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Tita, o Édipo (ou o anti-Édipo) rubro-negro

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 9 de janeiro de 2023

Quando falamos em Tita, logo lembramos de um lendário jogador que se tornou um mito vestindo o manto rubro-negro. É o craque da camisa 7 que figura em pôsteres da escrete Campeã Mundial do Flamengo de 1981. Quando falamos em Édipo, lembramos sempre de um personagem mítico grego que, sem saber, matou seu pai e desposou sua mãe. Mas você que nos lê deve estar se perguntando: qual a relação de Tita com o Édipo? Bom, sobre isso podemos pegar de empréstimo o enigma da esfinge de Édipo: “Decifra-me ou te devorarei”. Então, senta-se aí, leia e decifre você mesmo/a.

Tebas era governado pelo rei Laio e pela rainha Jocasta. Preocupados com a sucessão do seu reinado, ambos tentavam desesperadamente ter um filho. No entanto, após várias tentativas falhas, Laio decidiu consultar o oráculo de Delfos sobre o tema. Chegando lá, o oráculo lançou a predestinação: “vocês terão um filho, porém, ele matará o pai e desposará a mãe”. Mesmo diante do mau agouro, o casal engravidou. Quando o filho nasceu, Laio foi possuído por um imenso medo de que o presságio se cumprisse e levou o filho recém-nascido até a floresta, pendurando-o pelos calcanhares em um arbusto para que os animais o devorassem, bem como também fagocitassem a profecia. Indefeso na mata, o bebê foi encontrado por alguns soldados do rei de Corinto que por ali passavam. Compadecidos da situação, decidiram levar o menino e o batizaram com o nome de Édipo, que significa “dos calcanhares machucados”. Édipo então é levado a Corinto e ali passa a ser criado pelo rei Políbio para ser seu herdeiro.

Milton Queiroz da Paixão, mais conhecido como Tita, iniciou muito menino (12 anos) nas categorias de base do Flamengo, e sete anos depois foi lançado na equipe principal do Fla. Tita era um grande meia-armador, mas como brigar pela posição com Zico, Andrade e Adílio que jogavam por aí? O jeito foi jogar improvisado no ataque pelo lado direito. Pela sua versatilidade com a bola, não foi nenhum problema para ele jogar mais pelo lado do campo, apesar de nunca ter escondido que gostava mesmo era do meio-campo (da camisa 10). De alguma forma, o rei Zico passou a ser uma “agulha” a alfinetar o calcanhar de Tita, mas como destronar o “Rei da Gávea”? Esse desconforto velado ainda custaria caro para o Flamengo. Foi lançada a profecia.

 

Anos mais tarde, já adulto, Édipo estava em uma das festas dada pelo rei Políbio e ouviu um dos soldados que o resgatou dizer que ele não era digno de suceder o rei de Corinto por ser estrangeiro. Quando Édipo questionou “seu pai” sobre tal condição, este lhe sugeriu não dar atenção ao que um soldado bêbado dissera. Desconfiado e não satisfeito com a resposta, Édipo foi até o oráculo e descobriu sua trágica predestinação. Como não sabia nada sobre seus pais verdadeiros, Édipo acreditava que Políbio e sua esposa fossem seus progenitores, então resolveu fugir de Corinto para não prejudicá-los, acreditando que os livraria do mau agouro de sua profecia.

Em 1982, o então técnico da seleção Telê Santana convocou Tita para disputar a Copa do Mundo de Futebol como atacante. Tita não se apresentou, alegando que só iria à Copa se fosse convocado para jogar de meia. Com Toninho Cerezo, Sócrates, Falcão e Zico para a posição, Telê dispensou Tita. Em 1983, Tita foi emprestado pelo Flamengo ao Grêmio de Futebol Porto-Alegrense. Com a camisa 10 do tricolor, Tita jogou e se consagrou campeão da Libertadores daquele ano. Porém, em outubro, retornou à Gávea e não disputou a final do Mundial Interclubes pelo Grêmio. Em 1985, com a ida de Zico para o futebol italiano, Tita se tornou o meia cerebral do Flamengo e herdou a camisa 10 do Rei. O que durou pouco tempo, porque neste mesmo ano ele voltou a Porto Alegre para jogar no Colorado do Saci Travesso — apelido do Internacional.

Por uma “não ironia do destino”, em sua fuga, Édipo de Corinto foi em direção a Tebas sem saber que o trajeto lhe reservava um reencontro fatídico. Pelo lado oposto do caminho estava Laio, que saiu desesperado de Tebas para buscar ajuda. Seu reino estava em risco porque um grande monstro (uma esfinge alada, com corpo de leão e rosto de mulher) estava a devorar seus súditos. A esfinge se aproximava dos moradores de Tebas e dizia: “Decifra-me ou te devorarei”. Ela então lançava uma espécie de charada e caso a pessoa não soubesse responder virava comida para o monstro. No cruzar dos caminhos (e dos destinos), a carruagem que levava Laio passou por cima dos calcanhares de Édipo. Enfurecido, ele se envolveu em uma luta corporal com a tripulação, matando todos que vinham na carroça, inclusive, seu pai Laio. Estava cumprida a primeira parte da profecia de Delfos.

Jocasta, ao saber da morte de Laio, decide dar o trono de rei de Tebas a quem conseguisse exterminar a esfinge. Édipo se encoraja e vai até o monstro, que lança a ele o seguinte enigma: “Quem pela manhã anda com quatro patas, ao meio-dia com duas e à noite com três”? Édipo prontamente responde: “o ser humano, que ao nascer engatinha em 4 apoios, na juventude caminha com suas 2 pernas e na velhice anda com a ajuda de um cajado”. O monstro desvaneceu e Édipo foi declarado rei de Tebas, casando-se assim com a rainha, sua mãe. A união de ambos resultou em quatro filhos. Estava cumprida por completo a profecia do oráculo.

Em 1987, Tita retornou ao futebol carioca, vestindo a camisa do rival de São Januário. A final do Campeonato Carioca daquele ano, agora sim “por ironia do destino”, se deu entre Flamengo e Vasco. Com o gol do camisa 7 Tita, o Vasco bateu o Flamengo de Zico por 1 a 0 e se consagrou campeão. Isso mesmo, Tita jogou com a 7. A 10 estava com ele, o rei do gigante da colina, Roberto Dinamite. Nesse trágico dia se cumpriu o mau presságio: “Tita mata seu pai”.  No final de 1987, Tita foi transferido para a Itália, onde jogou pelo Pescara. Em 1989, retornou ao Vasco e se consagrou campeão brasileiro daquele ano. Cumpriu-se assim a outra parte do mau agouro, e os flamenguistas viram Tita se tornar campeão com a camisa de seu maior rival. Nesse dia, chorou a mãe rubro-negra que pariu Tita, Andrade e Bebeto, já que estes dois últimos também compuseram a nau cruzmaltina campeã brasileira daquela temporada.

Anos se passaram até que Tebas fosse acometida por uma grande peste, e o motivo foi desvelado pelo oráculo: “aquele que matou Laio deve ser expulso de Tebas”. Édipo rei então sai à procura do assassino sem saber se tratar de si mesmo. É quando o sábio Tirésias revela a Édipo seu trágico destino. Jocasta ao saber que foi desposada por seu filho, o qual também matou seu marido, enforca-se em seus aposentos. Consternado com o mal que fez aos seus pais, Édipo vaza seus próprios olhos para não ter que olhar para eles no mundo dos mortos.

O tempo passou e Tita virou comentarista esportivo. Agora, a agulha que feria seu calcanhar ele retirou e a colocou na língua para espetar a torcida rubro-negra com alguns comentários que parecem fundados em quem “não está vendo o jogo”. Seria Tita um “Édipo fura olho”? Preferimos acreditar que isso é somente nossa condição trágica e mitológica de não admitir termos amado tanto o craque da camisa 7 daquele lendário time que fez história no clube. Um amor que tivemos que dividir com outras torcidas. Tita atuou pelo Flamengo de 1977-1985 (com uma pausa em 1983) e em 1990. Com o time, ele foi tetracampeão carioca (1978, 1979, 1979 (especial) e 1981), bicampeão brasileiro (1980 e 1982), campeão da Copa Libertadores e do Mundial de 1981. Tita, você é para o Flamengo o que Édipo é para a Mitologia Grega: um grande e central personagem!

Quem não nasce Flamengo sofre de um mal que o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1996) denominou de “complexo de Édipo” que, grosso modo, nada mais é do que o desejo infantil de se casar com a própria mãe. Por isso, muitos preferem furar os olhos do que ver o Flamengo campeão. Bom, ou você pode ler “O anti-Édipo” escrito por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) e entender que o “complexo de Édipo” é questionável e se dilui diante de outros entendimentos.

Por exemplo, a partir da perspectiva deleuzo-guattariana, a figura do Édipo na clínica psicanalítica faz reduzir tudo ao triângulo familiar filho-papai-mamãe. O pai, repressor, castrador do desejo do filho o faz buscar proteção na mãe, pela qual tem desejo. O desejo, assim, fica limitado ao familismo. O que Deleuze e Guattari vão formular é que o desejo não é falta, nem está reduzido ao ambiente familiar, mas que ele é produção (a quais elementos o corpo consegue se conectar?) e investe na produção social. Ora, e se a carreira de Tita fora do Flamengo não se tratou, como tentamos tencionar aqui por meio do mito de Édipo, de uma busca a superar “seu pai”, mas sim de uma capacidade criativa de seu desejo? Ao buscarem pensar para além da psicanálise, uma das principais atividades daquilo que Deleuze e Guattari sugeriram como “esquizoanálize” é a tentativa de produção de novos “existenciais” que intensifiquem o desejo. Foi isso que talvez presenciamos: Tita experimentando além do território familiar que era o Flamengo.

Bom, não temos como saber nada para além de nossas próprias interpretações. Seja com o Édipo ou com o anti-édipo, não importa. Até porque se o destino de Tita tivesse sido predestinado por seu nascimento, ele seria uma grande mentira, afinal, nasceu em 1° de abril (tal qual Elder, coautor da crônica). O que isso tem a ver? Tudo, porque tanto Tita quanto Édipo podem ser vistos e escritos a partir de vários olhares, inclusive, os olhares que emanam de olhos vazados.

Referências

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010.

FREUD, Sigmund. A dissolução do complexo de Édipo (1924). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, p. 189-199, 1996.

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Tita, o Édipo (ou o anti-Édipo) rubro-negro. Ludopédio, São Paulo, v. 163, n. 9, 2023.
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