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Trajetória do futsal feminino na Universidade Federal do Amapá – UNIFAP: um relato de experiência

O protagonismo das mulheres no futebol é um tema que ainda carece de mais investimentos, tanto no âmbito da pesquisa, como no desenvolvimento de políticas que garantam maior acesso e participação na modalidade para as meninas, bem como a rejeição do desempenho no âmbito deste esporte (TORRES; SANTOS; BARBOSA, 2020; LOBATO; ROGRIGUES; COELHO, 2020). Por mais que reconheçamos a ampliação da participação das mulheres no futebol, o que é uma vitória alçada por meio de lutas, resistências e insistências, o futebol feminino ainda possui menor visibilidade; menor ocupação das mulheres em cargos de direção e como treinadoras; maiores barreiras socioculturais para a realização da prática futebolística.

É notório que o futebol tem destaque na construção social brasileira, sendo uma prática corporal que tem potencialidade para gerar vivências prazerosas e garantir sociabilidade. Todavia, não podemos perder de vista que esse esporte se estruturou no país reproduzindo desigualdade de classe, de gênero e ético raciais. Portanto, estamos frente a um fenômeno que possui ambiguidades, complexidades e contradições. O mesmo futebol, ovacionado, amado e respeitado por parte significativa da população brasileira, impôs um domínio hegemônico masculino, excluindo as mulheres. Isso deixa visível que o futebol não é tão democrático quanto parece, reforçando o machismo e patriarcado estrutural presentes em nosso meio social.

O preconceito no futebol feminino pode se apresentar de várias maneiras, seja nas questões de gênero, onde se pensa que mulheres não sabem jogar bola; nas questões do vestuário associado aos papéis de gênero; ou ainda nas questões como a sexualidade, onde as mulheres que jogam futebol/futsal são estereotipadas como homossexuais (Kotviski, 2013). Outras ações reforçaram este cenário, em que há exemplos como o Decreto Nº7, publicado pelo Conselho Nacional de Desportos em 1965, que proibia as mulheres de praticarem algumas modalidades esportivas, dentre elas o próprio futebol e o futsal (GOELLNER, 2005).

A mesma tratativa foi revogada em 1979, contudo, a prática esportiva brasileira da época não tornou-se generificada, nem igualitária (SOUSA; ALTMANN, 1999), fato este apresentado no estudo de Salles-Costas et al (2003), onde apresenta que em 1999, apenas 0,7% das mulheres com procedência no Rio de Janeira praticavam os esportes em seu tempo de lazer.

Em meados de 1990, marcou-se o início de debates a respeito da segregação entre meninos e meninas durantes as aulas de Educação Física, visto que esta dicotomia corroborava para o pensamento da época, uma diferença biológica no que concerne a prática das atividades (JACÓ, ALTMANN, 2017). Deste entendimento, desenvolveram-se tensões associadas à prática de aulas mistas, quando a categoria de gênero começou a ganhar espaço nos estudos da Educação Física Escolar, futebol e futsal feminino, sendo estes conteúdos recentes na educação brasileira (BARREIRA; GONÇALVES; MEDEIROS; GALATTI, 2018).      

Cabe imaginar a seguinte situação: se por um lado os meninos já enfrentam dificuldades para sua iniciação ao esporte, como por exemplo, falta de professores especializados e local adequado de treino, visto que dependem de quadras escolares, para as meninas, por sua vez, além de todo o estigma social, existem os fatores socioeconômicas, de raça, de incentivo à prática, já que existe uma restrição por parte da família no que concerne a este incentivo, o que acaba por desenvolver uma baixa adesão a modalidade durante a educação.

Como indica Goellner (2021), as mulheres, em diferentes tempos e contextos sociais, sempre precisaram disputar poderes para ser inseridas no futebol. Desta maneira, além de ter o seu direito de prática garantido, também poderiam desconstruir estereótipos misóginos ligados à biologia do corpo e do sexo, os quais pressupunham que o futebol, por ser viril, estaria mais associado ao homem, e que o futebol jogado por mulheres é exótico, “espetacular” e impróprio.

Diante disso, a prática do futebol e futsal pelas meninas, seja no contexto do lazer, da escola, da universidade e/ou de clubes, pode se constituir como um local para tecer laços de sociabilidade, de resistências e ressignificação das relações historicamente machistas que compõe nosso meio social.

Por essas questões, não é equivocado afirmar que em ambientes como a escola e a universidade muitas meninas têm o seu primeiro contato com a modalidade, que pode ocorrer por meio da aula de Educação Física, do treinamento de equipes, de vivências em momentos de lazer e por intermédio de projetos de extensão. Entendemos que estes locais são fundamentais para a trajetória das mulheres no futebol e futsal, uma vez que a ludicidade tem uma certa predominância no futsal como vivência inicial, quando a maioria das crianças e jovens brasileiros acabam tendo seu primeiro contato em uma quadra de concreto, antes de um campo com gramado e tamanho oficial de futebol.

Neste contexto, então, visando um maior número de atletas com vivências com o futsal, o estudo procurou desenvolver uma análise acerca do futsal feminino em contexto universitário. Assim, um conjunto de debates sobre o tema também vem se organizando no âmbito acadêmico, como a motivação de mulheres universitárias praticantes de futsal (VOSER et al, 2016; HIROTA; SCHINDLER; VILLAR, 2006); incentivos, dificuldades e preconceito de gênero no futebol/futsal feminino universitário (ASTARITA, 2009; GAMBÔA, 2019); lesões de atletas universitárias de futebol/futsal e estresse pré-competitivo de jogadoras universitárias de futebol (HIROTA, et al, 2008). Isso demostra que a modalidade em questão tem ascendido no Brasil, com a ampliação de jogadoras e também de investigações acadêmicas.

A pesquisa foi desenvolvida a partir do projeto inicial intitulado de “Trajetória de mulheres no futebol: um estudo com estudantes da UNIFAP” do Curso de Licenciatura em Educação Física da UNIFAP, resultando no subproduto deste, uma investigação com o projeto de Iniciação Científica, denominada de “Análise sobre a formação do time de futsal feminino da Universidade Federal do Amapá: estudo documental descritivo”. O objetivo era identificar informações acerca do processo de desenvolvimento da modalidade, como tempo destinado ao treinamento e quantidade de alunas que representaram a instituição em competições universitárias.

Solicitamos os documentos comprobatórios acerca da institucionalização da modalidade e da participação das alunas da UNIFAP em competições esportivas. Os documentos foram solicitados para a Pró-Reitora de Extensão e Ações Comunitárias (PROEAC); para a Coordenação do Curso de Educação Física e para o Núcleo de Esporte e Lazer (NEL).

Após esse contato, obtivemos 8 documentos comprobatórios – entre os anos de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2021 – acerca da participação das alunas em competições esportivas universitárias, sendo essas os Jogos Universitários Amapaenses (JUAP’S) e Jogos Universitários Brasileiros (JUB’ s), descritos na Tabela 1 com o quantitativo de atletas. Também nos foi disponibilizado 1 documento comprobatório – no ano de 2019 – que retrata a institucionalização do futsal feminino na UNIFAP, sendo esse um projeto de extensão intitulado “Futsal feminino na UNIFAP”.

Em 2019, a modalidade futsal feminino foi institucionalizada por intermédio do projeto de extensão supracitado, objetivando o incentivo à prática esportiva feminina na UNIFAP, expandindo o acesso ao esporte e ao lazer universitário, no estado do Amapá, qualificando essas ações para as mulheres acadêmicas, bem como a aplicabilidade do futsal feminino como ferramenta de ruptura dos pré-conceitos que envolvem o esporte.

O documento do projeto mostrou que as atividades aconteciam duas vezes por semana, tendo atendido cerca de 85 mulheres. Sobre os 8 documentos comprobatórios acerca do desenvolvimento das atividades do futsal feminino por intermédio dos JUAP’s e JUB’s, observamos uma curva decrescente na participação das atletas durante as competições, devido à falta de organização da modalidade anterior ao período de institucionalização, visto que a modalidade já era praticada desde 2014, contudo, a UNIFAP não dispõe de registro da prática em período ao anterior supracitado.

Tabela 1. Ano de participação e quantitativo de atletas.

Ano/competição

Quantidade de atletas

2014 (JUAP´s)

11 Atletas

2015 (JUAP´s)

12 Atletas

2016 (JUAP´s)

11 Atletas

2017 (JUAP´s)

10 Atletas

2018 (JUAP´s)

10 Atletas

2018 (JUB´s) Conferência Norte

8 Atletas

2019 (JUAP´s)

9 Atletas

2021 (JUAP´s)

9 Atletas

Elaborado pelos autores (2022)

Por fim, compreendemos que essa curva decrescente da participação feminina nas competições vai de encontro aos estudos de Martins et al (2018) e Souza & Martins (2018) que explicam que as dificuldades para o desenvolvimento da modalidade se dão por fatores como a falta de financiamento, dificuldades nas possibilidades de profissionalização, e que acabam por corroborar neste processo de não incentivo a modalidade.

Hipotetizamos ainda que  além da dupla jornada de trabalho, que influi na disponibilidade de tempo para a prática do esporte, e das questões familiares envolventes, que perpassam por restrições/incentivos e o fato de algumas atletas serem mães, ocupando-se boa parte do tempo, a integralização total do curso também pode ter sido fator que corroborou para a curva decrescente na participação.

Identificamos que a participação das alunas foi heterogênea, uma vez que obtivemos informativos de participação destas em períodos datados de 2012 à 2021. Importante ressaltar que a prática do futsal feminino tem sua importância na vida de cada uma das atletas. Por meio de um comparativo entre jogadoras e ex-jogadoras, foi unânime a resposta de que praticariam a modalidade mesmo após sair do time, como uma forma de lazer ou treinamento.

No que diz respeito às competições, entendemos que para as alunas as etapas de classificação para o JUAP´S ou JUB´S, tinham um caráter preparatório para rendimento esportivo e da emoção de participar de competições universitárias.

Por fim, tratando sobre o tempo e espaço para sua inserção na modalidade, compreendeu-se que o ambiente escolar e os amigos da rua tiveram predominância nas falas das atletas, gerando um questionamento acerca do profissional de Educação Física, pois o mesmo parece ter influência positiva neste processo.

Para uma compreensão mais refinada acerca, são necessários mais estudos e análises acerca do futsal feminino dentro do contexto escolar, buscando compreender os fatores que levam à prática esportiva, seja em relação de lazer ou de busca por um desenvolvimento esportivo profissional.

Referências

ASTARITA, P. E. Incentivos e dificuldades vivenciados por atletas do futsal feminino universitário. 2009. 32f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Educação Física) – Escola de Educação Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.

BARREIRA, J.; GONÇALVES, M. C. R.; MEDEIROS, D. C. C.; GALATTI, L. R. Produção acadêmica em futebol e futsal feminino: estado da arte dos artigos científicos nacionais na área da Educação Física. Movimento, v. 24, n. 2, p. 607-618, 2018.

GAMBÔA, T. C. B. As dificuldades encontradas no futebol feminino: uma visão de atletas. 2019. 26f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Educação Física) – Faculdade de Ciências da Educação e Saúde, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2019.

GOELLNER, S. V. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Movimento. v. 27, n. 1, p. 1-12, 2021.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005.

HIROTA, V. B.; SCHINDLER, P.; VILLAR, V. Motivação em atletas universitárias do sexo feminino praticantes de futebol de campo: um estudo pilotoRevista Mackenzie de Educação Física e Esporte, v. 5, n. 3, p. 135-142, 2006.

HIROTA, V. B.; TRAGUETA, V. A.; VERARDI, C. E. L. Nível de estresse pré-competitivo em atletas universitárias do sexo feminino praticantes do futsalConexões, v. 6, n. especial, p. 487-497, 2008.

JACÓ, J. F.; ALTMANN, H. Significados e expectativas de gênero: olhares sobre a participação nas aulas de educação física. Educação em Foco, v. 22, n. 1, p. 1-26, 2017.

KOTVISKI, J. C. Um estudo sobre a iniciação do futsal feminino na periferia de Curitiba. Revista Brasileira de Futsal e Futebol, v. 5, n. 18, p. 314-321, 2013.

LOBATO, I. L.; RODRIGUES, R. P.;  COELHO, H. R. Futebol/Futsal é Lugar de Mulher? A Produção do Conhecimento em Periódicos (2002-2019)Revista de Educação, Saúde e Ciências do Xingu, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2020.

MARTINS, M. Z.; REIS, H. H. B.; CASTELLANI, R. M.; SANTANA, W. C.; & ALTMANN, H. Entre o amadorismo, a profissionalização e a carreira dupla: o futsal feminino de elite sul-americano. Revista Brasileira de Ciência e Movimento, v. 26, n. 1, p. 143–155, 2018.

SALLES-COSTA, R.; HEILBORN, M. L.; WERNECK, G. L.; FAERSTEIN, E.; LOPES, C. S. Gênero e prática de atividade física de lazer. Cadernos de Saúde Pública, v.19, n. 2, p.325-         333, 2003.

SOUSA, E. S.; ALTMANN, H. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cadernos Cedes, v.19, n. 48, p. 52-68, 1999.

SOUZA, A. C. F.; & MARTINS, M. Z. O paradoxo da profissionalização do futsal feminino no Brasil: entre o esporte e outra carreira. Pensar a Prática, v. 21, n. 1, p. 26–39, 2018.

TORRES, T.; SANTOS, V. P.; BARBOSA, C. As principais lesões do futebol feminino e a atuação da fisioterapia desportiva. In: 16ª Mostra de Iniciação Científica – CONGREGA, 2020, Rio Grande do Sul. Anais… Rio Grande do Sul: Urcamp, 2020, p. 1-5.

VOSER, R. C.; HERNANDEZ, J. A. E.; VOSER, P. E. G.; RODRIGUES, T. A. Motivação dos praticantes de futsal universitário: um estudo descritivo. Revista Brasileira de Futsal e Futebol, v. 8, n. 31, p. 357-364, 2016.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

GUIMARãES, João Carlos Silva; MONTENEGRO, Gustavo Maneschy. Trajetória do futsal feminino na Universidade Federal do Amapá – UNIFAP: um relato de experiência. Ludopédio, São Paulo, v. 158, n. 23, 2022.
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