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Ted Lasso, masculinidade tóxica e outras masculinidades possíveis

André Rocha Rodrigues 8 de outubro de 2021

A série de comédia Ted Lasso é uma das novas queridinhas do momento. Apesar de estar na plataforma Apple TV+ de relativo pouco alcance no Brasil, a série vem conquistando prêmios (Emmy, Globo de Ouro, Peabody Awards, Critics’ Choice Television Awards etc.) e corações, tornando-se assim um grande sucesso de crítica e público.

O enredo da série é o seguinte: Ted Lasso é um estadunidense, técnico de futebol americano que é convidado para ser técnico de futebol de um time inglês que está na Premier League. Ele não sabe nem as regras do futebol inglês, mas aceita o emprego. O treinador não é conhecido por ser um excelente técnico tático que domina técnicas e estratégias de jogo, mas pelo gerenciamento dos atletas. Dentro do universo do futebol são comuns discussões sobre como não basta aos treinadores terem um bom conhecimento técnico, mas que estes saibam gerenciar pessoas e criar um bom clima no clube entre os jogadores, de modo que o time trabalhe em conjunto e que siga as suas orientações.

Ted Lasso
Fonte: Divulgação

É uma série fácil de assistir. Com episódios curtos, leves e sem demandar muita atenção. É possível que boa parte do sucesso tenha relação com o momento em que foi lançada. Diante de uma pandemia, boa parte das pessoas está precisando ou buscando algo ameno e agradável para ver em casa. Entretanto, o que me chamou atenção nessa série é que ela trata de um universo e de um assunto um tanto quanto inusitado: masculinidade tóxica no futebol.

Ted Lasso é um técnico de futebol masculino, em um ambiente predominantemente masculino, mas que não exerce ou não reproduz uma performatividade tipicamente masculina, ou uma masculinidade tóxica. Convenhamos, isto é, no mínimo, inesperado.

O termo “masculinidade tóxica” é usado para se referir a uma coleção interligada de normas, crenças e comportamentos associados com a masculinidade que são prejudiciais para todas as pessoas. As características da masculinidade tóxica incluem: hiper competitividade; autossuficiência individualista (em um sentido patriarcal e paroquial do papel do homem como chefe de família e autocrata da família); tendência ou glorificação da violência (real ou digital, dirigida a pessoas ou quaisquer vivos ou não vivos); chauvinismo masculino (paternalismo para com as mulheres); sexismo (superioridade masculina); a misoginia (ódio contra as mulheres); concepções rígidas de identidade sexual e de sexo e de papéis; heteronormatividade (crença na naturalidade e superioridade da heterossexualidade dos cis gêneros); o direito a ser o alvo da atenção (sexual) de mulheres; objetificação das mulheres; a infantilização das mulheres.

Ao assistir a série foi inevitável não recordar da bronca que Luís Felipe Scolari, então técnico do Palmeiras, aplicou em seus jogadores após a derrota para o Corinthians no primeiro jogo das semifinais da Libertadores de 2000. No áudio do vestiário captado e divulgado pela imprensa, era possível ouvir Felipão dizer que era preciso que seu time tivesse “malandragem para dar um pontapé, um cascudo, irritar” o adversário e que seus jogadores no próximo jogo deveriam ter “raiva dessa p* de Corinthians!”. Mais recentemente, em janeiro deste ano, o então treinador do São Paulo Fernando Diniz ofendeu o atleta Tchê Tchê durante o jogo que o time da capital paulista perdeu para o Bragantino por 4×2. O atleta se aproximou da lateral do gramado durante o jogo e perguntou “Não posso falar com você?” e Diniz, irritado, respondeu “Não pode mesmo. Tem que jogar, crlh*! Seu ingrato do crlh*! Seu perninha do crlh*! Mascaradinho, vai se fu**!”

Fernando Diniz
Fernando Diniz, quando treinava o São Paulo. Foto: Evaristosouza83/Wikipédia.

Ted Lasso jamais fala desta maneira com seus atletas, até mesmo com aqueles que tentam sabotar seu trabalho como a diretoria do clube e compreende a cornetagem dos torcedores. Lasso reconhece que não é plenamente qualificado para o cargo e por isso pede ajuda, ouve todos do clube e tenta trabalhar para criação de um ambiente propício para o desenvolvimento do trabalho. Em outras palavras, Ted Lasso é uma linha de fuga da masculinidade tóxica. Ele apresenta uma outra masculinidade possível, mesmo em um ambiente reconhecidamente machista.

Não vou te enganar, a série não é uma obra-prima. Não vá esperando que é uma peça de arte, uma inovação da dramaturgia televisiva. Aliás, a princípio fiquei espantado com o hype criado sobre a série e, como sigo o mantra do Public Enemy: “Don’t believe the hype”, fui com dois pés atrás. No entanto, quando me dei conta, já estava me divertindo com as personagens e tinha visto três episódios seguidos. Não só por ser engraçada, leve, rápida, mas por tratar do tema das masculinidades no futebol de forma pouco explorada até então na cultura pop.

É claro que uma série não vai mudar o mundo da noite para o dia. Todos nós sabemos que não é assim que se muda um regime discursivo tão poderoso como o do binarismo de gênero e da performatividade masculina. Aliás, é uma tolice atribuir tamanha importância e responsabilidade para o um produto da cultura pop. Contudo, esses produtos possuem alguma relevância na formação de subjetividades.

Os nascidos nos anos de 1980 (como eu) foram expostos a um tipo de masculinidade de personagens como Rambo, Bradock, Dirty Harry, John McClane (Duro de Matar); ou ainda a gênios arrogantes e antissociais como o Dr. House, Patrick Jane (Mentalist), Walter White (Breaking Bad), Don Draper (Mad Men) ou a atletas indisciplinados que não treinavam, frequentavam festas, eram “mulherengos”, mas que “resolviam o jogo” com uma jogada individual brilhante, marcando o gol da partida.

Ted Lasso
Fonte: Divulgação

Ted Lasso não é um gênio, não é o mais forte, não é o mais bonito, não usurpa as regras do jogo, fala dos seus sentimentos, pede ajuda, ouve os problemas dos amigos, aposta na gentileza e coletividade, respeita as mulheres e não opta pela violência ou agressividade para resolução de conflitos. A série apresenta este personagem dentro do contexto de um time de futebol masculino e com uma linguagem fácil que pode se comunicar com o seu primo que joga FIFA, com o seu pai, com seus amigos do futebol de quarta-feira e com aquele amigo que manda nude “vazado” no grupo do zap. Não necessariamente propondo uma discussão e problematizando o tema, apenas expondo que outra masculinidade é possível.


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André Rocha

Antropólogo e corintiano. Pesquisa apropriações de espaços, mobilidades urbanas, gênero e sexualidade. Integra o LELuS (UFSCar) e o GEPAC (UNESP).

Como citar

RODRIGUES, André Rocha. Ted Lasso, masculinidade tóxica e outras masculinidades possíveis. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 13, 2021.
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