Lage 29 de janeiro de 2019

Durante a disputa do último Brasileirão, a diretoria de marketing e negócios do América anunciou que a partir da temporada 2019 o clube contaria com sua própria marca de uniformes e demais produtos por ele licenciados. Embora o América seja o primeiro clube mineiro a seguir esse caminho, essa, por certo, não é uma novidade para o futebol brasileiro. Como vem demonstrando a imprensa especializada, desde que o Paysandu lançou a “Lobo” em 2016, a criação de marcas próprias vem se convertendo em uma tendência entre alguns tradicionais clubes brasileiros. Hoje, um grupo considerável de clubes já seguiu esse mesmo caminho, dentre os quais destacam-se o Bahia, o Coritiba, o CSA, o Fortaleza, o Joinville, o Juventude, o Sampaio Corrêa e o Santa Cruz, além do já citado Papão da Curuzu. Ao contrário dos gigantes do nosso futebol, esses clubes alegam que seus antigos contratos firmados com fornecedores de materiais esportivos não eram vantajosos. Além disso, não raras vezes seus torcedores se mostravam insatisfeitos com a baixa reposição de produtos e com projetos que pretensamente “feriam” as tradições do clube tão valorizadas por eles. Para reverter esse cenário, nessa nova modalidade de produção de materiais esportivos, os próprios clubes, alguns deles assessorados por especialistas em marketing esportivo, elaboraram uma marca conceitual, que, segundo eles, traduz a identidade do clube e de sua torcida, licenciando-a junto a uma fabricante de materiais esportivos responsável por fornecer os novos enxovais personalizados.

Não pretendo aqui avaliar as vantagens ou desvantagens desse tipo de iniciativa, algo que foge à minha competência. Meu objetivo com esse texto não é outro que não o de tecer alguns breves comentários sobre a simbologia mobilizada pelo América na construção de sua nova e recém lançada marca: a “Sparta”.

A confecção dessa nova marca americana ficou sob responsabilidade da FUTBOX, uma empresa mineira de design gráfico especializada em futebol. Fundada em 2013, a FUTBOX se consolidou no mercado como um portal de conteúdos ilustrados e audiovisuais sobre a história do futebol e dos clubes, tanto no Brasil quanto no mundo. Segundo informações disponíveis no site institucional da empresa, atualmente a FUTBOX conta com “o maior acervo ilustrado do mundo sobre futebol”, com dados históricos e gráficos de cerca de 2 mil clubes de futebol, 100 seleções nacionais, 400 campeonatos registrados e 10 mil títulos de clubes e seleções. Parte desse acervo foi usado em mais de 11 mil ilustrações hospedadas nos diferentes canais da internet da empresa. Além de produzir seus próprios conteúdos gráficos, a FUTBOX também tem se notabilizado como uma empresa desenvolvedora de “produtos e serviços para torcedores, clubes […], museus [e] arenas” ligadas ao futebol, tendo em vista sempre o impulsionar das ações comerciais de seus clientes. Nesses casos, uma das especialidades da FUTBOX vem sendo o serviço de “revitalização” de identidades visuais de clubes de futebol. Segundo Adriano Ávila Alamy, fundador da FUTBOX, a “Marca [no caso a identidade visual] de um Clube constitui um ativo estratégico e deve ser gerida com o objetivo de capitalizar todo o seu potencial de valor. Uma das possibilidades para um clube de futebol conquistar esse potencial é transportar para a sua Identidade Visual o conceito dos 3T$: Tradição – Torcida – Troféus, e alimentar todas as suas ações comerciais e institucionais dessa forma.”

A primeira parceria de destaque entre o América e a FUTBOX aconteceu entre o final de 2016 e princípios de 2017, quando os designers da empresa foram contratados justamente para “revitalizar” a identidade visual do clube por ocasião do seu aniversário de 105 anos. O resultado desse trabalho foi apresentado ao público através de uma animação gráfica que trazia todo o processo criativo de remodelação do escudo e as diversas possíveis aplicações da nova identidade visual americana elaborados pela FUTBOX. Mas seria mesmo nesse início de 2019, com o lançamento da Sparta, que a FUTBOX e o América apresentariam uma espécie de síntese simbólica da identidade americana, evidenciando, aliás, sua tradicionalidade.

 

 

Quando, em setembro de 2018 a diretoria de marketing e negócios do América anunciou que o clube teria sua marca própria, o nome e o conceito dessa marca foram mantidos sob sigilo. Apenas em dezembro do ano passado a surpresa foi desfeita, com o clube postando em suas redes sociais um vídeo institucional com a seguinte chamada: “Guerrear nunca é uma escolha. É a nossa essência! Eis a nossa CONVOCAÇÃO! #SomosSparta” Nesse vídeo, as imagens da torcida americana, vibrante no Independência, eram acompanhadas de uma voz off, que dentre outras coisas, dizia: “Quando uma nação é ameaçada, ela convoca os seus e vai à luta. Não importam as armas! Não importam as circunstâncias! O que importa é a entrega! Foi assim que 300 derrotaram milhares. […] Se você tem espírito de um daqueles 300, chegou a hora de mostrar porque somos Sparta!”

 

 

Apesar de todo o suspense criado pelos idealizadores do projeto, a associação do América e dos americanos aos 300 espartanos que lutaram contra os Persas na Batalha de Termópilas não era uma novidade. No mesmo dia em que o vídeo foi ao ar, o historiador do América, Mário Monteiro, o Marinho, escreveu em suas redes sociais o que pode ter sido, digamos assim, a origem dessa representação:

“Em 2006 foi lançado o filme 300. Teve ampla repercussão e divulgação no Brasil desde 2007. Em 2007 o América tinha um dos seus piores times da história, aonde culminou no rebaixamento do campeonato mineiro e na ausência de participação em campeonato brasileiro, jogando taça MG. Em 2008 o time ganhou o módulo II e me veio a ideia de que jamais nos matarão. Nossa tradição como a luta espartana nos buscaria do fundo do poço. Em 2009, no lançamento da tabela do campeonato mineiro vi que colocaram o América logo de cara contra o Atlético em pleno Mineirão na primeira rodada. Eu era colunista da Globo e abusei do tema espartanos para motivar a torcida americana. O nosso amigo Cláudio Corneta fez um desenho, e eu usava o desenho com narrativas épicas para a batalha que se aproximava. Mineirão cheio, América vindo do módulo II, Atlético com Tardelli e cia. O jogo foi uma batalha. Dudu era um volante que lutou como um gladiador ou espartano. A partida ficou 0 a 0. Saímos esgotados do estádio. Uma das maiores batalhas que vi do América. Principalmente pela disparidade do momento e de elencos. Tornei isso em feito épico nas letras. O grande americano Paulo Papini fez uma faixa escrito espartanos.”

Mário Monteiro não mencionou em seu texto, mas me lembro bem que, nesse mesmo ano em que a faixa apareceu no Independência, Paulo Papini e outros americanos mandaram confeccionar 300 camisas do América que, no lugar do patrocinador máster daquele ano, trazia “Espartanos”. Se o conheço bem, muito provavelmente o Marinho foi um dos compradores dessa camisa.

Espartanos no Estádio Rei Pelé. CRB x América, 4 ago. 2017

Ao meu ver, essa autoimagem americana representaria bem o que José Miguel Wisnik[1] chamou de reversão “das alcunhas estigmatizantes atribuídas a determinados clubes e suas comunidades”. Como deve ser de conhecimento geral, os chamados “grandes clubes” em Belo Horizonte são Atlético e Cruzeiro. Para seus torcedores, o América é o “mequinha” ou a “melequinha verde”, e os americanos são alguns poucos idosos e ricos que, quando vão ao estádio, enchem, no máximo, uma Kombi. Mas, para nós, americanos, somos poucos porque somos “guerreiros” que “sobreviveram” a inúmeras “batalhas”. E, acima de tudo, somos “esclarecidos”, tal como os “espartanos” de Hollywood defensores da civilização e da razão.

Para comprovar esse traço identitário, relembramos sempre que vencemos “uma, duas, dez batalhas”, sagrando-nos decacampeões mineiros entre 1916 e 1925, quando o futebol pretensamente não tinha interferência econômica e era jogado por “amadores puros”, pelos filhos da elite. Não por coincidência, o decacampeonato é aludido em quase em todas as peças gráficas de “revitalização da identidade visual” do clube divulgadas em 2017 e o algoritmo “10”, do “deca”, foi transformado em “S”, virando o símbolo da marca Sparta.

Também não nos esquecemos que fomos “ameaçados” em nossa hegemonia com a profissionalização do futebol, que desvirtuou o “princípio maior” do esporte. Por isso, “lutamos com coragem, com amor e com glória”, e adotamos o uniforme alvirrubro por cerca de uma década entre os anos 1930 e 1940, em sinal de protesto contra o novo regime. Símbolo este também recuperado pela FUTBOX ao criar o escudo em “celebração do deca” em 2017 e a etiqueta do novo uniforme Sparta, ambos vermelhos. Vez ou outra, ainda recuperamos essa camisa vermelha para denunciar os “desmandos” do futebol. Lembram-se da #tambémvamoscom12?

Por tudo isso, somos Sparta! Os demais são os bárbaros persas de Belo Horizonte!


[1] WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 47-48.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcus Lage

Bacharel, Licenciado e Doutor em História. Mestre em Ciências Sociais. Pós Doutor em Estudos Literários. Professor do Instituto de Educação Continuada da Puc Minas. Torcedor-militante do América! Se aventurando pelo mundo da crônica!

Como citar

LAGE, Marcus Vinícius Costa. Por que somos Sparta? A nova e tradicional marca do Coelhão. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 25, 2019.
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