Em uma abafada madrugada de dezembro de 1992, em Florianópolis, meu avô paterno assistia com apreensão à partida entre São Paulo FC o FC Barcelona, que acontecia no Japão. Nascido e criado no campo, ele costumava se retirar cedo e despertar com o dia ainda sem luz natural, mas naquela ocasião o homem de hábitos rígidos se deixou acordar perto da meia-noite para torcer pelo amado tricolor. Precavido, ingerira sua dose de maracugina, esperando que a pressão arterial não subisse a ponto de, aos noventa e cinco anos, viver um mal-estar durante o esperado jogo. Solitário, frente à pequena televisão do seu quarto, vibrou com o golaço de Raí, marcado quando a disputa já se encaminhava para o fim do tempo regulamentar. O placar de 2 X 1 não se alteraria e o primeiro título da Copa Intercontinental chegou ao Morumbi.

Dirigia o São Paulo Telê Santana, e quando penso nele, vem-me de imediato a imagem do experiente técnico levantando-se do banco de reservas, sorriso estampado no rosto, vendo seus jogadores se amontoarem uns sobre os outros. O contumaz chiclete mascado, o agasalho fechado até o pescoço (fazia frio em Tóquio), a reação alegre, mesmo que não muito efusiva, tudo isso contrastava com as marcas de frustração no seu rosto em 1982 e em 1986, dois fracassos em Copas do Mundo que deixaram uma geração de grandes jogadores sem título mundial de seleções.

Telê Santana
Telê Santana. Foto: Reprodução/Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube.

Soube da existência de Telê ainda muito criança, assistindo à final do Campeonato Gaúcho. Foi em 1977, quando o Grêmio interrompeu uma série que já contava com oito títulos seguidamente conquistados por seu principal oponente, o Internacional. Além de octacampeão estadual, o Colorado era bi brasileiro, tendo no craque Falcão seu pulmão e maestro. O reerguimento do Tricolor foi o ponto inicial de uma trajetória que passou por outros títulos, no Rio Grande do Sul, no Brasil e na América, culminando na conquista da Copa Intercontinental de 1983, a que consagrou Renato como ídolo maior.

Mas, quando tudo isso aconteceu, Telê já passara pelo Palmeiras, onde fez ótimo trabalho, mas não ganhou títulos, e pela seleção brasileira que caiu frente à italiana na Copa realizada na Espanha, na partida que ficou conhecida como Desastre do Sarriá. Defensor do futebol bem jogado e sem violência, o treinador procurou escalar os melhores jogadores do plantel, alguns deles, de fato, excepcionais: os laterais Junior e Leandro, os meio-campistas Toninho Cerezo e Falcão, os pontas-de-lança Zico e Sócrates. Poderia ainda ter tido o centroavante Careca, cortado por contusão às vésperas da competição, quando o time estava prestes a estrear.

Telê-Santana na época em que comandou a seleção brasileira. Foto: Reprodução.jpeg

O preço pago pela escalação desejada por muitos dos amantes do futebol não foi baixo. Sem ponta-direita (um personagem criado pelo comediante Jô Soares dizia “Bota ponta, Telê!”), alguém deveria cair pelo flanco quando o jogo pedisse, mas isso raramente acontecia. Tentara-se adaptar o meio-campista Paulo Isidoro na função e jogou-se com ele muitas vezes com algum êxito, mas, no momento de entrar em campo no Mundial, o time estava desequilibrado: as trocas de posição no ataque se davam principalmente do meio para a esquerda, inclusive com Junior e Éder, enquanto na direita Leandro não tinha condições de ocupar toda a faixa lateral do campo. Além do mais, a boa dupla de zaga formada por Oscar e Luisinho ficava desprotegida, pois nenhum dos jogadores de meio era bom no combate ou na cobertura; tampouco os laterais, muito técnicos com a bola nos pés, eram marcadores eficientes. Batista, médio-volante do Inter, fez falta, estava lesionado. Mas, não havia outro no elenco que pudesse ser mais técnico na marcação e na proteção à zaga? Não havia. Era possível estruturar a equipe taticamente de forma que fosse mais precavida? Provavelmente sim, mas isso não foi feito. A vitória dos italianos nada teve de anormal.

Telê sempre primou pela técnica dos jogadores (com pouca ênfase na marcação, é bom destacar), ele que foi um futebolista que, segundo todos os relatos, se destacava nesse quesito. Como treinador, sempre insistiu na repetição dos fundamentos básicos do futebol. Foi obsessivo no aperfeiçoamento do passe e do chute. São famosas suas broncas em Cafu para que caprichasse mais nos cruzamentos. Mas, não se pode dizer o mesmo no que se refere às aplicações táticas, como o exemplo de 1982 bem mostra. Quatro anos depois, no México, finalmente foi mais cauteloso e escalou o criticado Elzo para proteger a zaga, assim como faria com Pintado, anos depois, no grande momento do São Paulo. Sim, em algo ele mudou, mas seu forte continuou sendo o aprimoramento técnico e o posicionamento dos jogadores, nunca o desenho tático.

Pouco flexível, Telê uma vez proibiu o atacante Macedo de treinar porque levava um penteado rastafári; Marcelinho Carioca, lançado por ele entre os profissionais do Flamengo, estacionava o velho carro comprado com os primeiros salários a uma distância segura do centro de treinamento rubro-negro, temendo que o treinador o obrigasse a devolver o veículo e o fizesse economizar o dinheiro. Renato Gaúcho foi dispensado da seleção pouco antes da Copa de 1986, ao chegar mais tarde do que deveria em uma folga. O episódio foi um dos estopins para a recusa de Leandro em embarcar para o México, quando todos o esperavam no Aeroporto do Galeão. Como comentarista, discutiu ao vivo com Mário Sérgio – que estreava como treinador no Corinthians – e interpelou o jovem Zé Elias, cobrando de ambos que não promovessem um jogo faltoso e truncado.

Obstinado, foi com suas crenças até o fim, aceitando as consequências de suas decisões. Em um futebol como o de hoje, taticamente fixado pelo que se mostra a cada ano na Champions League, Telê não teria lugar. Que seu anacronismo seja, no entanto, inspiração para pensarmos o futebol de um jeito que possa ser, também, outro.

Ilha de Santa Catarina, novembro de 2020.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Telê Santana: maestria no anacronismo. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 27, 2020.
Leia também:
  • 177.29

    Campeonatos e copas: Possibilidades de compreensão do circuito do futebol varzeano de São Paulo (SP)

    Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari
  • 177.28

    A camisa 10 na festa da ditadura

    José Paulo Florenzano
  • 177.27

    Futebol como ópio do povo ou ferramenta de oposição política?: O grande dilema da oposição à Ditadura Militar (1964-1985)

    Pedro Luís Macedo Dalcol