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Terminou no Sarriá a última seleção romântica

A talentosa Seleção Brasileira de 1982 tinha tudo para conquistar o tetra, mas, no dia 05 de julho, a Tragédia do Sarriá abreviou a participação do time de Telê Santana na Copa do Mundo da Espanha e inaugurou a falsa dicotomia entre “jogar bonito e perder ou jogar feio e vencer”.

Sempre que um time do futebol brasileiro não joga seguindo os moldes da idealizada escola brasileira que prioriza o drible e o improviso, das mesas redondas das TVs às mesas dos botecos, surgem analistas para resgatar a Seleção Brasileira de 1982.

Seleção Brasileira de 1982. Foto: Acervo CBF.

A geração que encantou o mundo pelo futebol bonito frustrou os brasileiros por uma derrota inesperada e ficou marcada por não vencer, com o passar dos anos foi revestida da aura de melhor time da história.

Em 1982, era difícil encontrar em qualquer parte do planeta uma seleção mais favorita e teoricamente gabaritada ao cargo de campeã do mundo do que a Amarelinha. Pelo menos era o que achava o brasileiro.

O craque do time de craques, Zico, tinha 29 anos e vivia o auge da forma física e técnica. O Galinho estava invicto com a camisa da Seleção desde 1980, quando o Brasil foi derrotado por 2 a 1 num amistoso contra os soviéticos em pleno Maracanã.

Além de Zico, Telê Santana tinha à disposição Sócrates, Junior, Leandro, Luizinho, Toninho Cerezo, Falcão, Éder e outras estrelas que faziam sucesso em seus clubes. A expectativa era de uma campanha promissora.

O corte de Careca

Na preparação, às vésperas da estreia, a lesão de Careca atrapalhou os planos de Telê. Neste ponto reside a polêmica sobre a titularidade ou não de Careca e se o desempenho brasileiro poderia ter sido diferente com o atacante. Nas Eliminatórias, Serginho Chulapa revezou o comando de ataque com Reinaldo e Telê ainda testou nomes como Adílio, Nunes, Roberto Dinamite e Careca.

O atacante do Guarani teve sua primeira oportunidade apenas no ano do Mundial, mas chegou credenciado por ser o vice-artilheiro do Brasileirão com 20 gols. Telê Santana deixava claro que Reinaldo era seu camisa 9 ideal, no entanto, o atacante do Galo sofria com contínuas lesões e não reunia condições físicas para ir à Copa.

Na ausência de Reinaldo, Serginho era o reserva imediato. Indícios como o número 9 dado por Telê a Chulapa, o histórico nas Eliminatórias e a cobertura jornalística da época revelam que era Serginho quem tinha a confiança do treinador em 82 e, provavelmente, seria o escolhido para o time principal.

A maneira como evoluíram as carreiras de Careca e Serginho depois do Mundial na Espanha induz ao erro quando se analisa a situação sob a ótica atual.

A Seleção em campo

Na primeira fase, pelo grupo F, com sede em Sevilha, os adversários foram a União Soviética, Escócia e Nova Zelândia. Nenhum “bicho papão”, ainda que os soviéticos pudessem aprontar como no Maraca dois anos antes. Não repetiram a zebra, mas assustaram quando Bal chutou de muito longe, Waldir Perez falhou feio e a URSS abriu o placar logo na estreia brasileira no Mundial.

O susto serviu para duas coisas: o questionado Waldir Peres não voltaria a falhar na Copa e os brasileiros perceberam que era preciso ter competitividade para jogar um Mundial. O talento do Brasil sobressaiu e Sócrates e Éder viraram o placar em dois bonitos chutes de fora da área.

Contra Escócia e Nova Zelândia, dois passeios. Na segunda rodada frente aos escoceses, outra vez os brasileiros saíram atrás, mas sem dificuldades os gols de Zico, Oscar, Éder e Falcão viraram o placar para 4 a 1 e empolgaram quem já enxergava aquela como a campanha do tetra.

A Nova Zelândia nunca havia participado de uma Copa do Mundo e só voltaria a participar em 2010, ou seja, tinha pouquíssima tradição no futebol. Foi esse frágil adversário que a última rodada da fase de grupos reservou ao Brasil. Tranquilamente, a Seleção bateu os neozelandeses por 4 a 0 com dois gols de Zico, um de Falcão e, enfim, o debute do centroavante Serginho Chulapa.

O esplendor contra a Argentina

Zico em ação na Copa de 1982. Foto: Divulgação.

A tão falada melhor seleção de todos os tempos só pôde ser vista de fato no jogo contra a Argentina. Não é menosprezo afirmar que na primeira fase, a Seleção Brasileira não teve um adversário sequer à altura. Porém, a formatação da segunda fase com quatro grupos de três equipes poria os brasileiros à prova contra duas gigantes: Argentina, atual campeã do mundo, e Itália, então bicampeã.

No primeiro confronto do triangular sediado em Barcelona, os argentinos. Quando a bola rolou, não deu nem para a saída, como se diz na várzea. Zico, Serginho Chulapa e Junior abriram impiedosos 3 a 0 antes que os argentinos pudessem anotar a placa do atropelamento.

Maradona foi expulso depois de agredir Batista, porém, anos depois, El Pibe confessou que o alvo era Falcão, mas errou o chute. Ramón Díaz descontou o prejuízo para 3 a 1 e Filol trabalhou muito para evitar que o placar fosse mais elástico.

A Tragédia do Sarriá

Ao assistir à partida daquele dia 05 de julho de 1982, no Estádio Sarriá, é perceptível que o resultado nada teve de trágico do ponto de vista futebolístico. É injusto não admitir que os italianos jogaram melhor naquele dia e que o time de Telê apresentou falhas.

A Itália havia empatado seus três jogos na fase grupos e vencido a Argentina por 2 a 1, ou seja, só a vitória interessava à equipe do questionado treinador Enzo Bearzot. Na primeira fase, os italianos ficaram na sede em Vigo e foram observados por Zezé Moreira, que havia sido enviado pela CBF como olheiro da delegação.

O veterano treinador, então aos 75 anos, retornou de Vigo impressionado com o que viu e passou um relatório completo a Telê Santana. Numa entrevista a Ernesto Paglia, alertou que a Itália era a favorita ao título quando ninguém no Brasil conseguia enxergar além do meio-campo mágico com Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico.

O empate bastava para que o franco favorito Brasil se classificasse para a semifinal. Tudo começou a desmoronar logo aos cinco minutos, quando Paolo Rossi abriu o placar e expôs uma grave falha no lado direito do setor defensivo brasileiro, que deixava Leandro sozinho com o atacante Graziani e o lateral Cabrini.

Não demorou e o Brasil empatou com Sócrates depois de jogada com Zico. Com o 1 a 1, tudo parecia sob controle para os brasileiros, até que Toninho Cerezo decidiu cruzar uma bola na frente da área. O rápido e inspirado Paolo Rossi se antecipou e em três toques na bola estava sozinho na frente de Waldir Peres que nada pôde fazer para evitar o 2 a 1.

Cerezo se redimiu com sua movimentação ofensiva ao puxar a marcação italiana e deixar Falcão livre para acertar um chute fulminante no canto de Zoff e empatar em 2 a 2. As falhas individuais e coletivas naquele jogo foram cruciais. Enquanto, no ataque, Serginho perdeu um gol feito ao furar um cabeceio, na defesa, Cerezo errou novamente e recuou mal para Waldir Peres que cedeu um desnecessário escanteio.

Estádio Sarriá, em Barcelona. Foto: Wikipedia.

Na cobrança, uma generalizada desatenção da defesa brasileira e Paolo Rossi, o homem que já havia marcado duas vezes no jogo, surgiu completamente livre dentro da área para balançar as redes e anotar o 3 a 2. E poderia ter sido 4 a 2, não fosse um gol italiano anulado por erro da arbitragem.

O apito final do árbitro israelense Abraham Klein decretou a Tragédia do Sarriá e a eliminação brasileira causou incredulidade e frustração no Brasil. No entanto, a vitória italiana não foi surpreendente para Zezé Moreira e o resto do mundo, que apesar de apreciarem o futebol arte de Telê e companhia não deixaram de observar a força da Itália.

O futebol mudou, mas não porque o futebol arte acabou

Não é preciso reduzir a Seleção Brasileira de 82 para reconhecer a melhor exibição italiana. É necessário reconhecer as grandes deficiências de um time capaz de construir lances mágicos, mas que errava muito individual e coletivamente. A Itália soube aproveitar todos os erros e Paolo Rossi, que até àquele momento não havia feito gols, com o hat-trick, saltou em direção à artilharia do Mundial.

O clima de frustração que se abateu sobre os brasileiros sugeriu por muito tempo que aquele foi o fim do futebol arte. Não foi, mas a consequência foi uma profunda mudança no pensamento futebolístico no Brasil e, a partir de 1982, as equipes nacionais passaram a priorizar o setor defensivo movidos pela dicotomia “jogar bonito e perder ou jogar feio e vencer”.

Em entrevista de 2018 à revista Placar, Zico falou sobre a partida, mas sem deixar de admitir que a Itália foi melhor:

“Eu costumo dizer que, se tivesse um gol que eu gostaria de ter feito, seria o do empate contra a Itália, mas pouco antes de o jogo acabar. Se tivesse tempo após esse gol de empate, acho que os italianos fariam o quarto. Parece que estava escrito que, tantos gols a gente fizesse, eles fariam mais, pelas circunstâncias. Foi a única vez que tomei três gols pela Seleção”.

A Itália seguiu até à decisão e bateu a Alemanha para conquistar o tricampeonato. O jogo disputado no Santiago Bernabéu marcou a primeira vez que um brasileiro apitou uma final de Copa do Mundo com Arnaldo Cezar Coelho sendo o único representante brasileiro na partida que poderia ter consagrado a Seleção Brasileira de 1982. Atualmente, Pep Guardiola é o principal responsável por manter vivo o estilo de jogo do time de Tele Santana. O treinador catalão era um adolescente que assistiu Brasil x Itália no Sarriá e é um apaixonado pelo futebol arte.

Ainda que a Itália estivesse mais preparada e concentrada para a conquista, a magia daquela Seleção encantou uma geração que hoje está na casa dos 50 anos e, como o menino eternizado na capa do Jornal da Tarde, chorou dolorosamente por futebol pela primeira vez. As desgostosas crianças de 82 ainda sofreriam novas decepções em 86 e 90 e esperariam 12 anos para, já adultos, serem tetras, pois, em 05 de julho, a Tragédia do Sarriá encerrou nossa última seleção romântica.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. Terminou no Sarriá a última seleção romântica. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 11, 2020.
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