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A torcida é um animal político e quer um futebol mais democrático

Thiago José Silva Santana 19 de abril de 2018

Para além de parafrasear a frase aristotélica, “o homem é um animal político”, o título desse texto vem no encalço das recentes, mas tão não incomuns, manifestações políticas no futebol. Ao abordar o tema da política no futebol também é importante falar da política do futebol. Para isso, é importante apresentar para essa reflexão outras práticas politizantes no futebol, mas com pouca repercussão nas grandes empresas de comunicação.

Quando o apresentador Tiago Leifert afirmou em um artigo para a revista GQ[1] que os eventos esportivos não são lugares para manifestações políticas demonstrou seu desconhecimento a respeito da história do futebol brasileiro e como este já foi, e ainda o é, objeto de uso político e dos políticos. Para exemplificar a proximidade da política com o futebol talvez o período da ditadura militar seja o mais marcante nesse sentido, pois o regime usou bastante o esporte para se promover. “Onde a Arena vai mal, mais um time no nacional” foi um jargão usado que retrata bem o uso político do futebol.

Mas também é desse período triste da história do Brasil que temos outros exemplos de resistência contra o regime ditatorial, como as manifestações nas comemorações dos gols com os punhos cerrados de Reinado do Atlético Mineiro e Sócrates do Corinthians nos anos de 1980 e a bem rememorada democracia corinthiana. Essa última goza de uma abordagem mais simpática quando citada pelas grandes empresas de comunicação uma vez que o contexto nacional clamava por democracia na campanha pelas ‘diretas já’.

Jogadores com o slogan "Dia 15 vote", pela democracia no país. Data: 00/11/1982
Jogadores com o slogan “Dia 15 vote”, pela democracia no país. Foto: Divulgação.

Diferente do que ocorreu com as manifestações das torcidas do Cruzeiro e do Grêmio sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, que foram reprimidas recentemente. Neste caso a baixa cobertura da mídia empresarial pode ser entendida dentre outros fatores, pelo o fato de Marielle, que defendia os direitos humanos e representava as bandeiras de vários movimentos sociais (Negro, Feminista, LGBT, etc.), ser contra a intervenção militar do governo federal na cidade do Rio de Janeiro. Soma-se a isso o fato de o atual presidente da república ter chegado ao poder em virtude de um golpe, ter baixíssima aprovação popular e cuja atuação consiste na retirada de direitos sociais e trabalhistas historicamente conquistados.

Além disso, todo esse rearranjo político conta com a anuência das grandes empresas de comunicação, algumas cujo futebol é um importante produto. Portanto o assassinato da vereadora fragilizou ainda mais a imagem de democracia que os grandes meios de comunicação tentam passar. E as manifestações sobre o crime, ocorridas em um ambiente com a repercussão que o futebol tem, enfraquecem a já frágil imagem do governo federal e vai de encontro com os interesses dos empresários da mídia.

Para além desses fatos é bom lembrar que futebol e política continuam andando bem próximos. Não faltam exemplos de ex-atletas e ex-dirigentes que na história recente do Brasil se elegeram com apoio significativo da visibilidade conseguida no futebol. São os casos do ex-jogador e agora senador Romário; do Eurico Miranda, ex-deputado federal e ex-presidente do Vasco; do presidente do Corinthians e deputado federal Andrés Sánches; do ex-jogador do Atlético Mineiro Marques,  que foi eleito deputado estadual em Minas Gerais. Ainda podemos citar o caso do radialista Mário Henrique Caixa, que estruturou longa carreira como narrador esportivo antes de ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e também a eleição de Alexandre Kalil, ex-presidente do Clube Atlético Mineiro, para prefeito de Belo Horizonte, entre outros.

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Alexandre Kalil quando era presidente do Atlético-MG. Foto: Bruno Cantini/Clube Atlético Mineiro (CC BY-NC 2.0).

Portanto é importante questionar para quem os discursos como do apresentador Tiago Leifert é interessante, mesmo com tantos exemplos que mostram as relações do futebol com a política. Também é bom lembrar que parte significativa dos dirigentes do futebol brasileiro faz parte das classes sociais mais privilegiadas. No caso dos chamados grandes clubes isso talvez seja um regra. Deste modo, não é conveniente que o desejo de maior participação política da sociedade civil organizada chegue ao futebol, que tem uma classe dirigente bastante conservadora. Afinal de contas, os mandatários do futebol brasileiro não querem ver, por menor que seja, a possibilidade de ter a hegemonia de seus interesses ameaçada.

Levando em conta essas características, o discurso de não misturar futebol e política, bem como a repressão das manifestações das torcidas nesse sentido, ganham mais significado. Sobretudo se levarmos em consideração a mercantilização[2] do futebol, que exige a necessidade de se atingir um amplo mercado consumidor, que engloba variadas posições políticas. Deste modo, manifestações com posicionamentos políticos demarcados atrapalhariam a busca pelo lucro. Essa mercantilização do futebol ganhou ainda mais impulso com a realização dos megaeventos, em especial a Copa do Mundo no Brasil. Desde então, o acesso às novas arenas passou a ser um objeto de valor vendido muitas vezes com altos preços pelos clubes, o que contribuiu, dentre outros fatores, para a ampliação dos programas de sócio torcedor.

Curiosamente, apesar de os programas de sócio torcedor exercerem um papel que contribui para o processo de mercantilização do torcer, é a partir deles que vêm surgindo possibilidades de abertura da política dos clubes. Alguns clubes da série A do Campeonato Brasileiro de 2018 permitem o voto nas eleições para presidente aos torcedores que fazem parte de determinadas categorias dos programas de sócio torcedor dessas instituições. É evidente que não se trata de uma ampla democratização das eleições presidenciais dos clubes, uma vez que essa possibilidade se restringe a quem pode pagar as mensalidades dos programas de sócio torcedor. Além disso, tais programas são mais um elemento que pode restringir o acesso ao estádio aos demais torcedores, sobretudo nos centros urbanos onde os estádios tiveram sua capacidade de público reduzida em virtude das reformas para a Copa do Mundo de 2014. Mas ainda assim penso que é importante destacar essas brechas e iniciativas que podem trazer novos ares para política das instituições do futebol.

É o que pretende, por exemplo, a torcida do Atlético Mineiro, que lançou nas redes sociais campanhas para que os sócios torcedores possam votar nas eleições para presidente do clube. Os associados ao programa de sócios do Atlético lançaram uma campanha chamada “Galo na Veia quer votar”[3] e justificam a reivindicação a partir do peso que a contribuição dos sócios tem nas finanças do clube. Outro argumento apresentado é o fato de outros clubes já adotarem essa política. Através de uma pesquisa no site dos vinte clubes que compõem a série A do campeonato brasileiro de 2018 pude identificar que, desse total, oito têm em seus planos de sócio torcedor categorias nas quais os associados podem votar nas eleições do clube. Em alguns casos podem até concorrer nas eleições.

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Galo na Veia quer votar. Foto: Facebook (reprodução).

A importância de um programa de sócios que dá direito ao voto foi abordada pelo jornalista Mauro Cesar Pereira, que tratou do caso do Fluminense, onde o um grupo ligado ao programa lançou candidato próprio[4]. Além do time carioca, outro caso emblemático é o do Internacional. Além do direito a voto, o clube também lançou uma modalidade de sócio, com um número limitado de adesões, destinada aos torcedores com baixa renda. Embora tais iniciativas precisem ser analisadas com o devido cuidado, pois muitas vezes são apresentadas em caprichadas campanhas de marketing, podem também gerar um bom debate sobre a democratização da política e do acesso dos clubes.

Portanto, a despeito das tentativas de despolitizar o futebol, as torcidas seguem manifestando e repercutindo questões de ordem mais amplas da sociedade brasileira. E, além disso, essa repercussão está muitas vezes associada a um desejo de uma maior participação na política dos clubes brasileiros.


[1] https://gq.globo.com/Colunas/Tiago-Leifert/noticia/2018/02/evento-esportivo-nao-e-lugar-de-manifestacao-politica.html

[2] Termo usado por Richard Giulianotti para descrever o processo no qual um objeto ou uma prática social adquire um valor ou sentido de mercado. GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flaneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebol. Recorde: Revista de História do Esporte. Rio de Janeiro, v.5, n.1, 2012.

[3] https://galonaveiaquervotar.wordpress.com/

[4]

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Thiago

Atleticano. Professor. Membro do GEFuT - Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas e do Pensando a Educação Física Escolar.

Como citar

SANTANA, Thiago José Silva. A torcida é um animal político e quer um futebol mais democrático. Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 19, 2018.
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