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Um idílio e sua paz rompida, ou “quando a casa cai”

“Cartão postal”: essa expressão, para lá de comum ao se definir belas paisagens, é o que me vem à mente quando penso em Zurique. Aliás, a Suíça é um dos países mais fascinantes e belos do continente europeu. Sua paisagem alpina e seus lagos são deslumbrantes, além de suas cidades, sempre muito organizadas e funcionais, feito um relógio suíço, que já se tornou índice de identidade do país ao lado do chocolate e do queijo (numa visão estereotipada, é claro).

Zurique 27 de maio de 2015
Zurique, 27 de maio de 2015. Foto: Elcio Cornelsen.

Pois é: na manhã do último dia 27 de maio de 2015, um de seus idílios, nada menos que Zurique, a cidade mais populosa do país, teve sua paz rompida por um escândalo surpreendente: a prisão de 07 dirigentes da Fifa no hotel de luxo Baur au Lac. Surpreendente, diga-se de passagem, mais pelo inusitado da ação do que propriamente pela notoriedade dos fatos.

Por coincidência do destino, cheguei a Zurique no início da tarde daquele dia, para um congresso na universidade, e fui surpreendido pelas notícias veiculadas na mídia suíça. Curioso em saber a opinião dos suíços a respeito, como um semioticista que se preocupa não apenas com o que, mas como algo é dito, procurei acompanhar a repercussão daquelas prisões através de matérias publicadas na imprensa suíça naquela semana.

Comecei por um jornalzinho bem popular – o diminutivo aqui não é pejorativo, mas sim referente ao tamanho do jornal: 30 x 20 cm – o 20 Minuten, de distribuição gratuita em Zurique, semelhante ao jornal Metro que é distribuído em algumas capitais brasileiras, mas com mais páginas. Certamente, levei mais de “20 minutos” para ler boa parte de suas 52 páginas. A manchete de capa da edição de 28 de maio de 2015 anuncia: “Será que Sepp Blatter consegue salvar sua cabeça?”[i] Já as páginas 2 e 3, sob a rubrica “Escândalo na Fifa” (Fifa-Skandal), apresentam três matérias sobre as prisões do dia anterior. A maior delas, tomando praticamente 2/3 das duas páginas, traz em destaque o título “Polícia prende sete dirigentes, a Fifa interdita 11”.[ii] Além dessa, outras duas matérias ampliam o escopo temático: “Políticos suíços querem pegar a Fifa pelo colarinho”[iii] e, respectivamente, “Essa mulher faz com que o inferno fique quente para a Federação”.[iv]

Na matéria “Políticos suíços querem pegar a Fifa pelo colarinho”, uma frase do membro do Conselho Nacional pelo Partido Popular Suíço (SVP), Roland Rino Büchel, expressa bem a insatisfação dos parlamentares diante da organização mater do futebol mundial: “A gente precisa dizer claramente: na direção da Fifa continuam figurando velhacos terríveis”.[v] Outro que também não poupa a Fifa com críticas é o membro do Conselho Nacional pelo Partido Socialdemocrata (SP), Cédric Wermuth, que exige mais transparência nas ações e nas finanças da entidade: “Não pode ser que uma organização bilhardária como a Fifa tenha os mesmos deveres de prestação de contas do que uma associação de tiroleses do Emmental”.[vi]

Por sua vez, a matéria “Essa mulher faz com que o inferno fique quente para a Federação” faz menção à Ministra da Justiça norte-americana, Loretta Lynch, como sendo a pessoa que “está de olho” na Fifa, que, na conferência de imprensa realizada no dia anterior em New York, teria acusado os dirigentes por lavagem de dinheiro e suborno, tanto em contratos de marketing, quanto na escolha das sedes para seus torneios.

O escândalo na Fifa e a cobertura de imprensa
O escândalo na Fifa e a cobertura de imprensa. Foto: Elcio Cornelsen.

Não obstante a magnitude do escândalo aconteceu exatamente o que estamos acostumados a ver em certos lugares muito familiares: Blatter foi reeleito como Presidente da Fifa no dia 29 de maio de 2015, apenas dois dias após as prisões de seus dirigentes. Desta feita, no dia 30 de janeiro, o jornal AZ – Aargauer Zeitung, em sua edição para o norte da Suíça, publicou a manchete de capa “A tragédia de Blatter e a mentira dos outros”.[vii] Na referida matéria, aliás, o articulista parece criticar a imprensa alemã por avaliações “apressadas” do caso ao condenar o presidente da Fifa e publicar em sua capa a manchete “Caia fora!”, como teria feito o jornal Bild, o mais popular da Alemanha, no dia anterior. A impressão que dá, é que o Aargauer Zeitung estava mais preocupado em defender Blatter como cidadão suíço do que propriamente lançar-se a críticas, como o fez parte da imprensa do país vizinho. O Bild, aliás, publicou no dia 30 de maio de 2015 uma capa inteira em negro, com a silhueta de uma bola de futebol ao centro, em que se lê a manchete “Um dia negro para o futebol”.[viii] A mesma postura pode ser aferida pela manchete de capa da revista Der Spiegel, “Corrupto – o Sistema Blatter”,[ix] publicada na mesma data. Esses breves exemplos demonstram que diversos pontos de vista foram apresentados nas imprensas suíça e alemã sobre o escândalo na Fifa e suas repercussões para o futuro da entidade.

Centro de Zurique 28 de maio de 2015
Centro de Zurique, 28 de maio de 2015. Foto: Elcio Cornelsen.

Percorrendo as ruas de Zurique, muito se pode vislumbrar sobre a riqueza cultural dessa cidade. Em geral, os turistas menos afeitos a aspectos culturais, tentarão encontrar na capital suíça a “fábrica de chocolates”, ou algum shopping onde possam fazer boas compras. Ou procurarão restaurantes típicos (infelizmente, difíceis de encontrar nos dias atuais…), onde se possa degustar um bom “Rösti” acompanhado de uma cerveja local. Todavia, em seus becos estreitos podemos encontrar o famoso Cabaret Voltaire, um dos centros intelectuais de exilados da Primeira Guerra Mundial, onde surgiria o movimento dadaísta nas artes e na literatura, com nomes como Hugo Ball, Hans Arp e Tristan Tzara.

Catedral-Mor de Zurique 30de maio de 2015
Catedral-Mor de Zurique, 30 de maio de 2015. Foto: Elcio Cornelsen.

Outro ponto imperdível é a Catedral-Mor de Zurique, em que Ulrich Zwinglio conduzira a Reforma Protestante na Suíça. Mas, desta vez, o que viria romper a paz desse Oasis de beleza e cultura seria algo menos lisonjeiro: uma organização desportiva envolvida num escândalo de escala mundial. As dimensões da repercussão desse escândalo para o futebol mundial ainda são aguardadas. Mas uma coisa é certa: nada será mais como antes. Até o presidente da entidade, não suportando as pressões, renunciou ao cargo em 02 de junho de 2015.

Às margens do Lago de Zurique 31 de maio de 2015
Às margens do Lago de Zurique, 31 de maio de 2015. Foto: Elcio Cornelsen.

 

[i] No original: „Kann Sepp Blatter seinen Kopf retten?“. 20 Minuten, de 28 mai. 2015, p. 1. Todas as traduções são de minha autoria.

[ii] No original: “Polizei verhaftet sieben Funktionäre, Fifa sperrt elf“. 20 Minuten, de 28 mai. 2015, p. 2-3.

[iii] No original: Schweizer Politiker wollen der Fifa an den Kragen”. 20 Minuten, de 28 mai. 2015, p. 2.

[iv] No original: “Diese Frau macht dem Verband die Hölle heiss“. 20 Minuten, de 28 mai. 2015, p. 3.

[v] No original: “Man muss es auch mal klipp und klar sagen: Im Fifa-Vorstand sitzen imer noch grauenhafte Halunken“. 20 Minuten, de 28 mai. 2015, p. 2.

[vi] No original: “Es kann nicht sein, dass die Fifa als milliardenschwere Organisation die gleichen Rechnungslegungspflichten hat wie ein Jodlerverein aus dem Emmental“. 20 Minuten, de 28 mai. 2015, p. 2.

[vii] No original: “Blatters Tragik und die Verlogenheit der anderen”. Aargauer Zeitung. nº. 143, 20º ano, 30 jun. 2015, p. 1.

[viii] No original: “Ein schwarzer Tag für den Fussball”. Bild. 123/22, 30 mai. 2015, p. 1.

[ix] No orginal: “Korrupt – Das System Blatter”. Der Spiegel. nº 23, 30 mai. 2015, capa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Um idílio e sua paz rompida, ou “quando a casa cai”. Ludopédio, São Paulo, v. 73, n. 7, 2015.
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