75.12

Todo dia é dia de Galo

Marcelino Rodrigues da Silva 28 de setembro de 2015

Andei falando, neste espaço, sobre as biografias de jogadores de futebol. Peço licença, agora, para um momento autobiográfico. Quero falar um pouco sobre minha própria experiência, como torcedor e espectador do filme O dia do Galo, documentário de longa-metragem sobre a final da Libertadores de 2013, vencida pelo Atlético Mineiro contra o Olimpia, do Paraguai. Dirigido por Cris Azzi e Luis Felipe Fernandes e produzido por Alicate, Cris e Nitro Imagens, o filme foi premiado no Cinefoot 2014 e vem fazendo bonita carreira nos cinemas e na internet. A aventura já tem uns dias, não tive tempo de repeti-la, por isso não tenho todas as informações na cabeça. Peço licença, então, para contá-la de memória, sem muita preocupação com a fidelidade e a completude dos dados. Vamos lá:

Fui outro dia ao filme, com a Lela, numa sexta-feira à noite, naquele espírito de “enfim podemos fazer alguma coisa juntos…”, típico de casais com filho pequeno. Mas, logo que chegamos ao cinema, o clima já ficou um pouco diferente. Na sala de exibição, vários casais se acomodavam, com suas pipocas e seus copos de refrigerante, como seria de se esperar naquelas circunstâncias. Mas uma frequência incomum de camisas pretas e brancas já anunciava que não veríamos nenhuma comédia romântica.

Começando o jogo, digo, o filme, alguns gritos contidos: “Galô! Galô!” O filme começa lento, muito lento. Um casal acorda, faz café, conversa descompromissadamente… e já ouvimos alguns sussurros: “olha, é o Celinho, meu colega de faculdade, faz tanto tempo que não vejo esse cara.” Segue o filme e vemos outras casas comuns, outras pessoas comuns começando o dia, se arrumando, saindo pro trabalho. Aos poucos surgem os primeiros papos sobre o jogo de logo mais, as primeiras camisas, um ou outro grito de “Galô” trocado entre os passantes da rua.

Acompanhamos, então, o dia de torcedores comuns, gente de todo tipo, e também de alguns personagens mais famosos e importantes na trama que se desenrolava, como o narrador Mário Henrique Caixa, da rádio Itatiaia. As conversas ao pé do ouvido, entre espectadores que reconhecem as pessoas e os lugares que aparecem na tela, continuam se repetindo. Ao meu lado, Lela se queixa da lentidão do filme. Parece ser também a reação de outros espectadores.

Mas aos poucos, enquanto vai se aproximando a hora do jogo, o clima vai esquentando. Vão se avolumando e se sucedendo os gritos, as camisas, os rituais dos torcedores, a saída e a caminhada daqueles que estão indo ao estádio. Aparece o torcedor sambista e fanfarrão, o desesperado, o padre tranquilo, a turma de mulheres que vê o jogo em casa (onde estarão os homens?), uma fanática e simpática velhinha… Para os atleticanos (acho que 100% da plateia do cinema), impossível não pensar: Como foi mesmo o meu dia? Onde mesmo eu vi a partida? O que eu estava fazendo nessa hora? Como eu estava vestido?

Quando chega a hora do jogo, a câmera não mostra o campo, mas os torcedores (no estádio, nos bares, em suas casas…) e a bancada da equipe da rádio Itatiaia. Principalmente, o corpo e a fisionomia do Caixa, cuja voz potente e o estilo singular de narração (uma curiosa mistura entre o grito gutural de entusiasmo e a suavidade do sussurro) dominam completamente o áudio. Junto com ele, os torcedores vibram, se desesperam, se espantam… Nos momentos mais emocionantes, a plateia do cinema chegava a vibrar com se estivesse no estádio. “Ah, meu Galo, por que que tem que ser sofrido assim…” “Vai lá Galão!” “É hoje!” (Vejam bem: É hoje!).

No lance final da partida, a câmera, enfim, vira-se para o campo e mostra o último pênalti, a bola chutada na trave pelo jogador do time paraguaio, voltando imediatamente para os torcedores e para a bancada da Itatiaia, onde vemos os abraços e os estertores do Caixa ao microfone. Nessa hora, tive a frieza de desviar os meus olhos atleticanos da tela e dirigir meus olhos estudiosos para a plateia. Vi gente vibrando, casais se abraçando, lágrimas escorrendo e, em todos os olhares, um brilho genuíno de campeão da Libertadores, de quem se alivia de anos e anos de espera e sofrimento, como se tudo tivesse acontecido de novo. De certa forma, era difícil distinguir o que se passava na tela e o que se passava na plateia.

9362039791_8a0162c152_o
Jogadores do Atlético Mineiro levantam a taça da Libertadores da América de 2013. Foto: Bruno Cantini – Clube Atlético Mineiro.

O filme acaba bruscamente, pouco depois, mostrando a comemoração da torcida. As luzes se acendem, mas o clima ainda não é de sexta no cinema. Ouve-se o hino, assobiado, e mais alguns gritos tímidos. Só voltou ao normal pouco depois, quando abandonamos a sala e começamos a conversar sobre onde seria a pizza. Mesmo assim, eu ainda guardava um pouco daquela sensação de campeão da Libertadores, e fui à pizza com todo o apetite.

Depois fiquei pensando: como foi ousada a aposta feita pela produção! Distribuir aquelas câmeras pela cidade, acompanhar de diferentes maneiras a passagem daquele dia, sem saber no que ia dar, como ia ser o final da história. Depois, uma dose bem calculada de engenho: a montagem e o tratamento das imagens e dos sons, a estrutura narrativa em que todo aquele material foi reunido, a sensação de lentidão, o clima que vai crescendo ao longo do dia e o final apoteótico. Até a reação de tédio da plateia, no início, parece agora incorporada à lógica da narrativa. A sucessão de personagens, lugares e cenas mais ou menos conhecidos por todos captura não só a atenção, mas também a memória e os corações do público. Aos poucos, vamos ativando nossas próprias lembranças, como se fizéssemos parte daquilo tudo, como se tivéssemos vivido aquela história.

BELO HORIZONTE / MINAS GERAIS / BRASIL (01.08.2013) Comemoração do título da Libertadores na Praça Sete em Belo Horizonte - Foto: Bruno Cantini
Comemoração do título da Libertadores na Praça Sete em Belo Horizonte. Foto: Bruno Cantini – Clube Atlético Mineiro.

Simples assim, está aí o truque: porque nós realmente fizemos parte daquilo tudo, nós realmente vivemos aquela história. O filme não só nos transporta para um tempo/espaço imaginário, para um mundo à parte criado por ele. Ele nos transporta também para um tempo/espaço que foi o nosso, aquele que nós experimentamos com nosso próprio corpo e que perdemos com a passagem do tempo, mas que não queremos esquecer. Ele nos faz experimentar esse tempo novamente, na escuridão da sala de cinema, ao lado de outros atleticanos como nós. Uma sensação incrível de encontro com o passado!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marcelino Rodrigues da Silva

Professor de literatura na UFMG.

Como citar

SILVA, Marcelino Rodrigues da. Todo dia é dia de Galo. Ludopédio, São Paulo, v. 75, n. 12, 2015.
Leia também:
  • 78.7

    Futebol, Kung Fu e lendas brasileiras

    Marcelino Rodrigues da Silva
  • 77.5

    O gênio de 3 Corações

    Marcelino Rodrigues da Silva
  • 73.5

    O craque que não foi

    Marcelino Rodrigues da Silva