Por que torcemos por um time de futebol? Por que ficamos alegres quando nosso time ganha e tristes quando ele perde? Por que gritamos, xingamos e até choramos diante da televisão ou em um estádio? Estas são questões que quase nunca nos fazemos, os que torcem por algum time, mas que provavelmente são levantadas por aqueles que não se ligam a nenhum time, os que não gostam de futebol.

De fato, o torcedor é sempre um fanático no sentido amplo do termo. No sentido estrito, o fanatismo fala de intolerância com a comemoração do adversário e do sujeito que regula sua vida pelos resultados de seu time. Mas torcer se contorcendo e, muitas vezes, distorcendo a realidade, se sentindo prejudicado pela arbitragem, mídia, CBF etc., faz parte deste universo de emoções exacerbadas. Estranhas emoções para aqueles que não a sentem. Naturais emoções para os de dentro, os nativos, os torcedores de futebol.

Talvez pudesse servir como um exercício interessante de antropologia a tentativa de transformar estas emoções “naturais” em algo “estranho”. Ou melhor dizendo, em “antropologuês”, transformar o familiar no exótico. Este exercício, ainda que difícil, poderia ser um primeiro passo para responder as questões colocadas acima.

O intelectual alemão e professor da Universidade de Stanford, Hans Ulrich Gumbrecht, tentou explicar o fascínio que o esporte exerce nas pessoas em seu livro Elogio da Beleza Atlética, ao mesmo tempo em que afirma que “em geral os prazeres não precisem de tal legitimação“ ou explicação. Uma das “explicações” colocadas por ele surgiu a partir de uma declaração de um atleta de natação, vencedor de três medalhas de ouro nas Olimpíadas de 1984 e 1992, Pablo Morales. O atleta teria falado sobre o sentido de “se perder na intensidade da concentração” como a motivação que o levou a praticar esporte de alto rendimento.

Torcedora do Brasil durante a goleada da Alemanha na semifinal da Copa de 2014. Foto: Jefferson Bernardes – VIPCOMM.

Este perder-se na “intensidade da concentração” ou na “intensidade focada”, conforme expressão utilizada por Gumbrecht em outra ocasião, poderia ser uma das explicações para se entender o fascínio que o esporte pode exercer nos atletas e nos torcedores. Sim, os torcedores também sentem este “perder-se” durante uma partida dramática. Mas ainda assim, isto careceria de uma pergunta anterior: por que se perder nesta intensidade?

A beleza dos corpos em movimento, o sentido e o valor estético de uma competição, seriam outras das razões enumeradas por Gumbrecht para que possamos entender o fascínio exercido pelos esportes em muitas pessoas. Porém, ainda aqui, quando falamos de torcidas de futebol, será que o valor estético, o tal do bom futebol ou futebol bem jogado, conforme os ditos populares e da imprensa, é mesmo um capital fundamental para esta paixão por um clube? O que sente um torcedor em uma partida em que seu time faz um gol, digamos “sem muito apelo estético”, no último minuto, gol este que garante a classificação ou título da equipe? Será que o entusiasmo e a euforia seriam maiores se fosse um gol de alto valor estético em uma partida em que a vitória valesse menos?

Enfim, estes questionamentos devem ser mais bem pensados, elaborados e pesquisados, se considerarmos a possibilidade de um dia podermos entender este ato de torcer, se contorcer e distorcer a realidade praticado por torcedores ao redor do mundo.

Enquanto não partimos para este tipo de estudo, seguimos na nossa conduta de estudar o esporte como um meio para entender a cultura, mais do que como um fim em si mesmo. Conduta esta muito importante e que tem nos ajudado a entender um pouco mais a sociedade, suas relações e seus dilemas. Até porque não sabemos se conseguiremos um dia entender as razões para o tal fascínio.

Esse texto foi originalmente publicado no Jornal O Globo (23 de novembro de 2014) e cedido para publicação nesse espaço.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Torcer. Ludopédio, São Paulo, v. 66, n. 2, 2014.
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