146.22

Tango e futebol… Gardel e Doval: sobre argentinos e argentinos nem tão argentinos

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 12 de agosto de 2021

O tango é um estilo de música de ritmo binário e compasso de dois por quatro (Milonga, dois tempos/compasso; Vals, três tempos/compasso; e, Tango, quatro tempos/compasso). Sua origem data dos anos finais do século XIX. Por ter sido parido em cabarés, às margens do Rio da Prata, em regiões portuárias tanto na Argentina (Buenos Aires) como no Uruguai (Montevidéu), o tango é duplamente periférico. As figuras do tango são complexas, exigindo dada habilidade dos bailarinos, para além de uma conexão alquímica no expressar sensualidade, paixão e tristeza. Segundo o poeta e dramaturgo argentino Enrique Santos Discépolo Deluchi,

“o tango é um pensamento triste que se pode dançar”.

O futebol é um esporte jogado de modo coletivo disputado por duas equipes, cada qual com 11 jogadores. Duelado num campo de grama com duas traves em extremos opostos, o objetivo dos jogadores é colocar a bola no arco do oponente fazendo uso dos pés e da cabeça, sendo permitido o uso das mãos e braços apenas ao goleiro. Oriundo da Inglaterra, sua origem data da segunda metade do século XIX. Por ter sido parido em outro continente, chegou ao Brasil via embarcação marítima. Os fundamentos do futebol (passe, condução de bola, drible, chute) exigem de seus jogadores um amplo repertório de movimentos e habilidades motoras, a fim de adentrar com a bola à meta adversária. Além disso, o futebol cobra uma vinculação com a torcida, costumeiramente denominada de “o décimo segundo jogador”. Para o dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, “a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”.

Para o tango, Carlos Gardel é um ser mítico. Sujeito que primeiro cantou um tango, estabelecendo um novo modo de conceber o mesmo. Seu nome é parte da “identidade nacional argentina”, e portanto, também é parte da “identidade do Tango”. Como se sabe, o tango é um ritmo musical marginal e seu reconhecimento como parte da identidade argentina passou por lutas simbólicas e de afirmação. Nesse tenso processo, Carlos Gardel foi ícone marcante na transição do tango como algo positivo ligado à cultura argentina. No ano de 2009, o Tango foi elevado à categoria de Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela UNESCO e, por tal motivo, podemos considerar que Gardel figura entre os “deuses” da música mundial. Sua biografia é permeada de múltiplas versões, e isso só reforça nossa hipótese de que Carlos Gardel é um personagem mítico.

Uma prova da afirmação acima é o nascimento do músico. Carlos Gardel nasceu em 11 de dezembro de 1890, porém o local deste acontecimento é dúbio: França e Uruguai são os possíveis berços natais de seu surgimento. Contudo, falar de Gardel é referir-se a Argentina[1]. Para nós, pouco importa onde foi concebido esse sujeito universal (ele mesmo dizia “ter nascido para o mundo”, quando questionado sobre onde nascera).[2] Por seu pai não ser conhecido, acreditamos que ele é fruto de um envolvimento amoroso de sua mãe, a francesa Berthe Gardés com algum deus da música: Dagda, Djeuti, Apolo, Bragi – respectivamente deuses celta, egípcio, grego e nórdico da música.

Carlos Gardel
Carlos Gardel em 1923. Foto: Wikipédia

Para o futebol do Flamengo, Narciso Horacio Doval é um ser divino. Por seu estilo aguerrido e sua volúpia por fazer gols, Doval é entidade mítica do panteão da Gávea. Doval foi jogador do rubro negro carioca e vestiu seu manto em 263 jogos (de 1969-1971 e de 1972-1975). Com a camisa do clube fez 95 gols, e por sua marca quase centenária, Doval é até hoje o maior artilheiro estrangeiro da história do Flamengo, seguido pelo paraguaio Jorge Benítez, com 76 gols em 115 jogos (de 1952-1956), e pelo sérvio Petkovic, com 57 gols em 196 jogos (de 200-2002 e de 2009-2011).

Doval é oriundo de duas nacionalidades: argentino de nascimento (1944) e brasileiro por naturalização (1976). Apesar da dupla nacionalidade, Doval era mesmo “carioca”. O jornal argentino Clarín certa vez publicou: “Doval é o Pelé do Rio… O que Pelé é para o resto do Brasil, Doval é para o Rio de Janeiro”. Por seu modo irreverente, Doval também ficou conhecido como o “argentino mais carioca que existiu”. Amava uma praia, e por tal motivo, dizia que jamais jogaria no Vasco porque São Januário ficava demasiado longe da praia. Chamava atenção por seus olhos azuis e seus cabelos longos e loiros – que lhe renderam o apodo de “diabo loiro”. Por tamanha “beleza”, por assim dizer, Doval fazia jus ao nome de deus grego (Narciso), dado por seus pais. Além disso, chamava atenção por seu estilo: calça justa, camisa florida e carro cor de laranja. Sua fama de galã lhe rendeu algumas capas de revistas e vários convites para fazer telenovelas (convites estes sempre negados por Doval). Dizem as “boas e as más línguas”, que Sandra, esposa de Zico, conheceu o jogador numa de suas idas aos treinos na Gávea com as amigas para tietar o argentino.

Doval Fio Maravilha
Doval e Fio Maravilha em 1971. Foto: Wikipédia

A vida de Gardel foi o tango. Carlos iniciou sua carreira profissional como músico no ano de 1911 cantando em diversos bares de Buenos Aires. Atuou com quartetos, trios e duplas e se consagrou com o amigo com o qual fazia o dueto: Gardel-Razzano. No ano de 1917, Gardel cantou pela primeira vez um tango, feito que foi consumado no Teatro Empire, sendo a música que marcou esse novo estilo de tango foi: “Mi noche triste” (composição de Samuel Castriota e Pascual Contursi). Gardel gravou mais de 900 canções e dentre os seus maiores sucessos se destaca o tango “Por una cabeza (1935)”.[3] No entanto, ainda vale mencionar outras que o consagraram como “o maior”: Mi Buenos Aires Querido (1934), Volver (1934), El Dia Que Me Quieras (1935), Mi noche triste (1917), Margot (1921), Mano a mano (1927), Esta noche me emborracho (1928), Chorra (1928), Adiós muchachos (1928), Sus ojos se cerraron (1935), Volvió una noche (1935), dentre outras. Em 11 de dezembro de 1915 (dia em que completava 25 anos), Gardel foi atingido por um tiro no pulmão esquerdo e, diante de tal incidente, receou não mais poder cantar. Porém, recuperou-se e retomou sua carreira em conjunto com Razzano. O tango também oportunizou Carlos Gardel a atuar como ator em alguns filmes pela Paramount, entre eles: Flor de Durazno (1917) (filme mudo); Encuadre de canciones (1930) (primeiro filme falado da América do Sul); Luces de Buenos Aires (1931); La casa es seria (1931); Espérame (1932); Melodía de arrabal (1932); Cuesta abajo (1934); El tango en Broadway (1934); El día que me quieras (1935); Tango Bar (1935); e The Big Broadcast Of (1935).

A vida de Doval foi o futebol. Tanto na Argentina como no Brasil, Doval jogou em dois clubes rivais: San Lourenzo e Huracán (Argentina); e, Flamengo e Fluminense (Brasil). Sua breve saída do Flamengo em 1971 se deu por problemas com o tom autoritário do então técnico Yustrich que exigiu que ele cortasse os cabelos e se vestisse de modo diferente. Doval, por seu turno, retorna a Argentina para jogar no Huracán, clube rival do time que o lançou: o San Lorenzo de Almagro. No ano seguinte (1972) à sua saída, Doval volta ao Flamengo a pedido do técnico Mario Jorge Lobo Zagallo (técnico campeão do mundo pela seleção brasileira em 1970). Sua segunda passagem pelo clube foi mais vitoriosa do que a primeira. Pelo Flamengo foi campeão carioca em 1972 fazendo um dos gols da final contra o Fluminense diante de 136.829 pagantes no Maracanã (Fla 2 x 1 Flu). Deste campeonato, Doval também se sagrou artilheiro com 16 gols. Em 1974 foi bicampeão carioca em cima do Vasco, fazendo dupla de ataque com Zico. No ano de 1976 foi para o Fluminense onde jogou até 1978.[4] Em 1979 voltou para a Argentina encerrando sua carreira e jogando aquela temporada pelo San Lorenzo sob a batuta do então treinador Carlos Bilardo (técnico campeão do mundo com a seleção Argentina, em 1986).

Carlos Gardel morreu cedo: aos 44 anos foi vítima de um desastre aéreo em Medellín (Colômbia). O jatinho no qual Gardel estava colidiu ainda em solo, num misterioso acidente enquanto pegava velocidade para decolar. Aquele fatídico 24 de junho de 1935 e a colisão envolvendo duas aeronaves Ford Trimotor até hoje permanecem inexplicáveis. Outra prova de sua condição mítica: afinal, deuses não morrem. Em 2003, por proposta do governo uruguaio, a voz de Gardel foi gravada pela Unesco no Programa Memória do Mundo. O dia que Carlos Gardel faleceu, a Argentina ficou mais triste do que um tango.

Gardel Evita Maradona
Gardel, Evita e Maradona em La Boca. Foto: Wikipédia

Precoce também faleceu Doval, aos 47 anos, no dia 12 de outubro de 1991. Doval morreu de parada cardíaca ao sair de uma boate de Buenos Aires. Dias antes, havia se encontrado com a delegação do Flamengo que, na oportunidade, comemorava a vitória sobre o Estudiantes de La Plata, num jogo válido pelo extinto torneio sul-americano, a Supercopa. Pouco antes do ataque mortal, Doval declarou seu amor ao clube para alguns jogadores da delegação, dentre eles o maestro Junior, que jogou com Doval em 1974 e que fazia parte do elenco de 1991. Doval foi para o Flamengo o que as partituras de Gardel são para o Tango. Para o argentino mais carioca que já existiu, cabe a frase de José Lins do Rego:

“Amo o Flamengo como se fosse um pedaço da terra onde nasci”.

Se no céu há algum lugar onde toca Tango, Gardel está lá. E Doval? Com certeza está revendo o gol mais celebrado que fez pelo Mengão. O gol da final do carioca de 1972, que tirou o título do Fluminense, literalmente, “por una cabeza”.  

Notas

[1] É só entrar em qualquer loja de souvenir na Argentina e você “trombará” com o rosto de Gardel, sempre acompanhado de outros grandes personagens: Eva Peron, Maradona e Che Guevara – só para mencionar alguns deles.

[2] Além disso, Gardel costumava dizer: “Minha pátria é o Tango”.

[3] “Por una cabeza” é um tango composto por Carlos Gardel e Alfredo Le Pera. A canção retrata a situação de um compulsivo apostador de turfe (corridas de cavalo). Na música, o vício em apostas e em cavalos é comparado ao vício e compulsão pelas mulheres.

[4] Doval foi para o Fluminense num “troca-troca” de jogadores entre os dois clubes. “Troca-troca” este que foi transformado em letra de música por Jorge Ben Jor e que é parte de seu LP “A banda do Zé Pretinho”, lançado em 1978. Mas Doval também virou música na voz de Marcos Valle, “Flamengo até morrer”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Tango e futebol… Gardel e Doval: sobre argentinos e argentinos nem tão argentinos. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 22, 2021.
Leia também:
  • 178.18

    Hinchas, política y 24M: la Coordinadora de Derechos Humanos del fútbol argentino, emblema de trabajo colectivo

    Verónica Moreira
  • 178.12

    Jogo 2: Estreia da Arena na Libertadores

    Gustavo Cerqueira Guimarães
  • 178.2

    Memória, Verdade e Justiça também no futebol sul-americano

    Fabio Perina