A cena é linda.

Praia, mar, futebol.

Essência da habilidade ímpar que o brasileiro tem de improvisar.

Bola dente de leite em meio ao vento litorâneo. Três cocos verdes, um quarto já ressecado. Seis jogadores sedentos por jogar a primeira. Um monte a mais esperando os duelos seguintes.

Está definida a peleja.

Sem demoras. Sem firulas. Com protestos em vão.

Três para cada lado.

Times escolhidos a partir da alternância democrática de um inviolável par ou ímpar.

Quatro pés entre um coco e outro, intervalo de dez metros de extensão entre cocos travestidos de metas.

Os limites laterais do campo, no entanto, são incertos e variáveis: vão do início do barranco de areia fofa de um lado; até onde o boleiro alcança pé já dentro da água salgada do outro.

Muito por isso, a composição tática segue certa lógica!

Mulheres jogam futebol na praia de Copacabana como parte do Outubro Rosa, promovido pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da ALERJ. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.

O mais bem preparado fisicamente ataca pela areia fofa, fazendo esforço hercúleo para desenterrar o próprio pé, quase em chamas, a cada passo que dá em sua corrida desenfreada naquele setor de campo abrasivo.

O mais habilidoso dribla as marolas – e os rivais – naquele limiar entre terra e mar, sentindo os respingos d’água que se misturam ao suor igualmente salgado naquele setor de campo molhado.

O perna de pau fica na banheira, salvaguardando a própria trave, a própria honra, segurando a ansiedade incontida de ultrapassar a linha imaginária que, por reles convenção, lhe obriga ficar um metro a frente da linha de gol.

Em dado momento da manhã, a propósito, quando a maré começar a subir em demasia, o perna de pau ganhará a função extra de garantir que os cocos – digo, traves – não sejam varridos para longe dali. Ainda que, não raro, o defensor matreiramente os recoloquem mais próximos uns dos outros para dificultar os gols rivais.

Polêmica! Reclamação! Ira!

Recoloca-se as traves no seu devido local.

Segue o jogo!

Um desavisado, pouco acostumado com a arte peladeira que se desenrola ali, dificilmente vai se ver diante de uma partida de futebol ao presenciar tudo aquilo.

É um verdadeiro caos, à primeira vista.

Dribles desconcertados no relevo enladeirado da maré baixa.

Bola surrupiada pela onda atrevida da maré alta.

Bolinhas de frescobol perdidas, serelepes e saltitantes, se misturando ao lance da vez.

Cachorrinhos endiabrados fugindo de seus donos em busca de aventuras no campo improvisado.

Crianças surgindo do nada, hipnotizadas pela bola em seu curso mágico.

Pessoas diversas em suas caminhadas diárias. Que ora interrompem o transcurso da jogada, ora se transformam em Joãos para serem driblados pelo dublê de Garrincha da vez.

Pois é

Pode não parecer, mas é jogo sim. Sério. De campeonato. Quase de final.

Jogo disputado. Instigado. Brigado.

Porque, não raro, tudo pode terminar em grito, em dedo em riste na cara, em empurrões, em caldos eventuais quando a dividida debanda para o lado mais fundo do campo de jogo.

Futebol na praia do Estaleiro em Ubatuba. Foto: William Droops.

Briga-se por tudo!

Briga-se para saber quem vai pegar a bola rebelde que foge tresloucadamente pela linha de fundo; briga-se para ver quem grita mais alto a marcação improvisada do árbitro inexistente, e que ao mesmo tempo existe em cada um dos boleiros arredios; briga-se para decidir se o chute derradeiro transformou-se em gol ou passou por cima do travessão que simplesmente não estava lá para dar a sua versão dos fatos.

Na peleja dominical das praias Brasil afora, areia vira gramado, banhistas viram torcidas, sargaços viram morrinhos artilheiros, camisa e sem camisa se transmutam na mais ferrenha de todas as rivalidades que o mundo da bola já testemunhou.

Ao menos até o segundo gol de um mesmo time na partida em curso.

O jogo acaba. Chega a hora da “próxima”. Vitoriosos se extasiam. Derrotados são parcialmente substituídos. Saem do desejoso posto de titulares e viram eles próprios os ansiosos pela tal “próxima”.

O jogo recomeça. A rivalidade se aflora uma vez mais. Os embates se recrudescem.

Inicia-se, a partir daí, partida após partida, uma curiosa dança de posições entre os times, que invariavelmente acaba por misturar tudo. E vai transformar aliados em rivais; rivais em inseparáveis parceiros de tabelas, dribles, toques magistrais e gols.

E assim será até a mais pura exaustão física, quando todos se entregarem inertes ao banho de mar coletivo que define o apito final.

Cada qual narrando em êxtase os próprios feitos, minimizando os próprios deslizes, maldizendo os pernas de pau que são sempre os outros e nunca a si mesmo, marcando de antemão a data da próxima final de campeonato no sol escaldante das nove da manhã.

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Essa crônica vai estar no livro “Quando a Saudade me Visita”, que sai ainda este ano. É o meu quinto livro. Uma coletânea de 70 crônicas sobre temas diversos que está com pré-venda aberta numa plataforma de financiamento coletivo. Coloquei aqui, como aperitivo, uma das crônicas que falam sobre futebol, em primeira mão para os leitores do Ludopédio. A propósito, a crônica em questão é inspirada em um cenário de João Pessoa, a capital da Paraíba. Espero que tenham gostado.


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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. Travinha à beira-mar. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 5, 2020.
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