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Tá aí o que você queria? O desaparecimento dos campos de futebol de várzea e o surgimento do futebol de consumo

Regis Fernando Freitas da Silva 4 de agosto de 2021

Esse texto busca fazer um paralelo entre o acesso à prática esportiva do futebol nas cidades, e a indisponibilidade de acesso a lugares para a prática esportiva. Assim, surge o futebol society, compreendido como uma modalidade de futebol executada em quadras privadas, em que os jogadores amadores pagam para disputar partidas, motivados por causa do desaparecimento de espaços públicos da prática do futebol.

O processo de urbanização diminui cada vez mais os locais de prática esportiva das cidades, principalmente nas periferias. O futebol amador ainda é um espaço de lazer no Brasil, mesmo com espaços cada vez mais reduzidos nos centros urbanos – nos processos de urbanização fica cada vez mais raro encontrar um campo de futebol público com estrutura adequada para a prática esportiva (DA SILVA, 2021).

A prática do futebol amador é atividade de grande importância nas periferias: torna-se um ambiente de pertencimento, laços afetivos, senso comunitário e de organização social autônoma, uma vez que o Estado deixa essa população totalmente à margem das cidades e principalmente nos grandes centros urbanos (PASTERNAK, 2016). De modo geral, era comum, após horas de trabalho, os moradores da periferia calçar seus tênis e disputar partidas de futebol no campo de futebol mais próximo de sua comunidade.

Várzea
Foto: Anna Carolina Negri

É necessário estabelecer que o futebol foi uma válvula de escape para trabalhadores e trabalhadoras, sendo um espaço de socialização e lazer após as cargas pesadas de trabalho (GUTERMAN, 2009). Dessa maneira, a prática deste esporte se apresenta como uma ferramenta de bem estar, alçado como um direito social. Frisa-se que o direito social não está dado, mas sim está constantemente em disputa uma vez que ele não se encontra disponível a todas as pessoas, e os ambientes esportivos seguem a mesma lógica de reivindicação.

O acesso ao esporte deve ser promovido pelo estado, conforme os arts. 6 e 217 da Constituição Federal determina, e nesse instante é que há um tensionamento entre os espaços da cidade para se jogar futebol. Ressalta-se que o esporte é uma extensão ou uma representação das disputas de espaços, e como os direitos fundamentais são reivindicados a todo momento, há um reflexo no esporte quando não há acesso a todas as pessoas que o buscam como um direito.

É importante salientar que o esporte é um instrumento social que tem grande visibilidade na sociedade brasileira, além de ter status de direito fundamental. Porém, o acesso ao futebol se torna muitas vezes prejudicado em razão de um ideário que é possível ter uma partida em qualquer tipo de espaço, tais quais as ruas de chão batido das periferias.

Ou seja, é possível jogar futebol em um campo de ótima qualidade de um clube social ou em uma rua sem nenhuma pavimentação, e nessa dinâmica que se construiu a prática do futebol no Brasil. De certa medida, foi pensada em uma lógica do improviso: quem não tem acesso a bons campos poderia jogar em algum lugar.

Porém, é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, conforme o texto constitucional do art. 217. Ocorre, que o futebol como lazer foi construído em outra perspectiva, onde as pessoas da periferia criavam seus ambientes esportivos.

Claro que houve momentos de maior fartura de campos de futebol, principalmente quando pensando na forma de expansão da cidades e os espaços disponíveis nela. Foi durante a urbanização que esses espaços foram diminuindo, fato que afeta a parcela da sociedade que utilizava os campos de futebol de várzea para jogar.

Assim, diante do processo de urbanização e descaso de políticas públicas que ofereçam espaços adequados para se jogar de futebol, há uma mudança na forma de se praticar esse esporte no Brasil. E nesse vazio de promoção de espaços públicos, é que surgem as quadras privadas de futebol, e que de alguma medida contribuem para que o Estado deixe de promover o acesso à prática esportiva.

Além disso, há no futebol amador e suas quadras e campos um processo de gentrificação, pois quem tem melhores condições financeiras acaba por recorrer as quadras privadas,  enquanto quem não nem essa mesma condição acaba por jogar em quadras sucateadas ainda existentes na cidade. E mesmo dentro do próprio centro urbano há diferenças de estrutura dessas quadras/campos públicos: os mais centrais têm melhores condições que os periféricos.

A título exemplificativo, há uma modalidade de futebol que se chama Futebol Society ou Futebol Sete, surgida em meados dos anos 80, justamente nos bairros de classe mais alta, em diversos centros urbanos brasileiros (MELO, 2015). Diante de várias formas que a modalidade de futebol de quadra se estabeleceu é trazido um relato retirado do site da Federação Paulista de Futebol Society:

“Os primeiros campos de grama natural foram construídos dentro das mansões do Morumbi, onde executivos encontravam-se para jogar futebol.”

Os campos para prática extra-oficial, em grama natural e de areia, surgiram em 1988, sendo o campo “Futebol Society”, localizado no bairro do Itaim Bibi, um dos primeiros e mais conhecidos campos para locação. Naquela época não havia muita organização, jogando-se com um número variável entre 6 e 10 atletas e com bola de futebol de campo.

O Futebol Society tomou um grande impulso devido ao fechamento dos campos de futebol de várzea, pois ocupavam um grande espaço, enquanto o Society, por ser menor e não necessitar de grandes áreas, foi se adaptando a essa nova realidade.

Futebol society
Foto: wikipédia
Denota-se que diante desse cenário, há um agravamento de não-acesso à prática esportiva, que é o desaparecimentos dos campos de futebol de várzea – campos públicos da prática desportiva – assim impactando nos espaços de lazer nos centros urbanos e também nas periferias. É possível estabelecer que, diante da falta de políticas públicas para garantir o acesso à prática esportiva e o processo de urbanização, há um impacto na forma que se prática futebol amador no Brasil (DA SILVA, 2021).

É perceptível que a popularização do esporte acaba por ganhar uma face diferente nas periferias: diante da gentrificação dos espaços urbanos, o futebol de várzea possibilita lazer a um grupo de pessoas que não recebe qualquer tipo de possibilidade de acesso a esse serviço público. E diante desse cenário, tem-se como agravamento o desaparecimento dos campos de futebol de várzea, impactando diretamente nos espaços de lazer da periferia.

Esse não-acesso ao futebol denota um apagamento da cultura do futebol de várzea, pois há um atravessamento na forma que o futebol era praticado, e principalmente perde seu viés popular e se torna um esporte de consumo. Fato que muda a própria forma como se pratica futebol no Brasil, e isso tem reflexo até mesmo na revelação de atletas, além de diminuir locais de lazer nas periferias brasileiras (GUTERMAN, 2009).

Sendo assim, esse texto buscou de alguma medida demonstrar que há uma disputa relação não só de gentrificação das quadras e campos de futebol, mas também uma forma do Estado deixar de cumprir seu papel de promover e fomentar a prática esportiva, trazendo o aspecto privado do acesso ao esporte, pois é necessário o pagamento para alugar esses ambientes de prática esportiva.

Até porque é a classe trabalhadora que utiliza o futebol como forma de lazer e atualmente acaba por pagar para ter acesso ao esporte, dado o sucateamento de espaços para a prática de futebol em lugares não centralizados nos centros urbanos. De alguma medida, se buscou refletir que é importante ter um projeto de políticas públicas que venham garantir o acesso à prática esportiva por parte do Estado. Afinal, esta é uma atribuição constitucional e não terceirizar uma atribuição do Estado para quadras privadas, pois em um país com tamanha desigualdade social acaba por segregar o acesso ao esporte e ao lazer.

Referências

DA SILVA, Regis Fernando Freitas. Disputa de poder nas cidades: onde foram parar os campos de futebol de várzea? Ludopédio, São Paulo, 2021.

GONÇALVES, Julio Cesar de Santana; CARVALHO, Cristina Amélia. A mercantilização do futebol brasileiro: instrumentos, avanços e resistências. Cadernos EBAPE.BR, 2006. Acesso em: dez. 2016.

GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2009.

MELLO, Mayara Lopes. Perfil dos consumidores do futebol society em Florianópolis. 2015. N. 53. Trabalho de conclusão de curso. Universidade do Sul de Santa Catarina.

PASTERNAK, Suzana; D’OTTAVIANO, Camila. Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a partir da Leitura Territorial do Censo de 2010 *. Cadernos Metrópole. , São Paulo, v. 18, n. 35, pág. 75-100, abril de 2016. Acesso em 15 de dezembro de 2020. http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3504.

SOUZA, J.; JUNIOR W-C. Por uma sociologia reflexiva do esporte: considerações teórico-metodológicas a partir da obra de Pierre Bourdieu. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 01, p. 293-315, janeiro/março de 2010: Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/10496/7529. Acessado em 12/12/2014>.

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Regis Fernando Freitas da Silva

Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2013) e pós-graduação em Direito Desportivo e Gestão no Esporte pela FBT/Ineje (2019). Mestre em Direito pela Universidade La Salle(2021). Professor, pesquisador e advogado de Direito Desportivo.

Como citar

SILVA, Regis Fernando Freitas da. Tá aí o que você queria? O desaparecimento dos campos de futebol de várzea e o surgimento do futebol de consumo. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 7, 2021.
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