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Como o atleticano se tornou River Plate – parte 1

 

Desde quando a Argentina se hospedou na Cidade do Galo durante toda a Copa do Mundo do ano passado, ele vem ponderando as razões pelas quais, até então, desconhecia o futebol vizinho. Ele não tinha acesso aos canais que transmitiam os jogos dos clubes argentinos pela internet. Os dois jornais da capital que ele acompanha indo diariamente à banca de revistas ao lado de sua casa, na Rua Erê, no Prado, trazem informações e tabelas de cinco campeonatos estrangeiros, todos eles europeus: Itália, Espanha, Alemanha, Inglaterra e França.

“Os jornais aqui de Belo Horizonte falam do campeonato francês, cara, do campeonato francês, fran-cês! E nem dá notícias do português… dos hermanos, então, hein? Ninguém quer saber dos maricones!”, diz alegremente o jornaleiro. “Mas olha só, o Lucas Pratto está aqui no Galo, agora o pessoal está mais de olho no futebol sul-americano. O Pratto foi destaque no Vélez”, rebate o professor. “É verdade, o Sorín falou isso ontem, você tem acompanhado o Sorín? Ele sempre dá notícias de lá, está com um bom espaço na televisão”. “Não vejo nada do Sorín, Seu Revir, nada. E nem é por causa dele, sei que foi um craque, é inteligente, mas raramente ligo a televisão”. “O Sorín ganhou uma Copa do Brasil pelo Cruzeiro, mas foi com o River que ele ganhou uma Libertadores, em 96, lembra?”. “Me lembro sim, fez um golaço na semifinal”. “É… faz tempo que o Galo não convive com ídolos estrangeiros, já desde os anos setenta”. “Quem seriam eles, hein, Seu Revir?”, chamando-o para o embate a respeito do que os tornavam ligados: a conversa circunstancial em torno do Atlético Mineiro. “Ó, eu já ouvi o Éder falar que pra ser craque mesmo carece de ter jogado pelo menos cinquenta jogos pela seleção, então, pra ser ídolo num clube, aqui com a gente, tem de ter jogado no mínimo cem partidas com alguma campanha importante, concorda? Quem sobra, hein, Miro?”. “Não faço a mínima ideia, Seu Revir”. “O Cincunegui, Héctor Cincunegui, lateral esquerdo do Uruguai, ele fez quase duzentos jogos com a nossa camisa e foi campeão brasileiro com a gente”. “Nossa, eu nunca vi ele jogar, é raro a gente se lembrar dele, né, tem mais, Seu Revir?”. “Tem o Miguel Ortiz, goleiro argentino que ganhou o título mineiro de 1976, ele tem cem jogos na pinta”. “Ah, bem no início da Era Toninho Cerezo”. “Isso, isso! Ele foi o primeiro goleiro a fazer um gol pelo Galo, eu me lembro bem das manchetes, ele era muito irreverente, cabeludo, parece que se desentendeu com o técnico Barbatana. Outro dia, ouvi falar na televisão que ele está vivinho por lá, mas que a bebida atrapalha… que a bebida atrapalha ele de levar uma vida normal, está perdendo compromissos e tal. Ele ficou igual aquele Vadico que eu te falei outro dia, daquele conto do Edilberto Coutinho, tanta glória pra depois viver feito um molambo”. “Coisas da vida, são coisas da vida, Seu Revir… nós nem glória tivemos e já estamos iguais ao Vadico, o Ortiz deve estar bem, deixa ele pra lá”, emenda alegremente. “Você gosta, né, professor, gosta, né”, caíram na gargalhada. “Vai na paz, Miro, e pode deixar que eu vou ver pra você lá no Centro se tem o jornal que noticia os hermanos. Afinal de contas, nós precisamos mesmo conhecer melhor nosso adversário, não é?”

BELO HORIZONTE/ MINAS GERAIS / BRASIL - (28/07/2009) - Treino do Cruzeiro na Toca da Raposa 2 em BH. Sorin anuncia o abadono do futebol. © Washington Alves/Light Press
O argentino Sorin jogou pelo Cruzeiro e pelo River Plate e em 2009 anunciou o fim da carreira. Foto: Washington Alves – VIPCOMM.

 

Será que o fato de os brasileiros ignorarem os argentinos não contribui para que eles sejam mais vitoriosos nas principais competições que os envolvem? Desde 1916, a Argentina venceu a principal competição continental mais vezes do que o Brasil. “Eu já nem estaria vivo pra ver isso mudar”, pensava o professor de educação física, ainda aos quarenta anos de idade. Os argentinos igualmente venceram mais a principal competição clubística, a Copa Libertadores disputada desde 1960.

Durante seu trajeto de ônibus, Miro resolveu ampliar a pesquisa para saber quantos estrangeiros jogaram entre cinquenta a cem partidas no Atlético. Descobriu apenas quatro, os uruguaios Mazurkiewicz, o Mazurka, goleiro nos anos 70, e o Olivera, que formava a dupla de zaga ao lado de Luizinho no início dos 80. Os outros são os argentinos Galván, zagueiro vice-campeão do Brasileirão de 1999, e o Dátolo, importante articulador do esquema do Levir na conquista da Copa do Brasil.

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Mazurkiewicz, goleiro uruguaio, que jogou pelo Atlético Mineiro (1972-1974). Ilustração: Francisco Carlos S. da Silva.

Miro, agora, ficou pensando que é melhor estar mais próximo dos argentinos, também por outros motivos. Talvez para conhecê-los mais e, quem sabe, contribuir para o abrandamento das estúpidas agressões entre os torcedores dos dois países, como a famosa “chuva-de-garrafas” na Savassi ao longo das comemorações argentinas pela vitória contra o Irã, no último lance da partida, com gol de placa de Messi de fora da área, que garantiu de forma antecipada o seu time nas oitavas de final da Copa.

“Eu estava lá na rua, de boa, eu não fiz nada com ninguém, eu nem fui ao jogo, eu nem tinha bebido”, asseverava o professor, pacificamente, na delegacia, ao fazer o boletim de ocorrência, depois de já ter ido ao hospital. “Eu não sei de onde surgiu aquela briga, tomei uma garrafada na cabeça e muitos pontos, e nisso minha carteira sumiu, né, com minha identidade e tudo. Meu nome? Meu nome é Belmiro Borba”.

A iniciação do ser humano na cultura (ou em outra cultura) parece que necessariamente precisa de um trauma, a mudança precisa de uma ruptura, pensou mais ou menos isso. Talvez Miro se interesse pelo diálogo entre os povos promovido pelo esporte, talvez pense assim por ser professor de educação física.

 

Buenos Aires, 18 a 24 de abril de 2015

Miro acordou bem cedo, preparou as malas para passar uma semana em Buenos Aires, decidiu de pronto ao aproveitar a promoção do seu programa de milhagem no feriado de abril. “Seu Revir, eu já fui à Argentina três vezes, mas em nenhuma vez o futebol esteve na agenda. Dessa vez, vou visitar os museus do River e do Boca Juniors e tentar assistir a uma partida do campeonato argentino no domingo à noite. O senhor guarda as charges do Duke pra mim, né? O restante do jornal pode jogar fora, semana que vem estou de volta… tchau, seu Revir, o táxi é aquele ali, ó, hasta la vista siempre.”

Para Buenos Aires Miro viajou em busca de conhecer mais o seu futebol e, durante o trajeto, ficou pensando como o conhece pouco. A primeira imagem que lhe veio à cabeça relacionada ao futebol argentino é também acústica: o gol de Maradona na Copa de 1986, narrado por Víctor Morales, que agradecia aos deuses por vivenciar aquele espetáculo: genio genio genio Maradona Maradona quiero llorar llorar Diegol Gracias Dios por el fútbol ​​por Maradona por estas lágrimas. A Argentina venceu por 2 a 1 o seu algoz da Guerra das Malvinas. Miro também se lembra dos cânticos portenhos pelas ruas belo-horizontinas durante o Mundial; do grito de gol da torcida do Boca, seguido da avalancha; do Fillol, goleiraço; do golaço do Caniggia, em 90, que desclassificou a seleção de Taffarel precocemente da competição; do Kempes no álbum de figurinhas de 82, quando as câmeras fotográficas retratavam os jogadores de maneira bem mais singulares; e do pontapé do Maradona no Batista nessa Copa. A respeito dessa cena, já no aeroporto estrangeiro, o professor rindo meio espantado puxava pela memória os comentários de Márcio Guedes pela televisão: 

uma expulsão justa e um castigo pela violência da Argentina que não sabe perder o jogo é um castigo à inexperiência desse jogador não é o grande craque que se imagina falta agora ao Passarela ir pro banheiro mais cedo também uma vergonha esse time da Argentina vergonha vergonha vergüenza vergüenza…

“Ele deu uma pesada na barriga do Batista, cara, ele tinha acabado de entrar no lugar do Zico. Deus esse cara não é, isso é coisa da mídia!”. Nesta viagem, Miro esperava visitar a igreja maradoniana que aparece no filme do Emir Kusturica, quem sabe para redimir o deus argentino? “Será que esse tal templo existe mesmo, onde será?”

Que ciudad llena de cancha de fútbol”, Miro disse ao taxista ao se lembrar dos minutos antes da aterrissagem. “O fútbol parece ser muy importante para esta ciudad”. “En mayo, a principios de mayo, mi River jugará contra Los Bosteros, la ciudad se transforma…”. Maio, madjo, macho, malho, majo, marro”, o professor intentava assimilar a pronúncia.

Miro não se programou para a viagem, porque ao chegar jantaria com um casal belo-horizontino, radicado na Ciudad Autónoma, ela trabalha com literatura e ele com patologia, ambos professores. Eles curtiam muito futebol, inclusive, naquela semana, em território argentino, levaram o filho ao jogo do Cruzeiro pela Libertadores e presenciaram daqui a derrota para o Huracán por 3 a 1.  “O menino já está com seis anos, né, está na hora… Mas como eu já te falei, agora, eu sou Boca, e vai ter guerra contra o River”. A cidade estava muito envolvida com o que tinha acabado de acontecer na Libertadores, o Boca se tornou o time sensação ao se classificar em primeiro lugar para as oitavas, vencendo os seis jogos. “Eu vou tomar cerveja, o que você vai querer beber?”. A temperatura estava dezoito graus em San Telmo. “Vamos tomar vinho, amigo?” Agora, o Boca tem a vantagem de decidir todos os confrontos em casa, mas logo de cara enfrenta o River, cuja classificação se deu em clima eufórico na última rodada. “Você vai torcer pra quem?” “Sei lá, pelo time do Papa?”.

O professor cogitou se iria ou não tomar algum partido e se viu confabulando se torceria de verdade por outro time. “Uai, então vamos ao jogo do Boca amanhã lá em Lanús, o campeonato está bom, o Boca, o River e o San Lorenzo estão liderando”, diz Miro entusiasmado, “quem sabe eu torça pelo Boca?”. “Cara, o jogo é tarde demais, Lanús é longe, é complicado pra ir e perigoso pra voltar. Eu estou com criança em casa, já te falei”. “Uai, então vamos ver o River, não é perto da sua casa?”, replicou. “Não, não conseguiríamos comprar ingressos, só os sócios já enchem o estádio, eles são mais de cem mil. Vai lá pra casa amanhã, a gente almoça e vê pela internet o meu time ganhar do seu pela semifinal do Mineiro, você está ligado, né, melhor coisa que a gente faz”. “Mas vir aqui e parar pra ver jogo do campeonato mineiro?”. “Depois, a gente sobe para o terraço do prédio, de lá, dá pra ouvir Las Gallinas cantando o tempo todo do Gallinero, você vai gostar”.

No domingo, o professor andou bastante pela Feira de San Telmo e comprou vinho para o almoço e un regalito para a criança. Miro chegou à casa do casal depois de pegar o metrô até Belgrano e caminhar por vinte minutos. “Eu vou tomar vinho, você vai beber vinho ou cerveja? O locro já está no fogo, aquele prato que te falei, tipo a feijoada daqui”. Já na sala do apartamento, o pai, durante todo o almoço, incitava o menino a torcer contra o Atlético e, de tabela, contra o River. “O Galo e o Cruzeiro decidem vaga pras oitavas semana que vem em Belo Horizonte, está ligado, né, o Atlético tem que enfiar dois no Colo-Colo, talvez poupe jogadores”, o professor arrisca sem qualquer convicção, buscando tornar o ambiente mais amistoso. “Onde já se viu time poupar jogador em clássico de semifinal?”. “Talvez o empate seja uma boa, a gente vai pra final, mas o Atlético não perde a invencibilidade de dez jogos”, a amiga procura igualmente se tornar amistosa. “Que nada, o Cruzeiro vai meter os ferros, já empatou o primeiro jogo no Independência, com golaço do Arrascaeta. Hoje no Mineirão é partir para o abraço, não é, não, filhão…? É dia de 6 a 1, 6 a 1, 6 a 1, 6 a 1, 6 a 1, 6 a 1”, cantarola e conta com os dedos até seis. “Caramba, mas o Leo Silva amaciou, já te falei isso, todo mundo sabe, ele tinha acabado de sair do Cruzeiro tinha muito amigo lá”. “Hum, hum, hum, 6 a 1, 6 a 1, 6 a 1, hum, hum, hum”, o menino acanhado mimetizava. “9 a 2, 9 a 2, 9 a 2, 9 a 2, 9 a 2, 9 a 2, 9 a 2, 9 a 2, 9 a 2”, Miro tensiona os dedos e canta em silêncio o placar mais elástico do duelo entre eles, favorável ao Atlético. “Vocês estão se esquecendo das finais da Copa do Brasil do ano passado?”. “A gente viu, mas o jogo era muito tarde pra ele”. Estimulado pelo pai, o menino vivenciaria o seu primeiro clássico mineiro, mas ao lado de um sujeito atleticano em sua própria casa, estrangeira.

Começa a partida e a primeira chance é de Lucas Pratto. “Ele é da Argentina, pai?”. “E o Dátolo também, aquele com a 10 que tocou a bola, o Galo tem dois argentinos e Cruzeiro um uruguaio”. A energia da casa, el aire, estava muito estranha, cruzada. “Vamos abrir outra garrafa?”. Estavam os três na cozinha enquanto o Cruzeiro abria o marcador, logo aos dez minutos, com Arrascaeta. “Gooooool, Caetano, gooool, é gol do time do papai, Zêeeero”, e correu em direção ao filho. “O time do Papa, o time do papai, o time do pa-pa, do pa-pai, eu sou Cu-zei-ro, o time do Papa!”, confundia-se o menino. “Cru-zeiro, Caetano, cru, cru”.

No intervalo do jogo, na cozinha, Miro e a amiga falam de suas últimas leituras e comentam a respeito da morte do Herberto Helder e de sua importância para a poesia portuguesa. “Como seus últimos poemas foram ácidos, um nó de sangue na garganta/ um nó de ar no coração/ que a mão fechada sobre uma… ah, já me esqueci”. O professor diz estar lendo Estive em Lisboa e lembrei de você, do Luiz Ruffato. “Fomos à Argentina e lembramos de Lisboa”, riem todos. E ela lê em voz alta o poema “Buenos Aires”, de Mario Bellatin. “Que coisa bonita, ele escreve de um jeito muito singular, né, e aquelas fotografias inseridas nas narrativas, o que você acha?”. Já é noite, fria, e venta muito no décimo andar. “Vamos abrir outra garrafa”. “Vem, pai, vem ver o jogo”.

Falam dos trabalhos em sala de aula e refletem de uma forma mais ampla sobre a falácia dos discursos educacionais. Ventilam hipóteses sobre os atuais tempos de crise. “É terrível a constatação de como os brasileiros ainda ficam de costas pra América Latina, até hoje a gente fica olhando demais pra fora”, diz a amiga. “Mas não se esqueça: aqui, você será sempre um estrangeiro, o estrangeiro”, enfatiza o amigo meio sorrindo, meio sério, com o dedinho apontando para o solo. “Mas, nós somos antropófagos, né, e os argentinos sequer mataram o pai espanhol ainda”. “Mas a antropofagia é na sua terra, vai tentar comer eles aqui… deixa de conversa, vamos abrir mais um vinho, vou colocar o locro no fogo de novo”.

Por volta dos dez minutos do segundo tempo, o Atlético Mineiro empata a partida com mais um golaço do Lucas Pratto, que emendou de primeira um lançamento que veio em suas costas. O menino agitado chorou. “Não fica assim, filhão, é franguinho, ele é pollo, pollo argentino, nem assusta”. Miro repercute baixinho: “pocho, podjo, polho, poio, polo, pojo, porro, pôro, pôro… un porro, un porrito, por favor”.

Papá se va a fumar, vamos subir, quer ir com o papai?”, pressentindo a derrota. “Não, papá, quero ver o jogo”. Os amigos sobem para a cobertura do prédio, de onde veem as luzes do Monumental e ouvem os cânticos da torcida, “o River está enfiando quatro no Banfield”, conferem na tabela do campeonato. “O River é rico, o Boca é pobre, é povo. Eu sou Boca”, disse sem qualquer convicção. “Não tem nada disso, o taxista me falou, isso é bobagem”. “Time do povo é só o Atlético, né”. “Você que está falando, eu não acredito em nada disso”. E discutem sem procurar saber a real motivação. “Ah, agora não acredita em nada, é isentão, igual ao Caetano, né”. “Caetano é o seu filho”. “Ai, caramba, vai se passar por desentendido, agora? O Veloso, poxa, o Caetano Veloso, que votou no Brizola, na Marina…”. “Nossa, você não consegue ouvir o Caetano, você não consegue mais perceber o outro, cara, está maluco”. “Ah, agora, eu estou maluco, você não viu nada… ah, eu sô maluco, ah, eu sô maluco! Lobão tem razão, né?!”. Confusos eles se sentam no chão, encostam-se à parede, fumam sem trocar mais nenhuma palavra enquanto ouvem, ao fundo, a torcida a cantar: soy de River y lo sigo a todos lados/ donde juegues siempre te voy a alentar/  con los bombos, las banderas, el redoblante/ esta banda caminando siempre va… “Vou descer pra ver se o menino acalmou”.

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Entrada do estádio Monumental de Núñez do River Plate. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Quando os amigos se adentram pela porta da antessala, o Atlético vira o jogo com mais um golaço do Pratto de cabeça a dois minutos do apito. O menino desaba a chorar ao passo que o centroavante corre para festejar o gol e o Miro dispara ao redor da sala vociferando o nome do time com os braços estendidos, como se fossem alados, recolhendo-os, em seguida, à altura da cintura e dando aquela sacudida final com os punhos cerrados, vibrantes. Ele mimetiza a comemoração do jogador, uma maneira tipicamente argentina, e como se não bastasse, liga o rádio do celular se ajoelhando para ouvir a narração:

Goooooooool é do Galão querido Lucas Praaatto Lucas Praatto o centroavantão do Galo o Urso o Argentino ele que tanto insiste ele que não desanima ele que fez lá na Colômbia na Libertadores de novo no alto pra ele de testa vencer o gigante Fábio Lucas Pratto o urso o centroavantão do Galo coloca o Galo com o pé na final aos quarenta e três se não for em cima da hora não é Galo o Urso dois a um o Galo vira fala Roberto outra vez quem quem outra vez quem Guilherme Guilherme de perna esquerda levantou a cabeça viu o Pratto rápido igual a um raio que testada violenta do gringo virada do Galo Pratto explode o coração alvinegro de alegria.

“Vou levar ele para o quarto. Vem, Caetano, de pressa, veloz”, a mãe o chama. O amigo liga o ventilador e se dirige à janela para fumar um cigarro. O jogo acaba, mas a televisão e o rádio continuam ligados, começa a tocar o hino do Atlético e o menino chora mais ainda. “O River ganhou, filho, vamos torcer pelo River, então”. “Não fala isso, mulher”, o marido grita da sala. “Outro dia o Raposão depena o Pollo, Las Gallinas, a seleção brasileira e todo o mundo”. A criança chora e soluça. É o tempo dos afetos, todos pensam. “Pelo amor de deus, gente, hino do Atlético, não, né, quede o controle?” Miro pausa o rádio, pega a mochila, vai em direção ao amigo e diz: “então, cara, eu vou embora amanhã cedo, bom te ver assim desse jeito”. E, intencionalmente, derruba com apenas um toque o copo do amigo, que estava com os braços para fora da janela. Com a mão no vácuo, o anfitrião se assusta e grita quando o copo quebra na calçada da rua. Miro também grita. O menino precisamente abalado chora cada vez mais, a mãe também começa a chorar, o pai joga o cigarro no ar e corre para o quarto e o Miro chama o elevador e vai embora. Não há mais barulhos, ninguém levou pontapés, garrafadas pelas costas e nem pontos na nuca. Todos estão apenas expatriados.

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Gustavo Cerqueira Guimarães

Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. É graduado em Psicologia e Letras pela PUC-Minas. Autor dos livros de poesia Língua (2004) e Guerra lírica (no prelo). Coorganizou os livros Futebol: fato social total (2020) e Problemáticas e solucionáticas do futebol em Minas Gerais (no prelo). Desenvolveu pesquisas sobre futebol e artes no pós-doutorado na Faculdade de Letras da UFMG (PNPD-CAPES, 2013-2018) e no Leitorado Guimarães Rosa em Maputo/Moçambique (2019-2023). Atualmente, atua na Secretaria Municipal de Educação de Lajinha/MG e como vice-líder do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, como coeditor-chefe da FuLiA/UFMG (https://periodicos.ufmg.br/index.php/fulia/issue/archive). 

Como citar

GUIMARãES, Gustavo Cerqueira. Como o atleticano se tornou River Plate – parte 1. Ludopédio, São Paulo, v. 74, n. 4, 2015.
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