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Sunyol, Barça, esporte e cidadania

Jordi Finestres 28 de março de 2021

Em 2009, o FC Barcelona foi buscar, na Serra de Guadarrama, o seu presidente fuzilado na Guerra Civil. Josep Sunyol, catalão, deputado pela Esquerra Republicana de Catalunya nas Cortes. O homem que entendeu que o clube de futebol e o esporte podiam ser algo muito mais que diversão, podiam ser mais que um clube e formar cidadãos.

Josep Sunyol

Para além dos recordes, dos marcos e das proezas esportivas, um clube está sempre recheado de histórias e feitos de personagens que definem a sua trajetória. O FC Barcelona é “més que un club” por razões históricas desde suas origens. É um clube catalão aberto para o mundo, fundado em 1899 por um suíço, Hans Gamper. Já nos primeiros anos, com Gamper, que mudou o seu nome de Hans para Joan, imaginou uma entidade aberta, democrática, social e multiesportiva, na qual todos os sócios deveriam ter os mesmo direitos e deveres. Talvez, esse perfil não agradou o elitismo que imperava o mundo do esporte no início do século XX, e desagradava ainda mais os regimes autoritários como a ditadura de Primo de Rivera, nos anos 1920, ou como o franquismo, que obrigou o clube a mudar o seu escudo de 1908, retirando a cruz de São Jorge e as quatro faixas vermelhas da bandeira da Catalunha. Não é nenhuma casualidade que depois da Guerra Civil, em 1942, o governo de Franco mutilou as quatro faixas, reduzindo a duas. O fato é que a maioria – nunca a unanimidade – da massa social do Barcelona entendeu e aceitou, independentemente da sua origem geográfica, o simbolismo que o Barça emana de Gamper até os dias de hoje. Nos anos 70, o escritor Manuel Vázquez Montalbán definiu o clube como “exército desarmado da Catalunha”, uma ideia que explica muita coisa. 

Josep Sunyol

Gamper foi exilado do clube e da cidade de Barcelona em 1925 depois de um amistoso entre Barça e Júpiter, quando a torcida vaiou a Marcha Real Española, uma demonstração de desconforto da gente do Barça com o Estado comandado pelo general Miguel Primo de Rivera. Da mesma forma que boa parte do Camp Nou expressa nos dias de hoje o seu legítimo desejo de independência no minuto 17’14 de cada tempo. Em 1714, Barcelona foi derrotada pelas tropas de Felipe V de Borbón e a  Catalunha perdeu suas liberdades políticas.

Essa simbiose entre esporte e política não estava nas intenções de Gamper quando fundou o clube, mas o mesmo aceito com o passar do tempo que o futebol como espetáculo de massas vai irremediavelmente além de um esporte. Voltando a Vázquez Montalbán, no ocaso do franquismo escreveu: “Na sobrevivência do Barça, um dos poucos resgates do naufrágio foi consumado. O Barça é a única instituição legal que une o homem da rua com a Catalunha, que poderia ter sido e não foi”.

Com Gamper no exílio – cometeu suicídio em 1930 – e a proclamação da República em 1931, o Barcelona voltou a viver uma época de liberdade, que em 1935 se concretizou na vitória de um presidente que buscou extrapolar a conotação extra esportiva do Barcelona. Estamos falando de Josep Sunyol i Garriga, um homem que entendeu e aplicou o lema “Esporte e Cidadania”. Um ano depois, era fuzilado na Serra de Guadarrama.

Analisando a biografia do presidente mártir do barcelonismo, constatamos que Sunyol foi um empresário de êxito que colocou a sua notoriedade a serviço da Catalunha por uma via política, midiática e esportiva. No sua posse, no dia 27 de julho de 1935, disse: “Sei que é complicado ser presidente do Barcelona quando se tem uma posição clara e concreta, ainda que modesta como a minha, mas só posso dizer que atuarei como presidente e que, em nenhuma ação, qualquer confusão de qualquer tipo será justificada. Se acontecerem, seria por parte de outras pessoas, pessoas de fora do Clube ”.

Josep Sunyol

Sunyol não era precisamente um desconhecido da sociedade catalã dos anos da República. De família republicana, herdou de seu pai uma fábrica de açúcar em meio aos problemas de importação do produto vindo de Cuba, depois que o país caribenho se tornou independente em 1898. Em abril de 1931, foi eleito deputado do Congresso de Deputados, como representante de um partido recém fundado, a Esquerra Republicana de Catalunya (Esquerda Republicana da Catalunha), uma legenda indubitavelmente progressista e catalanista. Foi reeleito como deputado em 1933 e 1936.

Para além das atividades empresariais e políticas, Sunyol era fundador e proprietário de um jornal, “La Rambla”, que começou sendo semanal e depois se tornou diário. O jornal fazia ampla cobertura do fenômeno esportivo que já era de de massas na Catalunha republicana. O lema do “La Rambla” era “Esport i Ciutadania” (Esporte e Cidadania) e nas capas apareciam duas colunas de opinião, uma sobre esporte, na parte esquerda, e outra sobre aspectos sociais e cidadania, no lado direito. O “La Rambla” tinha uma redação própria, nas Ramblas de Barcelona, precisamente no primeiro andar do número 13, em frente à emblemática Fonte de Canaletes, o local onde os torcedores do Barça comemoram hoje os títulos. O local foi escolhido para as celebrações por ser um ponto, onde nos anos 1930, aos domingos ao meio-dia, o redator do “La Rambla” pregava em uma lousa os resultados das partidas, especialmente os resultados do Barça quando jogava fora de casa. Desde então, Canaletes se tornou o epicentro social azulgrana.

Josep Sunyol

Sunyol  se tornou sócio do Barça em 1925 e três anos depois passou a fazer parte do quadro diretivo de um presidente monarquista Arcadi Balaguer, cargo que conciliou a partir de 1929 como presidente da Federación Catalana de Fútbol. Em 1935, propôs a candidatura e foi eleito presidente do Barcelona com a missão de endireitar a irregular trajetória esportiva do clube time e sanar as contas, objetivo que alcançou contribuindo com dinheiro de seu próprio patrimônio. Com Sunyol, o Barça iniciou uma política esportiva correta, com a interessante contratação de Balmanya, Iborra, Argemí, Barceló, Torredeflot e Areso. A guerra acabaria com aquela equipe que contava com os formidáveis Balmanya, Escolà e Raich, um grupo projetado para oferecer grandes tardes de glória aos torcedores do Barcelona.

Sunyol conectou o clube ao barcelonista comum, ​​geriu o clube com critérios profissionais, tentou descentralizar as estruturas da Federación Española e deu uma nova dimensão simbólica ao seu Barça, que só conseguia entendê-lo como mais do que um clube. Entendeu, por exemplo, que uma figura eterna como Samitier, que em 1933 havia sido contratado pelo Madrid, depois de uma saída amarga do Barcelona, não podia passar para a história como um traidor do barcelonismo. Por isso, no dia 19 de janeiro de 1936, o Barça organizou uma partida em sua homenagem, a lenda “Sami”, um dos melhores atacantes europeus dos anos vinte. A partida ocorreu uma hora antes do presidente da República, Manuel Azaña, dissolver as Cortes e convocar eleições gerais. Seriam os comícios que dariam a vitória para a Frente Popular e o regresso do presidente Companys na Catalunha, depois de meses na prisão.

No dia 6 de agosto de 1936, Josep Sunyol viajou à Madrid com a ideia de entregar a Martínez Barrios e José Giral, presidente das Cortes Españolas e do Governo Estatal, respectivamente, uma carta do presidente do Parlament Catalán, Joan Casanovas, ao mesmo tempo que queria visitar os soldados catalães deslocados para a frente do centro da península. Sua popularidade como presidente do Barça colocava-o como a pessoa ideal para motivar os jovens milicianos mobilizados para lutar pela República. Mas, não contou que naquele momento, as linhas divisórias daquela frente não estavam suficientemente delimitadas, fatalidade que lhe custou a vida ao parar o carro no quilômetro 52 da estrada que ligava Madrid a La Coruña, em plena Serra de Guadarrama. Sunyol e seus dois acompanhantes acreditavam estar em solo republicano quando, na verdade, estavam em uma zona controlada por soldados de Franco. Depois de uma breve conversa, foram detidos e, ao entardecer, executados. Sunyol foi assassinado pelo fascismo. A Catalunha chorou a sua morte. A democracia chorou a sua desgraça. Um ano depois de sua morte, direto de Madrid, uma coluna com o nome Sunyol i Garriga, que tinha como objetivo homenagear um defensor da liberdade.

Josep Sunyol

A ditadura de Franco condenou Josep Sunyol às cortes sumárias, depois de três anos de sua morte. Já haviam assassinado, mas também queriam condená-lo politicamente. Por ser catalanista. Por ser democrata. Depois veio o silêncio durante décadas. Alguma coisa ficou na memória de alguns e na persistência de outros, tanto que em 1996, seis décadas depois, os historiadores Josep M. Solé i Sabaté, Antoni Strubell e Carles Llorens  recuperaram a esquecida figura de Sunyol com a publicação de um livro que estimulou o FC Barcelona a restituir a figura do seu último presidente antes da Guerra Civil.

O nome de Sunyol voltou à memória histórica do barcelonismo, embora não tão forte até a chegada de Joan Laporta à presidência do clube, em 2003, quando passou a intensificar o trabalho de restituição e recuperação do seu legado. Em 2009, o FC Barcelona colaborou com a revista de divulgação histórica “Sàpiens” na busca pelos restos mortais de Sunyol na Serra de Guadarrama, onde havia uma lápide que recordava a sua morte ali.

Depois de meses de negociações com os militares e políticos, em novembro de 2009, começaram os trabalhos para localizar os restos mortais de Sunyol. Caso fosse encontrado, a exumação só seria realizada mediante a autorização dos familiares. A notícia causou uma grande repercussão nos meios de comunicação, principalmente naqueles pouco afeitos à restituição da memória histórica dos vencidos na Guerra Civil. O FC Barcelona foi acusado, novamente, assim como o seu presidente Joan Laporta, de politizar o clube, sem entender que em um país normal, tal fato já teria sido consertado décadas atrás.

No entanto, e apesar de contar com pesquisadores e arqueólogos especializados na localização de valas comuns de guerra, a busca não teve o resultado esperado. Os movimentos naturais da terra na região durante mais de setenta anos impossibilitaram determinar onde estavam os restos mortais. Sunyol passou para a história como o presidente mártir do barcelonismo. E a sua tragédia soma-se a de milhares de pessoas que foram vítimas de uma guerra tão cruel e injusta.

Tradução: Victor L. Figols


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Como citar

FINESTRES, Jordi. Sunyol, Barça, esporte e cidadania. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 60, 2021.
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