153.20

Torcidas Organizadas paulistas na virada dos anos 70/80

Fabio Perina 17 de março de 2022

Dimensão antropológica-psicanalítica

O documentário “Todo Mundo” é por coincidência contemporâneo do ensaio literário “Tribos do Futebol” do francês Desmond Morris em que convergentes alguns temas. Primeiro, menciona primórdios de jogos de bola como se buscasse uma arqueologia de um objeto ou evento misterioso. Depois, investiga rituais recorrentes em um jogo de futebol de jogadores e principalmente de torcedores. Afinal, afirma que esses se afastam da realidade cotidiana ao mesmo tempo que buscam mergulhar nela. Os pequenos atritos agressivos e provocações não parecem ser perturbações que os fizessem abandonar tal ritual. Contém relatos de torcedores que antecipam o estudo de Canale (2020), conforme veremos, diante de queixas de má organização de uma partida tendo como responsáveis dirigentes e policiais; assim como menciona a necessidade de separação de setores nas arquibancadas. Há uma representação implícita do torcedor fanático como indistinguível entre o comum ou organizado. Desenvolve uma certa “antropologia de botequim”, uma vez que, ao invés de lançar mão de conceitos (como arrebatamento, cientifização, midiatização ou mercantilização), basta ao documentário trata de uma representação decadente dos jogadores que de mitos se tornaram peças de uma engrenagem. Com maestria de uma narrativa própria, se rompe esse pessimismo diante de “uma fresta de esperança”. Pela qual através do único instante de gol no documentário se retoma a cena inicial do menino e a bola e arremata: “a bola volta a ser do menino”…

Dimensão sociológica

Já a tese de doutorado de Silva (1996) trata do assim chamado “milagre econômico” do regime militar no início dos anos 70 gerando efeitos simultâneos na estrutura social para a dimensão do lazer e consumo: para a classe média, acesso a televisão e até ao automóvel permitindo outras opções de lazer “familiar” que não fossem o estádio; já para as classes populares, um modesto aumento do poder de consumo permitindo a ida regular ao estádio. Sobretudo de suas frações mais jovens com uma maior tendência a autonomia e até rebeldia em seu comportamento diante da família na vida cotidiana e diante do clube nos estádios.
Começa a tomar forma mais homogênea nos estádios uma representação do torcedor fanático que aparenta cada vez mais numeroso, embora o discurso midiático tenda a trata-lo como um infiltrado. Aos poucos os sentidos dessa representação tendem a ser mais radical: de fanático passando a ser marginal, pois se aproveita de brechas em multidões como nos estádios como oportunidade a delitos diversos. Algo reforçado pela contextualização nesse mesmo discurso midiático do aumento da (assim mal chamada) “violência urbana” como causa direta do aumento da violência no futebol. Que por sua vez determinados pela crise econômica e social mais ampla dos anos 80. Vide o estudo citar várias vezes o surgimento de grupos punks e skinheads como “contra-culturas” ou principalmente “tribos urbanas” como processos relacionados (um modismo acadêmico dos anos 80/90).
Até finalmente já nos anos 90 passando a representação de marginal a ser de criminoso como a única imagem possível do torcedor organizado. O balanço parcial que fica é que o estudo levanta argumentos poderosos contra o senso comum dominante da época que foi escrito: que a violência está inscrita na estrutura social sem ser monopólio de um grupo restrito e que não é possível um diagnóstico único como se fosse essa violência quem “retirou as famílias dos estádios” pois desconsidera que seus hábitos de lazer e consumo mudaram por iniciativa própria.

Assim como lança uma terceira tese importante para nosso período destacado: que a representação do futebol como alvo de manipulação estatal oscila conforme conjunturas econômicas de crescimento ou recessão, e por sua vez a relação dos torcedores de adesão ou questionamento também oscila. Episódio que já relatei em texto anterior sobre uma esperançosa conjuntura em que a organização política de torcedores e jogadores foi mais longe do que nunca. Afinal era um contexto muito fértil com os “novos movimentos sociais” e o “novo sindicalismo”. Parece óbvio de ser dito, mas retomo como chave de leitura que são nas crises “dos de cima” que os “de baixo” encontram oportunidades de reivindicação. O que na dimensão futebolístíca parece bem menos óbvio do que na dimensão política. Pois assim como na política o regime militar rachava com sua burguesia liberal e com isso abria espaço para a ascensão da esquerda, no futebol a recém criada CBF se desmembrava da CBD. Contudo, como sabemos os desfechos não foram vitoriosos para o campo progressista nas duas dimensões. (Obs: no final desse texto mencionarei sobre o fechamento dessa oportunidade histórica perdida para a militância torcedora)

Ainda como importantes contextualizações do período é preciso recordar que os anos 70 foram uma década da construção de estádios de massa por todo o país através de intensas relações clientelistas entre autoridades e dirigentes. Fazendo com que a principal fonte de receita dos clubes brasileiros de diversos escalões fosse a bilheteria. Assim como outro elemento estrutural da época era a ausência de separações contundentes entre torcedores rivais em um mesmo setor do estádio como o principal facilitador de agressões.

Torcida
Foto: Fabio Soares/ Futebol de Campo

Dimensão historiográfica

Já por sua vez a tese de doutorado de Canale (2020) será nossa terceira e principal referência pela riqueza de detalhes. Ela nos fornece mais subsídios para refletir sobre uma disputa entre uma lógica participativa e uma lógica proibitiva na virada dos anos 70 a 80, através de pesquisa em periódicos. Principalmente pelo protagonismo da recém criada naquele momento Associação de Torcidas Organizadas de São Paulo (ATOESP: de 76 a 83) permitindo uma inédita e até hoje inigualável ação política, podemos assim dizer, não apenas “intra-torcidas” (de um mesmo clube) mas sobretudo “inter-torcidas” (entre clubes rivais). Na entidade se destacavam as lideranças Hélio Silva (TUSP), Flavio de la Selva (Gaviões) e Cosme Damião (Jovem do Santos); além de TUP, Leões da Fabulosa, Jovem da Ponte e Guerreiros da Tribo.

Diante do início de grandes viagens de torcedores visitantes em caravanas é curioso que os primeiros esboços de negociação coletiva entre as torcidas organizadas paulistas reivindicavam justamente uma demanda de usar o aparelho público federal para uma regulamentação (ao invés de simples proibição) de um bem coletivo. Ou seja, que através do Conselho Nacional de Desportos se estabelecem regras para torcedores visitantes padronizadas a nível nacional (um problema até hoje recorrente) e até mesmo criassem um cadastro de cambistas (com no máximo 10% de aumento nos ingressos). O presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF) naquele final de década, Alfredo Metidieri, se mostrava realista que era melhor buscar o apoio dos cambistas ao invés de tentar proibir uma atividade como reflexo de alta informalidade estrutural no mercado de trabalho e de recessão econômica conjuntural. Infelizmente a proposta de estender os direitos trabalhistas e até previdenciários a essa categoria não foram adiante.

Houve a ironia através da faixa “Silêncio, estamos jogando” pendurada como forma de protesto à determinação da Polícia Militar de proibir as baterias das torcidas organizadas nos estádios. Diante da argumentação que o barulho atrapalhava os jogadores de ouvirem o apito da arbitragem, também foi apresentada uma argumentação de contraponto pela qual a batucada das torcidas organizadas poderia ser até benéfica para a arbitragem por abafar vaias dos torcedores comuns. Assim como já eram periódicas as proibições a elementos festivos como mastros de bandeiras, instrumentos musicais e fogos de artifício.

Felizmente a pesquisa também identificou micro-resistências dos torcedores ao buscarem entrar no estádio com esses materiais escondidos através do arremesso por cima do muro ou até junto de vendedores ambulantes cadastrados e nos ônibus com os jogadores

A pesquisa também chama a atenção a uma postura reivindicativa das torcidas organizadas não somente reativa (evitar proibições), mas até mesmo propositiva enquanto protagonistas do futebol como um todo: vide o presidente Cosme Damião, da Jovem do Santos, com uma proposta clara de unir ingressos populares, tabelas melhor organizadas do campeonato, melhorias na infraestrutura dos estádios e mais liberdade para torcer como elementos que levassem a bilheterias cheias e assim aumentar a competitividade dos clubes paulistas. A pesquisa destaca essa torcida organizada como alguns papéis ambivalentes: ao mesmo tempo protagonista de conflitos com rivais e também protagonista de negociações coletivas com os mesmos. Assim como uma das que mais se valeram do clientelismo como chave de leitura da relação clube-torcida, pois os seguidos protestos levaram à conquista de uma sala de materiais na Vila Belmiro. Diante de um cenário mais ambivalente ainda em que a torcida almejava que seus membros se tornassem sócios do clube em massa para influenciar em sua política, enquanto após conflitos violentos o clube alegava que nada poderia fazer de punição ou controle se os envolvidos não eram sócios.

Outra demanda significativa das lideranças torcedoras era contra um policiamento muito mais repressivo do que preventivo através do uso ostensivo de cada vez mais materiais como armas de fogo e cassetetes. É mencionado um contraste com o Maracanã pelo qual o policiamento carioca era bem menos ostensivo e a infraestrutura dos estádios e suas vias de acesso do entorno minimamente sérias e adequadas. Já no Pacaembu e no Morumbi eram comuns detenções provisórias em massa lotando uma cela conhecida como “chiqueirinho” em anexo a outras salas administrativas da Secretaria de Segurança Pública-SSP. Sobretudo com ocorrências no entorno dos estádios e alheios a torcedores como cambistas e flanelinhas, portanto mais um problema de segurança pública do que inerente ao futebol. Ou seja, acrescento que os principais estádios paulistas eram naquele momento um dispositivo de controle social para além do futebol.

“A cada nova ocorrência com feridos o ciclo se repetia: a mídia abordava o evento de maneira crítica, os representantes da secretaria de segurança e do futebol paulista eram chamados para dar explicações e, diante da pressão social, prometiam mudanças, que na maioria das vezes não iam além de declarações impressas nas páginas de jornais e revistas.” (CANALE, 2020)

Falando em atritos, vários deles são enumerados nessa pesquisa aos quais eu acrescento uma metáfora analítica de “curto-circuito”, ou seja, um desencontro de medidas e declarações entre autoridades e dirigentes no sentido que dificulta que alguma ofensiva proibitiva de controle sobre os torcedores e sua festa viesse com força máxima. Vide o imbróglio de responsabilidades entre público e privado, pois a prefeitura se negava a enviar ambulâncias ao Morumbi alegando ser patrimônio privado.

Um primeiro estudo de caso que destaco foi XV de Jaú x Corinthians de 77. Se já não bastasse a já comentada falta de padronização no policiamento fora da capital e as provocações “bairristas” entre torcedores do interior e da capital, houve nessa partida uma série de agressões entre torcedores e policiais, depredações e sobretudo várias invasões de campo. Partida com condições particulares pois na prévia durante todo o dia as provocações entre torcedores rivais levaram a depredações pela cidade e durante o jogo houve um excepcional isolamento entre setores nas arquibancadas. A repercussão do ocorrido é que a FPF e SSP, através dos responsáveis Alfredo Metidieri e Erasmo Dias, trocavam acusações: para um, o policiamento foi insuficiente e ineficiente; já para outro, sequer o estádio reunia condições de estar lotado com duas torcidas e ânimos tão exaltados. Enfim, situação até hoje muito recorrente desse “jogo de empurra-empurra” de responsabilidades. Assim como as invasões entravam em um debate recorrente que questionava e cobrava os policiais por omissão antes do ocorrido e por excesso de força depois.

Um segundo estudo de caso que destaco foram os clássicos entre Corinthians x Santos, sobretudo ao longo de 79, não somente pelas numerosas confusões (inclusive envolvendo jogadores) como o fato das duas maiores torcidas organizadas (Gaviões e Jovem) da época também eram as mais politizadas: fora dos estádios na ATOESP e até dentro dos estádios com a inédita faixa erguida pedindo “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Como uma prévia da recuperação do espaço público em seu mais amplo sentido pelos próximos anos chegando ao seu mais alto grau no movimento das Diretas Já. Embora esse evento foi mais simbólico do que estratégico, pois as duas torcidas tinham como prioridade a democratização dos próprios clubes e sabiam dos riscos de represália policial por conta do contato frequente nos estádios. Embora curiosamente em tempos recentes surja a tendência de cada uma delas ter uma nova versão mais nostálgica sobre o evento como uma conquista histórica e não como um fato isolado.

Um terceiro e último estudo de caso que destaco foi em uma partida Portuguesa x Santos em 81. O Canindé naquela época já era cenário recorrente de todo tipo de confusão, muito por conta da hipótese dos dirigentes da Lusa serem coniventes com agressões de seus torcedores a qualquer elemento que se poderia encarar como inimigo: jornalistas, jogadores, treinadores e dirigentes adversários e até árbitros. Mas naquela ocasião o fato decisivo foi a repressão da Polícia Militar contra a torcida santista e sobretudo o espancamento de seu presidente, Cosme Damião. O que fortalece a hipótese de represália política por conta de suas posições contundentes no sentido de organizar a categoria. A repercussão foi de novas acusações entre poder federativo e poder público e com alegações sobre qual a origem do fato violento: para um, os dirigentes em geral alegavam excesso de força policial injustificada; para outro, novamente a questão de mando de campo inadequado. Inclusive o novo presidente da FPF, Nabi Abi Chedid, era frequentemente acusado de “terceirizar” responsabilidades de segurança ao “dar carta branca” aos clubes e sem se importar com uma padronização preventiva. Pois estava interessado apenas nos lucros econômicos com bilheteria e sobretudo nos lucros políticos ao ficar com uma boa imagem junto à maioria dos dirigentes do interior, de onde provinha. Tal qual o Campeonato Brasileiro da CDB, o Campeonato Paulista da FPF reproduzia um excesso de clubes na tabela. Provando que o clientelismo foi a principal chave de leitura da vitória eleitoral de Chedid ao oferecer regalias a possíveis colaboradores assim como intimidações a adversários.

Por fim, o episódio serviu para a ATOESP unificar uma demanda muito legítima que infelizmente não teve força adiante: do fim do policiamento dentro dos estádios. Foi também o momento que as lutas das torcidas organizadas contra os dirigentes de turno em cada clube (o que também envolvia articulações com dirigentes de oposição) mais chegaram perto de convergir para a luta contra os dirigentes da FPF através organizarem protestos e até de cogitarem um boicote de não entrarem nas partidas.

O balanço que fica desses dois últimos ocorridos é que remetem a duas abordagens atualmente quase inexistentes na grande mídia: do torcedor como cidadão com protagonismo político e do torcedor como vítima da violência. sobretudo vinda de policiais.

Como desfecho parcial do período estudado na pesquisa, é ainda possível mencionar o protagonismo de um dirigente e uma autoridade atualmente muito conhecidos: José Maria Marin na FPF e Michel Temer na SSP. Em 85, diante de um enfraquecimento da ATOESP, eles foram responsáveis por uma certa reunificação de dirigentes e autoridades contra torcedores ao anteciparem em cerca de uma década as medidas proibitivas que depois do caso Pacaembu se tornaram famosas ao proibirem bebidas alcóolicas, uma série de materiais festivos e até mesmo práticas como o cambismo. Outra infame “antecipação” do cenário que se viria foi o jornalista Juca Kfouri defendendo o banimento das torcidas organizadas, embora até aquele momento não foi levado às vias de fato. Proibições e até mesmo a extinção provisória das torcidas organizadas que foram consolidadas a partir de 95, abrindo desde então um cenário muito desfavorável a elas.

Por fim, a meu ver onde convergem as três dimensões analisadas, com muita lucidez a tese de doutorado entende que já naquele momento a exclusão de membros violentos das torcidas organizadas já era “enxugar gelo”. Afinal no que parecia ser uma solução ao espetáculo esportivo na verdade agravava um problema de segurança pública. Pois se formavam pequenos grupos autônomos que não respondem mais a regras internas praticando pequenos delitos no entorno dos estádios (e de lá para cá cada vez mais distantes deles e, portanto, imprevisíveis), retroalimentando a (assim mal chamada) “violência urbana” já mencionada. Em suma, os fatos posteriores de uma proibicionismo inequívoco contra a festa torcedora e uma criminalização da militância torcedora reforçam a lição que a simples proibição do torcedor de entrar no estádio tem um efeito de imagem política paliativo de parecer rigorosa, porém torna ainda mais difícil a prevenção de conflitos. O que afinal não é uma excepcionalidade das torcidas organizadas, pois a maioria das instituições passa pela questão de excluir ou não membros para aumentar a coesão interna.

Leituras de Apoio

CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas paulistas entre 1968 e 1988 – Uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São Paulo). 2020. 340 f. Tese (Doutorado em História) – Escola de Ciências Sociais, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2020.

SILVA, Elisabeth Murilho. As “torcidas organizadas de futebol”: violência e espetáculo nos estádios. São Paulo. 1996. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Torcidas Organizadas paulistas na virada dos anos 70/80. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 20, 2022.
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