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A criação de monstros, o “modelo estadunidense” e um mundo onde superligas são possíveis

Victor Freire 20 de abril de 2021

O mundo do futebol foi abalado pelo anúncio de uma Superliga de Clubes europeus. Muito se fala sobre o como este movimento é apenas uma maneira destes clubes “gigantes” pressionarem a Uefa, em direção a mudanças no futebol europeu que os favoreceram, como por exemplo, a mudança das famosas “noites europeias” para os finais de semana e, como sempre, uma maior fatia do bolo dos direitos de transmissão. O projeto já foi anunciado, mas teremos que ficar de olho se ele realmente perdurará.

Não pretendo aqui explicar ou discutir o que é, como vai ser e quais são os desdobramentos da Superliga, minha intenção aqui é se perguntar: que mundo é esse em que uma Superliga de clubes é possível? Discutirei um pouco como chegamos até aqui, onde trarei ideias para pensar que não esgotarão a problemática e nem se estenderão muito, a intenção aqui é abrir o debate.

A criação do monstros

Para um mundo onde uma superliga é possível, é preciso super-clubes ou talvez “clubes-monstros”. A Uefa já se mostra contrária a criação desta liga, condenando os clubes, falando até em elitismo e falta de solidariedade, porém toda esta situação só possível porque, na prática, já existe uma superliga interna que divide as fatias maiores para os clubes mais ricos nas tradicionais competições europeias. Há anos que as maiores fatias são dadas praticamente aos mesmos clubes e que, curiosamente, são os mesmos que pretendem com essa iniciativa provocar uma ameaça de rompimento com as estruturas institucionais do futebol.

Ou seja, a Uefa é também responsável pela a situação que ela está enfrentando neste momento, ela é uma das responsáveis pela criação destes “clubes-monstros” que ameaçam engolir a maior parte do dinheiro do futebol para si. Isso também deixa claro que a Uefa está longe de ser o grande paladino e garantidor da equidade no futebol, a situação parece aqui um desespero pela perda de controle do dinheiro. Tudo que envolve esta polêmica tem relação com a divisão do dinheiro, o resto é secundário.

Este é um primeiro argumento: para um mundo onde uma superliga é possível, precisa-se de clubes-monstros. Que, na verdade, foram criados ao longo de um grande processo que já perdura há anos no futebol europeu e até mundial. Este é um processo longo, que se mistura com globalização e neoliberalismo, que foi criando um grupo elitizado de clubes mais poderosos financeiramente que acabam controlando os títulos e destruindo a competividade dentro de um ciclo fechado onde os clubes ricos vencem e ficam cada vez mais ricos para vencer novamente.

A Superliga seria só a exacerbação de um problema que está posto no futebol e no mundo, onde há a crescente desigualdade, o sistema perde em caráter democrático e, na dimensão do esporte, perde-se em competição, por isso o combate a esta problemática é independente da realidade ou não desta liga. Este caminho rumo a uma elitização está ocorrendo faz tempo e permanecerá mesmo que a Superliga não vá para frente.

 

O “Modelo Estadunidense”

O modelo que inspira a Superliga é o famigerado e bem-sucedido modelo de liga do esportes americanos. Muito se fala sobre o suposto socialismo inerente a essas ligas no sentido da divisão do dinheiro, dos playoffs e dos sistemas de draft que mantém as ligas competitivas, além de fatores mais importantes e propositalmente menos lembrados como teto salarial, teto de gastos e fato de que todas as ligas terem um sindicato forte de jogadores que briga com a liga quando seus interesses não estão sendo levados em conta. Mas pouco se fala que essas ligas são grupos de elites fechados, onde quem quiser entrar, tem que abrir o bolso.

Antes de mais nada, a NBA, a NFL, a MLB e a MLS são empresas e cada time é uma franquia desta empresa em diferentes cidades dos EUA e do Canadá. Para entrar neste clube das franquias é preciso pagar, assim como faz uma pessoa que queira abrir uma franquia do McDonald’s ou da Starbucks. Se existe um socialismo aqui, este é um socialismo para os ricos.

A Superliga busca emular este modelo, seguindo todas as primeiras ideias como mata-mata, divisão igualitária e uma liga fechada e (quase) permanente sem rebaixamento, ou seja, busca-se emular apenas aquilo que toca no lucro maior deste “clubes-monstros”.

Então, a ideia principal está longe de ser a criação de uma liga competitiva e com grandes jogos, o principal aqui é o lucro e os clubes não estão escondendo isso. Se a intenção fosse a competitividade, poderíamos olhar para os esportes americanos para falar de teto salarial e de investimento ​e não para a criação de uma superliga. Sem falar no quanto o exemplo americano é de difícil compatibilidade com a cultura do futebol como um todo. Para concluir, o argumento aqui é que o objetivo é o lucro e a fuga dos principais problemas do futebol atual, pois esses clubes estão fugindo de um sistema que vem cada vez mais falindo clubes pelo mundo e prol de seus próprios interesses.

O futebol precisa de mudanças urgentes para se adequar a um mundo em constante transformação, olhar para outros modelos é necessário, mas o que está se fazendo é um “copia e cola” barato liderado por clubes que ficaram tão grandes em um modelo atual que já os favorece, a ponto deles poderem ameaçar a estrutura até então reinante no futebol. Era preciso enfrentar as confederações e federações, que pena que se está fazendo isso só para exacerbar ainda mais os problemas do modelo corrente.

Cortina de Fumaça

Muito se argumentou da grande possibilidade deste movimento ser mais um meio de fazer pressão política nas entidades do que oficializar a criação da liga. A Uefa já se mostrou totalmente contrária e promete o uso de pesadas sanções como a exclusão dos times do campeonatos nacionais para o combate desta superliga, porém ela o faz muito mais para manter o seu controle do que para “salvar o futebol”. É bem possível que esta liga não saía do papel, mas isso só deve acontecer com alguma vitória dos clubes na batalha política, afinal estes clubes estão grandes demais para saírem sem nada desta história. Então, o que preocupa mesmo é que provavelmente veremos uma aceleração do processo de elitização do futebol que já vem correndo bem rápido há anos, independente da criação ou não desta superliga.

O debate está se montando de uma maneira onde nos vemos defendendo a manutenção de um sistema antigo já falido em contraposição ao sistema mais moderno e talvez mais financeiramente sustentável (mas só para quem está no topo). A oposição à proposta da superliga até agora tem parecido grande e ultrapassa as entidades, passando para jogadores, treinadores e jornalistas, porém muito pouco se fala sobre fato de que o modelo que está se defendendo também possui problemas estruturais que também levam tanto a elitização competitiva quanto a elitização do público. Foi dentro do atual modelo que esta elite de clubes foi criada, essas mudanças que estão sendo propostas são apenas desdobramentos de um futebol globalizado e neoliberal já presente.

Uma série de clubes tradicionais estão falindo pelo mundo, a realidade hoje da maioria dos clubes pelo mundo é de apostar alto para tentar vencer uma premiação e, assim, conseguir pagar as dívidas ou apostar alto e não vencer a premiação e produzir mais dívidas. E como cada vez mais os mesmos clubes vencem as premiações, o abismo só cresce. Sem esquecer da alta perda de competitividade dos campeonatos, a temporada começa e já sabemos quem será o campeão alemão, francês e italiano, mesmo que a dominância de clubes destes países seja até um pouco antiga, ela nunca foi tão grande como é atualmente. Até o campeonato brasileiro hoje começa com um favorito ao título, situação que há poucos anos atrás era muito mais difícil de determinar.

Europa Superliga

Este debate da superliga pode servir como uma cortina de fumaça para os reais problemas do futebol hoje. Por exemplo, a competitividade vêm sendo severamente prejudicada ao longo dos anos com os mesmos clubes sendo campeões e a solução que a Superliga dá não é mudar o sistema para uma maior equidade, mas uma separação dos super-clubes em uma espécie de Olimpo dos melhores, onde haverá uma competitividade entre poucos. No fim das contas, nada muda.

O modelo atual já é precário e necessita de mudanças, a Superliga cria uma ilusão de mudança, sendo que, na verdade, ela só está institucionalizando algo que na prática já vêm ocorrendo há anos. Ou seja, a superliga não é uma transformação, é apenas uma das últimas etapas de um processo neoliberal vigente no futebol há, pelo menos, trinta anos.

Ainda é preciso continuar pensando em outro futebol

A crise econômica desencadeada pela pandemia do coronavírus surge como um argumento para Superliga, que buscaria diminuir ou reverter os prejuízos financeiros dos clubes. A questão é que estes clubes pretendem fazer isso construindo uma arca só para eles, de uma forma ou de outra, tanto através da vitória na pressão política para uma maior fatia do bolo da Liga dos Campeões quanto pela fundação da nova liga.

Este mundo é possível porque temos super-clubes, temos modelos “bem-sucedidos” de outros esportes e certos problemas estão sendo combatidos de forma ilusória. As soluções talvez perpassam estes três argumentos, pois primeiro, é preciso combater este sistema que cria esses super-clubes que geralmente lutam apenas por seus interesses. Segundo, é interessante olhar para outros modelos, mas é preciso que seja um olhar mais crítico, não apenas um “copiar e colar”, além de que novas ideias também precisam ser pensadas. E terceiro, não podemos perder o horizonte de onde realmente deveria estar o debate sobre as transformações do futebol, não é na briga entre dois modelos, um “antigo” e um “novo”, mas em processos transformativos em prol de um sistema mais democrático, equilibrado economicamente e competitivo, mas uma competição esportiva e não mercadológica.

Estamos precisando de novas ideias e não a reciclagem dos mesmos interesses. Mais do que ser contra a Superliga, é preciso ter em mente que mesmo que ela seja evitada, um futebol cada vez mais elitizado permanece vencendo. Afinal, a Superliga de clubes já existe na hora de dividir o bolo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor Freire

Mestrando em antropologia social pela UnB, onde estuda tecnologia de vídeo no futebol. Ama o futebol e é um entusiasta de beisebol. Porém, botafoguense antes de tudo.

Como citar

FREIRE, Victor. A criação de monstros, o “modelo estadunidense” e um mundo onde superligas são possíveis. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 39, 2021.
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