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Tucanistão: o calvário das arquibancadas

Fabio Perina 19 de maio de 2022

INTRODUÇÃO

Esse texto visa realizar uma retrospectiva de cerca de três décadas diante das frequentes medidas de proibição à festa dos torcedores por parte de autoridades e dirigentes paulistas. Não sendo coincidência que elas se intensificam a partir de 1995 com a conhecida “tragédia do Pacaembu” quando também tem início uma longa hegemonia eleitoral estadual do PSDB (por isso “Tucanistão”) até os dias de hoje. Será dado destaque às conjunturas de 95-96 e as mais recentes de 2015-16 e 2021-22. Como questão preliminar de fundo, “calvário das arquibancadas” é mais preciso do que apenas “calvário do futebol”. Pois como premissa geral o futebol não pode ser tratado como “essência” de forma abstrata, mas sempre composto de sujeitos históricos em disputa. Ou seja, ao invés da percepção enganosa do futebol como “vítima” de algum ataque vindo de fora, na verdade o desmonte vem de dentro. Afinal o primeiro termo é mais leal à correlação de forças em cada conjuntura em que torcedores se vêem cada vez mais isolados. E sem sequer poderem contar, como o segundo termo sugere, com uma improvável unidade tática junto a outros profissionais do futebol como treinadores e jogadores e junto a jornalistas (mas apenas indignações imediatas caso a caso).

Como premissa geral desse vínculo inseparável entre futebol e política, primeiro algumas considerações gerais sobre elites com seus mecanismos de poder anti-populares. Levanto como hipótese que esse partido (PSDB) é a maior expressão política da elite econômica paulista e que por tantos anos de governo também desenvolveu uma profunda “blindagem” com as elites midiática e judiciária locais (no caso o Tribunal de Justiça e principalmente Ministério Público, ou apenas de agora em diante MP-SP) como suas bases orgânicas que favorecem sua perpetuação. O que para esse ensaio crítico é preciso levar em conta prioritariamente trajetórias institucionais, mas sem descartar pistas que nas relações promíscuas nas vidas pessoais de alguns personagens reforçam a articulação política. Afinal nessa hipótese pode ser acrescentada a elite dirigente do futebol (no caso a Federação Paulista de Futebol, ou apenas de agora em diante FPF). Trocando em miúdos, tendo em comum origens de classe social muito semelhantes, é muito pouco provável algum magistrado denunciar ou julgar com celeridade e rigor algum empresário, político ou até dirigente se em suas vidas pessoais pode ser muito provável terem estudado juntos (ou seus filhos estudam juntos), morarem em um mesmo condomínio ou frequentarem os mesmos eventos sociais. (Obs: para compreender esse mecanismo de convergência de visões de mundo pessoais com decisões institucionais dentro da “grande família judicial brasileira” conferir este breve texto). Em suma, algo que não buscarei dados para demonstrar, mas vale mencionar uma desconfiança permanente com a suposta neutralidade institucional.

Ainda como premissa geral, é preciso “dar nome aos bois” de quem são esses “coveiros das arquibancadas” e até da cultura popular como um todo: sobretudo dirigentes e autoridades. Embora a eles também se misture esse sujeito discreto que é o empresário (sobretudo no papel midiático mais cotidiano nos grandes veículos). Seria pouco produtivo para a análise tratar de políticos, dirigentes ou empresários “puros”, havendo cada vez mais relações promíscuas de empresários com ação política explícita. Vide disputando eleições e, pela via inversa, políticos e dirigentes tradicionais que encontraram uma fachada empresarial. Afinal a empresarização do futebol desde os anos 90 é tão ampla que afeta clubes e federações e, mais do que nunca, a grande mídia monopolista. Pois ela por sua vez busca ser um catalizador de outras grandes empresas para sua entrada no futebol ao classificar os discursos cotidianos entre legítimos ilegítimos, e isso obviamente impacta na arquibancada com os sentidos dos termos ‘torcedor’ e ‘consumidor’ em disputa permanente. Vide também, algo que aqui apenas menciono sem aprofundar, ser sintomático ocorrer em SP em tempos recentes o principal “laboratório” da “leifertização” do futebol pelo apagamento de sua dimensão política e até mesmo de sua dimensão clubística (ou seja, a narrativa de fim das rivalidades, provocações, protestos ou polêmicas em geral).
O que não surpreende por se dar no estado e na cidade que também em tempos passados já se chegou aos absurdos de proibir nas ruas outdoors e até canudos de plástico nos últimos anos, assim como nas últimas décadas Jânio Quadros proibiu skate, mini saia e briga de galo! Essa breve menção histórica a seguir serve para recordar o janismo-malufismo paulista como tradicional força eleitoral de medidas moralistas e elitistas e/ou impopulares quando em governo. Algo plenamente incorporado e intensificado pelo “tucanismo”.

skate Jânio Quadros
Fonte: reprodução Folha de S. Paulo – 26/07/2021

1995-96
Logo após a assim chamada tragédia do Pacaembu de 95 houve a tão alardeada promessa do presidente da FPF, Eduardo José Farah, de “retorno das famílias aos estádios”, convergente com o apelo midiático. O que na verdade é um pretexto para a troca do torcedor pelo consumidor, pois de fato as famílias populares nunca deixaram de ir aos estádios mesmo com o suposto aumento da violência. É o momento que a partir de então a federação vem se mostrando uma empresa como outra qualquer que trata o futebol como um negócio como outro qualquer ao lhe inserir elementos de entretenimento.
O que é respaldado por essa breve retrospectiva de seus presidentes. A longa sucessão de mandatos de Farah de 88 a 2003 parecia ter em sua reta final uma obsessão em um marketing permanente de lançar alguma ‘invenção’ geniosa dentro de campo a cada ano do Paulistão: em 2000, campeonato com dois árbitros em campo; em 2001, disputa de pênaltis para decidir empates; em 2002, o absurdo do desempate de uma semifinal da Liga Rio-São Paulo por menor número de cartões amarelos! Nos anos seguintes de 2003 a 2015, agora com Marco Polo Del Nero, ainda houveram medidas claramente disciplinares fora de campo quanto à organização de setores dos estádios e sua ocupação pelos torcedores: criação de um ‘setor família’ (2004) e confinamento de torcedores organizados em setor específico mediante cadastramento (2007). Assim como medidas “inovadoras” de modernizar o espetáculo oferecido, porém ao estilo de esportes estadunidenses, ao colocarem moças atléticas dançando sensualmente para entreterem o público no intervalo e mais recentemente ao criarem mascotes e uma turbinada na divulgação de patrocínios nos “naming rights” das competições. (Obs: é possível relatar também nessa época a troca de função do coronel Marcos Marinho: de comandante do Batalhão de Choque para responsável pela arbitragem na FPF; ou seja, um efeito simbólico da segurança como respaldo “técnico” ao entretenimento). E mais recente a FPF com Reinaldo Carneiro Bastos segue explorando a sua fachada empresarial ao gozar do prestígio de ser o único estadual rentável do país em contraste com o “atraso” dos demais, segundo o discurso tão cotidiano na grande mídia “leifertizada”.

coronel Marcos Marinho
Coronel Marcos Marinho. Fonte: reprodução SporTV

Já daqui do nosso lado da trincheira política nas arquibancadas, a assim chamada tragédia do Pacaembu de 95 deve ser encarada como uma derrota histórica da militância torcedora. Embora a prova do tempo mais de duas décadas depois mostre que ela foi parcialmente atenuada, pois as torcidas organizadas ganharam uma certa sobrevida através da institucionalização do carnaval (que já era presente em várias delas embora de forma reduzida) ao se verem “obrigadas” a aumentarem a organização interna diante da nova lógica competitiva dos desfiles. Fazendo menções a vários elementos descritivos que sustentam essa afirmação, desde aquela época, as proibições aos torcedores se enumeraram: mastros de bandeiras e cerveja (as mais duradouras através de lei estadual) e faixas e baterias (as mais oscilantes) dentro dos estádios, e até lanches de pernil e demais produtos informais em seu entorno.
Além dessas medidas institucionais, aplicadas por dirigentes e autoridades, surgiram na prática outras extra-institucionais diante do novo impulso de arenização nos últimos anos levou a um aumento de proibições mais detalhadas e mais absurdas em diversos estádios do estado até mesmo para partidas “pacatas” com seus casos isolados: proibindo crianças de pintar o rosto e de entrarem com bandeirinhas e cavalinhos de pelúcia e reprimindo até algumas delas que subiram no alambrado para comemorar um gol. O sentido político por traz desses casos é o policiamento (contrariamente a sua uma fachada técnica) gozar de um livre-arbítrio de decidir e aplicar medidas de segurança no calor do momento e sem que o torcedor-cidadão possa relatar para outras autoridades essas irregularidades. Casos excepcionais de prejuízo à cultura torcedora infantil que se somam à cobrança regular de ingressos caros nas arenas privadas como se fossem adultos. O que no médio e longo prazo impõe um rigoroso filtro financeiro de quais as crianças que quando passarem a ser jovens poderão entrar nos estádios. Acredito que para a criança tanta restrição a entrar no estádio e lá torcer são inibidores muito maiores do que o suposto discurso da violência para afastá-las difundido pela mídia “leifertizada”.
(Obs: por falar em arenização, há ainda alguns contrastes atuais que escancaram esse declínio do torcedor e ascensão do consumidor: crianças apenas querendo torcer e adultos marmanjos mais com celular na mão do que torcendo, além de “comemorando” renda alta e ingresso caro como se isso fosse sinal de “grandeza” em relação aos rivais. Ao menos há algo de resistências positivas com uma série de partidas da Copa São Paulo de Futebol Junior, a “Copinha”, com grande apelo popular nos estádios “raiz” fora da capital, pois pela soma de ingressos gratuitos à maior liberdade para torcer é onde ainda se canaliza o torcedor ainda popular e festivo).

Em suma, os “coveiros das arquibancadas” não compreendem que materiais festivos são como partes do corpo dos torcedores. Proibir os objetos é na verdade proibir os sujeitos (sobretudo os populares). E não há material mais sintomático de uma proibição “ad infinitum” desde 95 em SP que são os mastros de bandeiras (enquanto em estados vizinhos como MG e RJ as torcidas paulistas podem levá-los normalmente). É simbólico de como diversos materiais recebem uma “interpretação” única dos “coveiros das arquibancadas” como podendo ser usados apenas em sua versão mais perigosa, sendo que sequer há antecedente disso como um material relevante em algum conflito. Além da ressalva que a demanda política das torcidas pelo retorno dos mastros é antiga, mas não pode ser descontextualizada sob risco de se tornar uma isca para cooptação. Ou seja, elas tivessem (e de fato tiveram) que pagar um preço muito caro na negociação para o benefício de liberá-las em nome de um “espetáculo festivo” (funcionalmente midiático) às custas de prejuízos maiores a seus membros através de medidas punitivas. Como por exemplo o conhecido instrumento jurídico de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), responsável pela oscilação entre proibição e liberação de materiais como faixas e baterias). Porém que incide apenas nas torcidas organizadas e isenta dirigentes e autoridades de terem que ter bom comportamento e sequer de cumprirem suas obrigações! Por isso a crítica ao instrumento por ser desproporcional.

2015-16
Uma breve e recente retrospectiva a seguir de como esse mecanismo operou junto de outros elementos: Em abril de 2016, o conhecido decreto de torcida única; em dezembro de 2016, as diretorias das torcidas organizadas realizaram um encontro pela paz na entrada do Pacaembu em homenagem ao acidente aéreo da Chapecoense naqueles dias (o que vejo como uma tática desesperada e paliativa de tentar “limpar a imagem” diante da opinião pública e da mídia “leifertizada”, que por sua vez adora essa narrativa de “fim das rivalidades”); por fim, em agosto de 2017, reunião dessas mesmas diretorias com autoridades e dirigentes com a retomada (embora lenta) de negociações pela volta de materiais festivos (vide liberação parcial de faixas e baterias mas ainda não os sempre polêmicos mastros de bandeiras). Assim como a mais recente proibição decretada pelo MP de treinos abertos de clubes rivais nos estádios no mesmo horário antes de uma final. Vide o fragmento irônico a seguir de um Palmeiras x Corinthians de 2018, justamente a primeira final de Paulistão com clássico em torcida única, como sintomático da exclusão do torcedor popular como um efeito colateral da arenização dos dois clubes.

“Fico imaginando como seria se houvesse uma grande crise no Brasil e não houvesse mais caixões para enterrar pessoas. E que a solução do problema ficasse por conta do MP e da PM. Após breve reunião, algum midiático promotor convocaria a imprensa e diria: “a partir de agora, está proibido morrer”. Simples, não é? É assim que agem para tratar dos problemas existentes em jogos de futebol (…) Ao proibir treinos abertos em locais distantes, a PM e o MP estão abrindo mão de seu trabalho, estão levando a incompetência e o autoritarismo a níveis estratosféricos. Ao manterem os treinos abertos, Palmeiras e Corinthians estão reafirmando sua condição de canais da expressão popular, seu status de representantes da paixão popular”.

Ora, para tratar do paralelo entre duas ofensivas contra a cultura torcedora nas conjunturas de 95-96 e de 2015-6 é preciso mencionar o protagonismo não somente na FPF, mas sobretudo do MP-SP. Sobretudo com ambas as instituições tendo um discurso convergente de uma nova função empresarial ao espetáculo futebolístico visando combater os torcedores violentos para realizar “a volta das famílias aos estádios”. E os principais agentes individuais dessa ofensiva foram os promotores Fernando Capez e logo depois Paulo Castilho. Sendo o primeiro tendo de lá para cá importante liderança como deputado estadual pelo PSDB, quando nessa segunda conjuntura citada foi acusado de chefiar o escândalo da “Máfia da Merenda”. Um evento sintomático para “amarrar” os elementos analíticos até aqui mencionados desde o início do texto: “desde baixo”, os até então crescentes protestos entre torcidas organizadas contra o deputado (além de outras autoridades e dirigentes com impacto no futebol) encontraram um refluxo após o decreto da medida de torcida única; “desde cima”, é um inquérito que se “arrasta” a cerca de 6 anos como estratégia para ir atenuando o efeito imediato de indignação popular após a emergência do escândalo. Sugerindo nossa hipótese inicial da conivência da elite jurídica paulista em investigar e julgar algum membro da elite política (ainda mais vindo do meio jurídico). Assim como nessa nova ofensiva houve protagonismo de Castilho no MP-SP e de Alexandre de Morais na Secretaria de Segurança Pública, principalmente através de uma blitz policial na sede das torcidas organizadas com mandados de prisão. De lá para cá a ascensão política de cada um foi notória: Castilho se tornou procurador e Morais se tornou ministro de Justiça e depois ministro do STF. Enfim, um caso que por si só já valeria um novo texto a parte, mas que pode ser em parte contextualizado neste outro texto, com destaque para a dimensão “desde baixo”.

Copinha
Torcedores do São Paulo invadem campo na Copinha e arbitragem encontra faca no gramado. Fonte: reprodução SporTV

2021-22

Como desfecho da conjuntura futebolística, esse ano de 2022 se inicia com graves incidentes no futebol paulista. A começar no final de janeiro pela invasão de campo em Barueri em uma semifinal São Paulo x Palmeiras com torcida única. Profundo e surreal também que um clássico em reta final de “Copinha” mostra tanta tensão nos bastidores quanto um profissional. Vide disputas entre dirigentes por mando de campo como um efeito colateral diante da “pilhagem” do Pacaembu, que deveria ser o palco de grandes decisões como essa e com maior chance de prevenir atritos. Logo depois, no início de fevereiro, repressão do policiamento a torcedores corintianos. E pior, dias depois um homicídio em uma aglomeração de torcedores palmeirenses enquanto assistiam a final do Mundial de Clubes em que se posicionaram três erros absurdos dos “coveiros do futebol”: primeiro, a PM sequer conseguiu impedir que um sujeito passasse armado pelo cerco policial no entorno do estádio; depois, a grave omissão de socorro à vítima (simultâneo a mais repressão indiscriminada à multidão); e por fim, a omissão de prestação de contas dos dirigentes do clube com pelo menos solidariedade à vítima. Nem sequer tiveram o trabalho de preservar a imagem do clube ao ter bem em sua frente uma repressão generalizada e até mesmo um corpo caído na rua sem vida. O que novamente retoma nossa hipótese inicial de conivência mútua entre dirigentes e autoridades enquanto elites.

Muito ilustrativo o contraste entre dois casos recentes (ambos em meados de 2021) que irei apenas citar para não ficar ainda mais extenso esse texto. Para os “coveiros do da cultura popular” estão muito claras quais as prioridades para monumentos e patrimônios públicos paulistanos. De um lado, a criminalização do incêndio à estátua do bandeirante Borba Gato (e o imediato refinanciamento para sua revitalização); de outro lado, a avassaladora “marcha do progresso” de destruição do tobogã do Pacaembu para a construção de instalações empresariais. Uma das mais nítidas “marcas de gestão” de Doria desde quando prefeito, assim como o Ibirapuera e outras tentativas com ofensivas permanentes de privatização de equipamentos públicos de lazer. Diante de tanto protagonismo recente de Dória, não se esquecer também de uma discreta passagem sua em meio à ‘cartolagem’ da CBF (ou seja, a elite esportiva dirigente) ao ser parte da delegação na Copa América do Chile, em 2015, sob alegação de experiência no turismo. Falando na sucessão de políticos, também é sugestivo que desde a queda de Ricardo Teixeira na CBF, em 2011, a sucessão de dirigentes veio da FPF durante uma década: José Maria Marin (inclusive ex-governador biônico no início dos anos 80), Marco Polo Del Nero e Rogério Caboclo. Esse último a rigor com um perfil mais de empresário do que de dirigente ou político, como prova da busca de federações na última meia década de se buscar renovar sua imagem através de uma fachada pró-mercado e anti-política.

Pacaembu
Fonte: reprodução TV Bandeirantes

Como desfecho da conjuntura política, é preciso retomar a formação histórica da elite paulistana ao levantar uma hipótese de ser o “poder moderador” em relação à política nacional bem sugerida nesse texto. Ou seja, mesmo com a diferença superficial de cerca de dois séculos entre a corte imperial de Dom Pedro I e a tecnocracia tucana de “colarinho branco” há entre ambas semelhanças substanciais. Através de um percurso de apropriação privada do poder pelo tradicional conservadorismo paulista vindo desde diversas etapas estruturais: o bandeirantismo colonial, o separatismo de 32 e o janismo-malufismo com uma renovação nas últimas décadas através do tucanismo. Uma máquina eleitoral que pouco tira forças de carisma pessoal de candidatos e sequer tira forças de um programa próprio. Pelo contrário, apenas se beneficia de alimentar um vago medo com o antipetismo e alimentar discursos vagos de anti-política e anti-corrupção. Por um lado, nos corredores dos bastidores políticos, se beneficia do aparelhamento da máquina pública do governo estadual (ou a já citada blindagem intra-elites) para se perpetuar nas eleições. Por outro lado, no “espetáculo” eleitoral, se beneficiou de eleições presidenciais cada vez mais polarizadas em 2014 e 2018 nas quais as poucas semanas de um intenso segundo turno dificultavam ao eleitorado paulista questionar a longa sucessão tucana (e com isso prevaleceu o voto conservador contra qualquer candidato “novo” visto como “ameaça”). Vide o protagonismo inicial no golpismo sob fachada de impeachment contra Dilma Roussef através de agitação do mineiro Aécio Neves clamando por “terceiro turno” em um processo iniciado no final de 2014 e consumado no início de 2016.

Essas quase três décadas de hegemonia absoluta no governo estadual (junto a uma hegemonia relativa com alternância de vitórias no governo municipal na capital) foram conduzidas por três quadros partidários tradicionais com pelo menos um mandato cada: Mario Covas, Geraldo Alckmin (embora atualmente no PSB) e José Serra. (Sobre Covas, quem recente teve seu neto Bruno como prefeito, vale recordar a absurda “pérola” do tradicional elitismo tucano quando declarou que “as professoras não são mal pagas, mas sim mal casadas!”)Já as vitórias do empresário João Dória para prefeito em 2016 e para governador em 2018 representaram um abalo que agravou atualmente a coesão interna do partido e até mesmo de sua identidade política. Sendo sintomática a campanha “Bolsodória” de 2018, porém cerca de um ano depois com claro rompimento e ofensas pessoais entre Bolsonaro e Dória.
Menção a um último elemento desse tabuleiro político: mesmo fora do tucanato, uma outra ‘linha auxiliar’ do conservadorismo paulistano recente é Celso Russomano. Ao ir do campo midiático ao político, também se apoiando na vaga bandeira anti-corrupção, sua figura remete simbolicamente ao desenrolar dos anos 90 com o marco regulatório no âmbito federal do Código de Defesa do Consumidor que depois levou a explícita inspiração no Estatuto de Defesa do Torcedor. (Obs: embora nesse texto foi dada muita ênfase ao poder executivo, uma breve mas difícil menção ao sempre complexo voto no poder legislativo de hegemonia conservadora ou reacionária, vide a imensa bancada bolsonarista de 2018 e uma nova que tende a se redesenhar em 2022, ora como concorrente e ora como linha auxiliar do tucanismo).

Em suma, para esse final de ano retirar os tucanos do Palácio dos Bandeirantes é uma tarefa histórica para o povo paulista e até mesmo para o torcedor paulista (vide as 3 conjunturas analisadas). Tal qual em uma partida dentro de campo, a extrema desunião do adversário (vide primárias internas hostis no final de 2021 entre o gaúcho Eduardo Leite e o paulista João Doria) pode ser o fator decisivo para a derrota definitiva do tucanato.

João Doria
João Doria em 2019, então Governador do Estado de São Paulo. Foto: Wikipédia/Marcos Corrêa/PR
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Tucanistão: o calvário das arquibancadas. Ludopédio, São Paulo, v. 155, n. 20, 2022.
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