101.23

O torcedor e a indignação seletiva

Marcos Teixeira 23 de novembro de 2017

-Filho da puta!

Foi esse o grito que mais se ouviu quando o sibilar do apito combinou com a mão do árbitro apontando para a marca da cal. Pênalti claro, indiscutível.

– Ele se jogou, não foi porra nenhuma!

O desespero era total, quase como a indignação contra quem teve a petulância de marcar a penalidade máxima contra os donos da casa no clássico. Total porque a violência triunfara e apenas a torcida do mandante pode entrar no estádio.

Seguiu-se um silêncio ensurdecedor, quebrado somente pelo grito solitário de quem converteu a infração em gol.

– Goleiro de merda! Esse bosta nunca acerta o canto!
– É só esperar, pular na bola e defender, caceta!
– Vendido! Frangueiro safado!

Especialistas se espalham nas cadeiras numeradas. Detratores também. O ruído da intolerância ecoa nas mídias sociais, na página daquele que ele detesta porque ou joga no time rival ou não defende o seu com o ânimo que deveria. E na página do jornal repleto de torcedores-jornalistas, esta praga contemporânea.

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Torcedor reclama da arbitragem. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Mas uma das regras que não constam nas 17 que regem o futebol é a da compensação, ainda mais se for a favor do mandante (alguns chamam de bom senso) e outro pênalti, nem tão claro assim, não tardou.

– Aê, caralhoooooooo! Cadê o cartão, juiz? Pênalti é cartão, tá na regra!

Desta vez, o estardalhaço é geral e o gol, registrado por milhares de smartphones, que eternizam em bits o que antes era propriedade da retina, antecede o grito da torcida que percorre o gigante de concreto, vergalhão e tecnologia hightec.

A diferença entre o esfregar satisfeito das mãos e os gestos obscenos está no lado para onde aponta a mão do árbitro.

Ao fim da partida, o torcedor, que pagou caro pelo ingresso e foi achacado pelo flanelinha, vai embora feliz com o resultado, ávido por ouvir ou ler os jornalistas que bradam defendendo seu clube, tendo razão ou não. O que ele procura é um endosso, um porta-voz do seu fanatismo, que tenta justificar como sendo amor. Quem não servir-lhe como caixa de ressonância é parcial, jornalista-de-merda, torcedor do rival.

– Esse desgraçado é um vendido! Por isso que o jornalismo tá esse lixo! Enrustido de merda!

Às vezes ele tem razão.

Depois disso, estará pronto para encarar a semana de trabalho, quando, com alguma sorte, receberá um troco a mais outra pequena vitória qualquer. E vibrará com isso como num pênalti inexistente a favor.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Teixeira

Jornalista, violeiro, truqueiro e craque de futebol de botão. Fã de Gascoine, Gattuso, Cantona e Rui Costa, acha que a cancha não é lugar de quem quer ver jogo sentado.

Como citar

TEIXEIRA, Marcos. O torcedor e a indignação seletiva. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 23, 2017.
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