Das alturas de Lesoto ao altiplano boliviano: a odisseia de Thabiso Brown

O temido altiplano boliviano é um desafio para os forasteiros. A dificuldade para respirar é um dos sintomas, assim como a dor de cabeça e a tontura. Se acostumar ao mal da montanha é um desafio que poucos conseguem alcançar rapidamente. Porém, a necessidade de triunfar nessas terras inóspitas acelera esse processo. Em Lesoto, um reino independente cravado no meio da África do Sul, as alturas não são estonteantes que nem na Bolívia, mas já são um bom teste para enfrentar esse obstáculo. Dessa nação africana vem Thabiso Brown, um atacante que luta pelos seus sonhos no topo do continente sul-americano.
O futebol de Thabiso Brown foi talhado na nação que possui cerca de 80% do seu território acima dos 1.800 metros de altitude. Lesoto é o único país do mundo a ter toda a sua área acima de 1.000 metros. Para se ter uma ideia, o ponto mais baixo do território está a 1.400 metros do nível do mar. Isso torna esse pequeno reino no Estado com a maior altitude mínima do mundo. Ainda assim, nada que se equipare ao altiplano boliviano.
Nascido na cidade de Mohale’s Hoek, a quase 100 km da capital lesotiana Maseru, o atacante Thabiso Brown, de 24 anos, vem sendo notícia em Oruro, na Bolívia. Pelos seus números, parece que ele não sofreu com o mal da montanha, ao contrário. Na última temporada, o africano foi campeão e fez 30 gols em 20 jogos pelo campeonato da Asociación de Fútbol Oruro (AFO), uma espécie de Estadual que garante a classificação para a Copa Símon Bolívar, a segunda divisão do futebol boliviano. Atuando pela Empresa Minera de Huanuni, que manda seus jogos a 3.970 metros de altitude, o jogador chegou ao seu ápice em 2019, mas poucos sabem como foi difícil para ele essa caminhada.
“Um amigo de Camarões sugeriu que eu fosse à Bolívia jogar em um time da primeira divisão, marcar gols para depois ir para Europa ou México, mas não foi como eu imaginei quando cheguei aqui. Era mentira. O clube que estava esperando por mim estava na segunda divisão (de Oruro), mas eu tinha que jogar e fazer meu nome por aqui”, relata Thabiso Brown. O lesotiano chegou em 2017 e seu primeiro clube na América do Sul foi o JCDT Bolivia FC, que também joga na Asociación de Fútbol Oruro.
Thabiso pouco sabia quando aterrissou naquela parte da América do Sul.
“Quando meu amigo me falou sobre o país, eu apenas sabia que eles estavam na posição 60º do ranking da FIFA, e eu pensei que isso ia ajudar a desenvolver meu futebol e também poder ajudar minha seleção. Custou um pouco para eu me acostumar, mas não muito. A comida, o clima, o idioma e a altitude foram problemas pequenos. Para jogar na altura tive que treinar o dobro para não sentir os efeitos e conseguir me destacar em campo”, conta.

Um jogador de Lesoto na Bolívia é incomum. Assim como em qualquer parte do mundo. Com uma pequena população de cerca de 2 milhões de habitantes, a nação africana não se especializou em exportar jogadores de futebol. Da seleção atual, 139º do ranking da FIFA, os únicos “estrangeiros” do plantel atuam na África do Sul, país que cerca totalmente o pequeno reino, o que o torna um dos três territórios independentes do mundo a ser um enclave, e o único fora da Península Italiana, onde San Marino e Vaticano estão nessa mesma condição em relação à Itália.
Após atuar no JCDT Bolívia FC, Thabiso Brown foi contratado em 2018 pelo Deportivo Sur-Car, também da Asociación de Fútbol Oruro. Lá conseguiu ganhar mais destaque e ser contratado pela Empresa Minera de Huanuni, equipe que defendeu neste último ano. O clube “mineiro” era o bicampeão do campeonato local quando contratou o lesotiano e disputava a Copa Símon Bolívar, a segunda divisão da Bolívia. Isso abriu os olhos dos bolivianos que não conheciam o atacante de Lesoto. Foram 11 gols em 10 partidas, mas o clube do africano não passou para as fases finais que valiam o acesso à elite do futebol do país sul-americano.

“O que eu vi na Copa Simón Bolívar é muito mais pressão por um futebol de resultados, enquanto que na primeira divisão de Oruro o jogo é mais tático e rápido. Eu acredito que o trabalho duro me ajudou a me destacar em ambos os torneios. Eu rezo e tenho a esperança que em 2020 eu consiga atuar por um clube profissional da primeira divisão daqui”, analisa Thabiso Brown.
Sobre o clube atual, Thabiso Brown é só elogios: “Os torcedores do meu time são fantásticos”. A Empresa Minera de Huanuni é da cidade de Huanuni, que fica a 45 km de Oruro. Os estonteantes 3.957 metros de altitude do município hospedam a capital do estanho da Bolívia. Lá fica uma das maiores minas desse metal branco prateado do continente sul-americano. Já a companhia que batiza o clube é propriedade da Corporación Minera de Bolívia (COMIBOL), uma das grandes empresas da nação. Essa região do país é a que pratica o esporte há mais tempo: a primeira agremiação futebolística boliviana é o Oruro Royal, fundado em 1896, pela influência dos trabalhadores que construíam a ferrovia que levaria o minério para os portos. O fanatismo dessa parte do território boliviano pelo futebol é vista no San José, um dos times mais vitoriosos e populares do Campeonato Boliviano.
Além dos torcedores de Huanuni, Thabiso relembra que também foi “apoiado” pelos rivais: “Alguns adversários também torceram por mim. Foi quando eu fiz três gols em Cochabamba, pela Copa Símon Bolívar, contra a equipe do Arauco Prado”.
Thabiso, que fala um espanhol que não é fluente, porém compreensível, sem problemas de comunicação, vive em Oruro, enquanto seus familiares continuam no continente africano. “Eu acho que minha vida na Bolívia é boa. Já me acostumei à cidade. Vivo aqui com mais duas pessoas, ambos bolivianos de Santa Cruz. Já minha família está na África do Sul”, relata.

“Talvez eu continue na Bolívia, mas para falar a verdade eu desejo jogar em outros países da região, Peru, Brasil, Argentina, Chile ou México, para falar alguns. Meu sonho é jogar a Liga dos Campeões da Europa ou a Liga Europa em alguns anos, mas se nada estiver sobre a mesa eu continuarei na América do Sul, aproveitando minha carreira futebolística neste continente. Meu objetivo aqui é jogar a Copa Libertadores ou a Copa Sul-Americana. Não penso em jogar no River Plate, Boca Juniors, Flamengo ou Grêmio (eu os considero gigantes no futebol da América do Sul), mas ao menos enfrentá-los”, revela.
Atrás de seus sonhos, Thabiso Brown já rodou o mundo. Além da passagem pela Bolívia, o atacante fez um período de testes em dois clubes europeus em 2016: Chornomorets Odessa (Ucrânia) e St. Andrews (Malta). O atacante também já defendeu a seleção do Lesoto, tanto a principal quanto a sub-20. Seu trabalho no estrangeiro ainda não o ajudou a ser convocado para o plantel dos Likuena, que significa crocodilo em sesoto, a língua do seu país.
“Eu não acho que jogar na Bolívia aumentou meu prestígio em Lesoto. Claro que entre meus seguidores e familiares ele cresceu por eu estar aqui, o que eu acredito ser o suficiente. Desde que me mudei para o país, eu nunca mais fui convocado para a seleção. Ainda assim, recentemente conversei com o diretor técnico de Lesoto que é meu antigo treinador.”
As convocações de Lesoto permitem que Thabiso enfrente grandes estrelas mundiais, como ele relembra: “Já joguei contra a seleção da Argélia. Eles tinham craques como Riyad Mahrez, Yacine Brahimi, Islam Slimani e Sofiane Feghouli, para nomear alguns”.
O futebol no Lesoto
“O Lesoto é uma nação que ama o futebol. Eu vejo foto dos torcedores e acredito que existe mais público para os jogos do campeonato local, mas eles também seguem times do estrangeiro. O clube mais popular é o Matlama, mas agora existem outras equipes que alcançaram as pessoas como Bantu, Lioli e Kick4Life”, afirma Thabiso.
Em seu país natal, Thabiso Brown defendeu as camisas do Sky Batallion, Majantja, Super Kingdom e Kick4Life. No último, foi onde mais se destacou. Na temporada 2016/17, o atacante foi o vice-artilheiro do Campeonato Nacional do Lesoto, a Premier League, com 17 gols.
“Eu joguei por três temporadas no Kick4Life. Ele é o primeiro clube de futebol do mundo que é dedicado à mudança social através do esporte. Ajuda alguns órfãos com doações de Lesoto e da Europa, e também auxilia na luta contra a pobreza e doenças. Foi aberto por duas empresas que geram fundos para caridade e dão oportunidades de trabalho para a juventude”, explica.

“O futebol do Lesoto tem o azar de não ser profissional, mas eu acredito que nós temos mais talento que nas divisões inferiores da Bolívia. A última vez que vi, o esporte no meu país ainda era semiprofissional. Aqui em Oruro é mais ou menos parecido, só é totalmente profissional na primeira divisão, como no San José de Oruro. Ainda assim, eu apenas jogo futebol aqui e às vezes no fim de semana disputo partidas amistosas com meus amigos.”
Ao nível de seleção, Thabiso tem o sonho de ver sua nação em uma grande competição: “Eu tenho acompanhado o futebol do Lesoto e acredito que está crescendo, mas em uma velocidade lenta. Nada é impossível e eu acredito que um dia veremos meu país em uma Copa das Nações Africana, e espero estar lá quando isso acontecer”.
A vida no Lesoto
O desconhecimento sobre Lesoto é grande entre os sul-americanos, então Thabiso pode ser considerado uma espécie de embaixador da sua nação na Bolívia. “Tenho companheiros do Equador e da Argentina e sempre falo para eles como meu país é relaxante. Atrações como AFRISKI, Lesotho Sky e Roof of Africa, apenas para mencionar alguns”, sugere aos viajantes. O país tem estações de esqui por conta das suas elevadas alturas, uma delas é o AFRISKI, além de sediar importantes eventos esportivos. O Lesotho Sky é uma prova de ciclismo, enquanto o Roof of Africa é um rali off-road de motos. A exuberância do terreno montanhoso surpreende os turistas que visitam essa parte do continente africano, de apenas 30.355 km², um pouco menor que a Bélgica.
Sobre sua infância, Thabiso revela não ter sido sofrida como a de muitos africanos.
“Minha mãe era superintendente sênior de polícia e meu pai trabalhava na África do Sul. Na maioria das vezes, eu estava com minha mãe no Lesoto, enquanto meu irmão e irmã estudavam na África do Sul. Sendo o filho mais novo, minha infância foi boa, apesar de minha mãe não querer que jogasse futebol. Ela queria que eu fosse para a escola e fiz isso”, conta.
A relação entre África do Sul e Lesoto como Thabiso exemplificou com sua família é grande. Boa parte dos rendimentos do país vem do dinheiro que é enviado da África do Sul para os familiares. Outro marco importante entre ambos os Estados foi na época do Apartheid, quando os lesotianos receberam diversos sul-africanos que fugiram do regime racista que governava na época.
A própria formação do território tem relação com os vizinhos sul-africanos. No século XVI, o povo basotho estabeleceu sua monarquia após diversos conflitos com os zulus, maior grupo étnico da atual África do Sul. Em 1822, o reino foi conhecido como Bassutolândia e era governado pelo rei Moshoeshoe I. Após entrarem em enfrentamentos com os bôeres, a pequena nação pediu ajuda aos britânicos, que transformaram o território em um protetorado em 1869. A independência do Reino Unido só veio em 1966 e foi adotado o nome Lesoto, que significa “o país dos que falam sesoto”.

Só que diferente da África do Sul e de outros países do continente africano, o Lesoto é a nação etnicamente mais homogênea do continente. Cerca de 99.7% da população deste pequeno reino é Basotho. “Eu devo ter genes deles, porque minha mãe é lesotiana, enquanto meu pai nasceu na região Basotho da África do Sul”, conta Thabiso. Um dos símbolos desse povo é o Mokorotlo, um chapéu que é supostamente inspirado na paisagem cônica do Monte Qiloane, e que pode ser visto na bandeira nacional e nas placas dos carros de lá.
Com um baixo IDH e uma grande dependência da África do Sul, Thabiso Brown explica sua visão sobre seu país e continente.
“Pessoalmente, não acho que a África tenha nações pobres, acho que os líderes estão causando todos os problemas, porque a maioria dos estados africanos tem uma fonte enorme para gerar renda, mas os líderes administram mal o dinheiro. Penso que o Lesoto é como os outros vizinhos. Temos sorte de não ter uma população enorme, mas não somos um sucesso”, opina o atacante.