141.30

Um campeão, um vírus e milhares de mortos: viva o entretenimento!

A relação mídia, entretenimento esportivo e pandemia mostrou ser um tripé com grandes implicações. Em 2020 a pandemia da COVID-19 impôs a necessidade do isolamento social, isto é, restrições sanitárias que paralisaram inúmeras atividades humanas no mundo todo, com forte impacto na dimensão econômica, sendo os eventos esportivos uma das esferas mais afetadas.

De origem latina, intertenere – entretenimento – é aquilo que se tem no intervalo das ocupações mais sérias, e seu verbo indica dois significados: distrair-se, recrear-se (uma ocupação prazerosa e divertida que proporciona uma experiência singular e enriquecedora para o sujeito) e algo mais ligado à ilusão, desvio de atenção (uma tentativa de desviar a atenção diante da realidade da vida).[1]

O esporte, esse elemento da cultura moderna que nos permite fazer inúmeras leituras sobre nossos modos de vida e comportamentos sociais, muitas vezes associa a si representações sobre saúde, bem-estar e uma vida saudável. Paradoxalmente, boa parte da população mundial, inclusive a brasileira, foi forçada a permanecer em casa, tendo em vista que o máximo de conhecimento “terapêutico” sobre o vírus, então novo e enigmático, era isolar-se para evitar contaminação e propagação. O entretenimento esportivo foi uma das possibilidades utilizadas pelas mais diversas mídias, especialmente a televisão, servindo como paliativo, amenizando o sofrimento e a angústia da espera.

Os empreendimentos esportivos ficaram com espaços vazios, as mídias esportivas tiveram que se contentar com entrevistas, fofocas, sondagens, futurologias e com a reprise de jogos passados (clássicos de finais nas mais diversas modalidades, finais olímpicas, jogos importantes e decisivos de Copas do Mundo de Futebol etc.). Após alguns meses, depois do começo da pandemia oficializada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, os eventos esportivos foram pouco a pouco retornando. Os campeonatos e competições que recebem grande investimento, patrocínio e que possuem calendários vinculados aos grandes conglomerados de mídia sofreram uma pressão para que seus eventos voltassem a acontecer.

O retorno aconteceu primeiro na Europa, em seguida chegou ao Brasil, com a retomada dos campeonatos estaduais de futebol. Outras modalidades, como vôlei e basquete, também foram retomadas na sequência. Tal situação indicou que ainda durante o primeiro ano da pandemia, no segundo semestre de 2020, a população voltou a ter um alento proporcionado pelo entretenimento. Tanto em relação ao jornalismo esportivo (que voltou a ocupar os espaços de cobertura em jornais, sites, rádios e televisões), como em relação ao entretenimento esportivo (na forma de transmissão dos eventos, como campeonatos e competições diversas), voltamos a ter uma certa “normalidade” quando pensamos o período anterior à pandemia da COVID-19.

No caso do futebol, a FIFA instituiu o “minuto de silêncio” como ritual de abertura das partidas. Momento que desejamos registrar, pois, no caso do Campeonato Brasileiro da Série A, seu início aconteceu em 08 de agosto de 2020, dia[2] em que o país superava os 100 mil mortos em decorrência da COVID-19. Seis meses depois, no dia 25 de fevereiro de 2021, temos um campeão brasileiro, e também um triste registro de 251.661 mortos na abertura da última rodada do campeonato. Números divulgados durante as transmissões radiofônicas e televisivas, que, com o advento da vacina e da pífia campanha de vacinação no Brasil, também divulgam agora os dados quantitativos dos vacinados (da primeira e da segunda doses).

Ao mesmo tempo em que os números da pandemia podem trazer perplexidade ao percebermos a evolução nos últimos seis meses em 38 rodadas de jogos, entristece perceber que muitos torcedores não se importam com tais dados. A mídia provavelmente procurou, com o entretenimento esportivo, amenizar a dura realidade dos estragos da pandemia, no mundo e principalmente no Brasil. Entretanto, o conjunto que envolve confederações esportivas (CBF, Conmebol etc.), com os próprios clubes e equipes (de várias modalidades) e mais o “auxílio” da mídia, que, supostamente, “apenas faz a cobertura” dessas competições/acontecimentos, apresenta-se como um bloco mercadológico responsável pelo avanço do vírus. Uma afirmação que parece ser forte e até questionável, mas não podemos negar que o futebol de campo, uma paixão que exacerba os riscos, levou torcedores à rua.

Durante o Campeonato Brasileiro de 2020, finalizado em fevereiro de 2021, vimos, mesmo com a necessidade do isolamento/distanciamento social, as aglomerações de torcedores em centros de treinamento, hotéis, estádios e aeroportos, com o objetivo de reivindicar melhor atuação do seu time ou na euforia por avançar em competições importantes, assim como, na comemoração de títulos. Surtos em atletas e comissões técnicas positivados, casos de ex-atletas ou dirigentes que sucumbiram pela doença acompanharam o campeonato, mas sem impactar para o recuo da pandemia. Comportamentos de torcedores, atletas e dirigentes que comprometeram a disputa contra o vírus da COVID-19, e que no período venceu de goleada.

Lisca
Imagem: Reprodução Premiere

O campo esportivo como um todo sofreu perdas humanas, desde dirigentes, passando por comissões técnicas, atletas (na ativa e já aposentados), apresentadores esportivos e torcedores anônimos, certamente milhares de torcedores anônimos! Poucas vozes dissonantes, no interior desse campo, apareceram para chamar a atenção sobre o que, de fato, está ocorrendo, como do ex-jogador Casagrande (atualmente trabalhando como comentarista esportivo na Rede Globo) e o técnico Lisca (atuando no América Futebol Clube/MG), que, na noite do dia 03 de março de 2021, fez o seguinte desabafo que viralizou nas redes sociais e também na grande mídia comercial:

“É quase inacreditável que saiu uma tabela da Copa do Brasil hoje, com jogos dia 10 e 17. 80 clubes que nós vamos levar com deleção de 30 pessoas para um lado e para outro do país. O nosso país parou, gente. Não tem lugar nos hospitais, eu estou perdendo amigos, estou perdendo amigos treinadores, não é hora mais, é hora de segurar a vida.”

A pausa em 2020 achatou o calendário e, finalizadas as principais competições nacionais do ano anterior, na lógica mercadológica que aprendemos com o entretenimento esportivo, não temos tempo a perder! Os campeonatos estaduais e continentais estão em andamento. O Brasil em estágio de colapso na saúde – quase todos os estados da federação chegando a 100% de ocupação hospitalar e com uma média diária de 1.361 óbitos[3] – e continuamos a ver, na abertura dos jogos de futebol, a contagem dos mortos, números naturalizados ou saturados de informação que já não percebemos seu significado, importância e representação.

Os campeonatos nacionais de 2020 já têm seus campeões, alguns acreditam ser o Clube de Regatas Flamengo/RJ (Série A), a Associação Chapecoense de Futebol/SC (Série B), o Brusque Futebol Clube/SC (Série C) ou o Mirassol Futebol Clube/SP (Série D). Infelizmente, quem recebeu o título foi a equipe que aposta em jogadores como Desunião, Incompetência, Negligência, Falta Educação, Negacionismo, Ideologização, Banalidade, Egoísmo, Insanidade, Desinformação e Irresponsabilidade. Para liderar essa equipe, o técnico ideal, capaz de extrair toda técnica desses onze jogadores, numa harmonia tática incrível: o Capital! O preparador físico, claro, com nome composto: Falta de Ética!

Então, temos um campeão e o título representa muita tristeza e fracasso. Estamos perdendo a partida mais importante que a sociedade brasileira poderia jogar, e o escore atual é muito maior que um 7×1. O 7×1 era uma representação da nossa sociedade em 2014, mas os 261.188 mortos[4] são nossa realidade que reforça que, enquanto coletividade, morremos todos!

 

Notas

[1] BETTI, Mauro. Esporte, entretenimento e mídias: implicações para uma política de esporte e lazer. Impulso, Piracicaba, v. 16, n. 39, jan./abr. 2005, p. 83-89.

[2] Brasil passa dos 100 mil mortos por covid-19. Acesso em: 03 mar. 2021.

[3] Disponível em: Brasil tem novo recorde na média de moret e registra 1.786 óbitos em 24 h. Acesso em: 04 mar. 2021

[4] Brasil registra 1786 mortes em 24 horas total chega a 261 mil. Acesso em: 04 mar. 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Cristiano Mezzaroba

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe (DEF/CCBS/UFS) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED/UFS). Coordenador do GEPESCEF - Grupo de Estudos e Pesquisas Sociedade, Cultura e Educação Física.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da; MEZZAROBA, Cristiano. Um campeão, um vírus e milhares de mortos: viva o entretenimento!. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 30, 2021.
Leia também:
  • 177.28

    A camisa 10 na festa da ditadura

    José Paulo Florenzano
  • 177.27

    Futebol como ópio do povo ou ferramenta de oposição política?: O grande dilema da oposição à Ditadura Militar (1964-1985)

    Pedro Luís Macedo Dalcol
  • 177.26

    Política, futebol e seleção brasileira: Uma breve reflexão sobre a influência do futebol dentro da política nacional

    Pedro Luís Macedo Dalcol