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Torcida única: saldo de duas mortes em 2018

Como torcedor de arquibancada, a única coisa que posso dizer é que jogos com torcida única são uma excrescência do futebol. A medida começa a se espalhar pelo país como solução definitiva para o fim da violência nos estádios. No entanto, as tragédias com mortes continuam acontecendo já no início de 2018. Mesmo em jogos com torcida única.

torcida argentina
Em maio de 2017, a torcida argentina fez a festa no Morumbi (São Paulo 1 x 1 Defensa y Justicia-ARG). Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

A decisão do Campeonato Paulista, entre Palmeiras e Corinthians, é um exemplo para reflexão. Desde abril de 2016, por decisão da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os chamados clássicos devem ser disputados apenas com a presença de torcedores do time mandante.

Desde que se adotou o formato de finais no Campeonato Paulista, apenas quatro vezes estas equipes se encontraram na disputa pela taça. Em 1974 e em 1993 as finais foram vencidas pelo Palmeiras. Em 1995 e em 1999 foram vencidas pelo Corinthians. Corinthianos e palmeirenses esperaram 20 anos para poder se enfrentar novamente em uma final de Paulista. Em dois jogos, cada um em sua casa, como nunca antes ocorreu na história. E com os visitantes impedidos de ter o apoio de sua torcida. No estado de São Paulo, isto acontece em todos os clássicos, sem excessão.

A medida começa a ser implantada em outros estados. Neste ano, outra final de rivalidade histórica, foi realizado com “torcida única”: o Ba-Vi. Sim. Bahia e Vitória fizeram a decisão em dois jogos do campeonato baiano, com apenas a torcida da equipe mandante no estádio. A medida da torcida única foi implantada em 2017. No início de 2018, um pequeno número de torcedores do Bahia pôde comparecer para o clássico no Barradão. O jogo foi marcado por inúmeras confusões dentro de campo e por brigas fora do estádio. Como resultado, o Ministério Público recomendou que as finais fossem disputadas com torcida única, sendo acatado pela Federação Baiana de Futebol.

Na série B de 2017, a torcida do Inter-RS se fez presente no Brinco de Ouro da Princesa. Foto: futeboldecampo.net
Na série B de 2017, a torcida do Inter-RS se fez presente no Brinco de Ouro da Princesa. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Em Goiânia, as partidas entre Vila Nova e Goiás também têm sido disputadas com torcida única. Mesmo com a medida adotada desde o final do ano passado, no início de 2018, no confronto entre Goiás e Vila Nova, um torcedor do Goiás foi baleado e morto nas proximidades do Setor Universitário, cerca de quatro quilômetros distante do Estádio Olímpico, local da partida.

O vice-presidente de futebol do Sport, Guilherme Beltrão, sugeriu que a partida Sport x Santa Cruz fosse realizada com torcida única. Era uma reação ao que tinha acontecido com os torcedores do Santa Cruz na Ilha do Retiro, no início de março deste ano, pela fase final do Pernambucano.

Muitos números são apresentados para que a Secretaria de Segurança Pública e o Ministério Público de São Paulo afirmem que a medida é irreversível. A diminuição da violência, o aumento do público e da arrecadação, a diminuição de policiais dentro e fora dos estádios e menor número de escoltas policiais. Tudo é de certa maneira contabilizado. No entanto, um elemento não entra na equação: a historicidade do ato de torcer.

Torcida colombiana se fazendopresente no Pacaembu. Santos 3 x 2 Santa Fé-COL. Foto: futeboldecampo.net
Torcida colombiana se fazendopresente no Pacaembu. Santos 3 x 2 Santa Fé-COL. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.
 

Tive o privilégio de presenciar os últimos clássicos paulistas com o estádio dividido, no início dos anos 1990. Já na segunda metade desta década, presenciei as primeiras divisões em que a proporção diminuiu no setor visitante. Primeiramente no Pacaembu, com apenas o Tobogã destinado aos visitantes. Depois, no final dos 2000, vieram as medidas que obrigavam o mandante a ceder apenas 10% dos seus ingressos para os torcedores do time adversário.

Foi desta maneira, como sendo um dos 10% dos visitantes, que vi meu último clássico sem torcida única. Foi um Corinthians x Palmeiras, no Pacaembu, em 2013. No vídeo com os gols da partida, assim como podemos ouvir a explosão dos pouco mais de dois mil palmeirenses no estádio (eu orgulhosamente entre eles) quando o Palmeiras fez a virada de 2 a 1, podemos também ouvir o barulho dos mais de 20 mil corinthianos, berrando pelo empate. Mesmo com apenas 10%, os visitantes estavam lá, representados.

Santo André x São Bernardo: duas torcidas no Bruno José Daniel. Santo André 0 x 1 São Bernardo (2017). Foto: futeboldecampo.net
Santo André x São Bernardo: duas torcidas no Bruno José Daniel. Santo André 0 x 1 São Bernardo (2017). Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Três grandes estados do futebol brasileiro resistem bravamente às discussões sobre torcida única. A medida já foi implantada no Rio de Janeiro em 2017, mas durou apenas um mês. Atualmente, as partidas vêm sendo realizadas com a presença de torcidas dos dois times.

No Rio Grande do Sul, a Brigada Militar entrou com um pedido de torcida única em 2013, no primeiro jogo na nova Arena do Grêmio. Mas a torcida do Inter acabou estando presente neste jogo. Neste ano de 2018, foi totalmente descartada a hipótese de torcida única nos jogos das quartas de finais do Gauchão.

Mas se há discussões pelo Brasil sobre torcida única, em Minas Gerais a discussão foi outra. Dirigentes de Atlético e Cruzeiro cogitaram a volta das finais com o estádio dividido. Duas finais com cada equipe recebendo 50% da carga de ingressos de cada jogo. Mas a ideia não avançou.

Torcida flamenguista sempre lotando o setor visitante em São Paulo. Santos 3 x 2 Flamengo (2017). Foto: futeboldecampo.net
Torcida flamenguista sempre lotando o setor visitante em São Paulo. Santos 3 x 2 Flamengo (2017). Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Na primeira partida da final, a torcida do Palmeiras lotou as ruas em volta do estádio Allianz Parque. Dali, muitos deles foram de transporte público para casa. Fatalmente encontrariam outros torcedores corinthianos voltando para casa também. É aí que as coisas acontecem. Não é o fato de a torcida do Palmeiras não estar presente no estádio do adversário, ou vice-versa.

As finais com torcida única tiveram seus saldos negativos. No domingo, dia 8 de abril, dois episódios em jogos de torcida única. Nas proximidades do estádio Barradão, o ônibus que levava os jogadores e a comissão técnica do Bahia foi apedrejado antes da partida. Em São Paulo, a sede da Federação Paulista de Futebol e a estação de metrô Barra Funda-Palmeiras foram depredadas.

No início deste ano de 2018, já temos duas mortes em jogos de torcida única. O primeiro caso, o já citado tiroteio em Goiânia. O segundo aconteceu no dia do jogo Santos x Corinthians (4/3/2018), quando um torcedor corinthiano foi morto após ser espancado, em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. Duas mortes já deveriam ser suficientes para percebermos que a torcida única não vai resolver nada.

Carrington

A torcida única não pode vencer. Este modelo não pode vencer.  Não podemos aceitar a torcida única e nem os tempos bicudos, como nos escreveu Marcos Teixeira. Ao aceitarmos esta medida, estamos aceitando a nossa incapacidade de conviver com o outro. E isto, convenhamos, não podemos aceitar calados.

A solução só pode passar por maior socialização e não pelo fim dela. Socializar é aprender a conviver e a respeitar o outro. Quanto mais ceifamos ou deixamos ceifar as possibilidades de convivermos com o outro, menos humanos nos tornamos.

Ben Carrington é sociólogo, professor da University of Southern California e um dos pensadores que mais admiro. Ele afirma, na introdução ao excelente livro que editou junto de Ian McDonald (Marxism, Cultural Studies and Sport, 2009), que o esporte não pode se resumir a ser interpretado como ópio do povo. Tem que ser uma arena de luta. Adotei que escrever sobre esporte é uma forma de lutar por ele. Por um esporte democrático.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Torcida única: saldo de duas mortes em 2018. Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 11, 2018.
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