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Tóquio 2020, o COVID-19 e as vidas que valem a pena

Wagner Xavier de Camargo 22 de março de 2020

Em meio à crise mundial relativa ao COVID-19, ou mais popularmente conhecido como “Coronavírus”, o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos/Paralímpicos de Tóquio 2020 insiste em seguir o cronograma de atividades previamente planejado. A tocha olímpica chegou ao Japão nesta sexta-feira (20 de março), no mesmo dia que em que Itália teve recorde de mortes pelo nefasto patógeno – mais de 600 pessoas em 24 horas. Em que pese as autoridades japonesas terem realizado uma cerimônia discreta, restringido público e mantido crianças à distância, ainda mantiveram todo o protocolo.

Jogos Olímpicos Tóquio 2020 – Chama olímpica chegou ao Japão na última sexta-feira, 20 de março de 2020. Foto: Reprodução/Twitter/Tokyo 2020/Erika Shimamoto.

A pergunta que fica frente a tudo isso é: qual é o sentido de realização dos Jogos Olímpicos em meio à pandemia que o mundo vive? Honrar compromissos e contratos assinados? Como podem os organizadores, de antemão, prever quais vidas valem a pena e quais outras são desprezadas? Pois, no limite, o que está posto em jogo é exatamente isso, em múltiplas e variadas dimensões.

O COVID-19 chegou dando as cartas. É um vírus que exerce seu “poder democrático” (aspas irônicas). Afinal: atinge a todos sem exceção. Claro que os danos são sentidos nos mais anciãos, mas ele não poupa ninguém e, nesse sentido, instaura a igualdade e o risco de morrer por onde passa. O problema é quem tenta lidar com ele, particularmente os Estados nacionais, que com suas diretrizes de isolamento social, cerceamento de liberdade do ir-e-vir, fechamento de fronteiras, proibições várias, decidem quem vive e quem morre. E quando o Comitê japonês insiste na manutenção do calendário está, da mesma maneira, legislando sobre a vida de uns e morte de outros, mesmo em meio às supostas boas intenções. Eis que cruzamos esporte, (geo)política, economia e saúde pública.

Enquanto escrevo este texto e me mantenho plugado no noticiário, dois Comitês Nacionais (o Olímpico da Noruega e o Paralímpico do Brasil) pedem para que os Jogos sejam cancelados. Além disso, atletas já começam a ter problemas com seus períodos de treinamento – o nadador brasileiro Bruno Fratus, em ascensão desde dos Jogos Pan-Americanos em Guadalajara-2011, esclareceu em rede social que está nesta situação por usar uma piscina pública nos EUA que fechou recentemente. Nesta mesma sexta que me referi, a federação estadunidense de natação requisitou ao Comitê Olímpico daquele país (USOC) para protocolar pedido de adiamento da competição olímpica. Tudo indica que a federação de atletismo fará o mesmo, pois a ambas interessa tal decisão, visto que sempre faturam grande parte das medalhas à disposição. No momento, o caos trazido pelo vírus têm atrapalhado as periodicidades dos treinamentos.

Até onde se sabe, o COVID-19 é implacável e mata. As medidas urgentes que estão sendo tomadas no mundo todo só demonstram o fracasso dos Estados nacionais em se anteciparem à pandemia. Tudo é urgente, restritivo, proibitivo. Na tônica de uma agenda neoliberal e no ataque à Ciência (aqui e acolá em níveis distintos, obviamente), agora vigoram cobranças desesperadas e oferta de milhares de dólares para exclusividade de direitos sobre uma vacina – como Trump propôs a uma empresa alemã.

Tendo trabalhado com diferentes grupos de atletas com deficiência, que possuíam feridas expostas, escaras e baixa imunidade (particularmente tetraplégicos), e que mesmo assim participaram de Jogos Paralímpicos, gostaria de saber dos organizadores de Tóquio 2020 que medidas eles estão planejando para proteger tais sujeitos contra o COVID-19 durante as competições esportivas? Isso tem que ser posto em questão, pois ainda estamos ouvindo afirmativas de que os megaeventos esportivos ocorrerão no Japão!

As desigualdades econômica e social têm potencializado ações distintas do COVID-19 e não por sua culpa, diria. No Brasil, há relato de empregada doméstica, que ao cuidar de patrões infectados, veio a óbito. No mundo do home office, ricos e bem-sucedidos que trabalham e “movem a economia” (será?) sobreviverão; pobres, negros, favelados e… morrerão. A doença importada por pessoas ricas que viajam transforma-se em doença intracomunitária e, por ironia, que atinge/atingirá a quem não tem como lavar as mãos (porque não tem água), não tem álcool gel (porque não tem dinheiro para comprar ou nem sabe o que é isso) e não tem como “ficar em isolamento”, porque tem que trabalhar para sustentar a si e familiares.

E por mais enigmático que seja tal vírus, ele é, certamente, obstinado: segue cumprindo o seu papel de infectar e comprometer organismos. Nós, humanos, reagimos movidos pelo que nos caracteriza: nosso egoísmo, nacionalismo, racismo, classismo e mesmo capacitismo – se a ocorrência os Jogos Olímpicos já é um risco para atletas saudáveis e corponormativos, será um crime para pessoas com limitações orgânicas, físicas, sensitivas.

Logos dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos a serem disputados em Tóquio, Japão. Foto: Divulgação.

Reeditando um argumento da filósofa estadunidense Judith Butler, essa situação levanta a questão que parece legítima a se fazer nesse momento: que vidas valem a pena serem protegidas a qualquer custo e que outras (vidas) não são consideradas dignas de valerem o suficiente para garantir suas existências frente à morte? E quando me lembro desta colocação não estou pensando apenas nas pessoas com deficiência e os Jogos, mas no conjunto de pessoas excluídas pelas prementes “medidas de segurança” (dizem) contra o Coronavírus.

A mais tecnológica e supostamente perfeita Olimpíada não esperava por isso; por um vírus que desrespeita, ousadamente, desprogramar compromissos, cancelar protocolos, inviabilizar uma organização milionária, inclusive comprometendo contratos televisivos, de transmissão e de financiamentos.

Como já vivi dentro de times organizacionais de competições de grande porte, sei que o Comitê Organizador dos Jogos está passando por grandes pressões pelo cancelamento, tanto da comunidade internacional de atletas e federações, quanto (e provavelmente) de atletas e órgãos locais. Se Tóquio 2020 for mantida, pode passar para a História como a “Olimpíada da Discórdia” ou “da Desgraça”.

O fogo da tocha, símbolo da união dos povos em torno do chamado “espírito olímpico”, já está na Terra do Sol Nascente. À semelhança de crianças maravilhadas com o brilho do fogo, os japoneses têm que se cuidar. Afinal, quem brinca com fogo pode se queimar, diz o ditado. E como ainda estamos há quatro meses da abertura dos Jogos Olímpicos, muita coisa pode acontecer!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Tóquio 2020, o COVID-19 e as vidas que valem a pena. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 24, 2020.
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