162.22

Um jogo em Casablanca

José Paulo Florenzano 22 de dezembro de 2022

Em meados de 1960 o Santos partiu para uma longa excursão pelos gramados da Europa, embalado pela fama mundial subitamente adquirida por Pelé a partir da Copa da Suécia. A demanda por amistosos era tamanha que o cronograma de viagem permanecia em aberto, sujeito à inclusão de jogos e a desvios de rotas, uma vez que não convinha desperdiçar nenhuma oportunidade de negócio.

Foi assim que logo após se exibir contra o Stade de Reims, em Marselha, mas antes de se deslocar para Toulouse, onde o aguardava o próximo compromisso da turnê europeia, dirigentes e empresários inseriram no caminho do time de Vila Belmiro a cidade de Casablanca, ensejando a primeira atuação de Pelé na África, continente ao qual ele retornaria seguidas vezes ao longo da carreira.

Infelizmente, não temos o relato de jornalistas brasileiros sobre a estreia de Pelé em solo africano. Segundo Antonio Guenaga, enviado especial de A Tribuna, de Santos, eles não puderam acompanhar a delegação alvinegra ao Marrocos por uma razão prosaica: “falta de espaço” no voo.[1] Sabemos, no entanto, que depois de jogar na sexta-feira em Marselha, os atletas praianos entraram em campo no sábado em Casablanca para enfrentar o Deportivo, da Espanha.

Não por acaso, as expectativas em torno do encontro que reunia o “duelo” entre Pelé e Sastre, as estrelas de Santos e Deportivo, acabaram frustradas. De acordo com o despacho da AFP, os marroquinos ficaram “decepcionados” com a exibição da equipe brasileira, chegando mesmo a vaiá-la “ruidosamente”.  Nem mesmo o placar de 2 a 2 foi capaz de reduzir o descontentamento dos cerca de dezoito mil torcedores que acorreram ao estádio para ver o aguardado espetáculo. A imprensa local, porém, chamava atenção para um detalhe importante que não estava sendo levado em conta pelos espectadores: o Santos de Pelé havia realizada em Casablanca a décima quinta partida no curto período de um mês!

Deixemos, porém, a excursão do Santos, que retornaria à Europa para continuar a maratona de amistosos, para nos determos no Marrocos, país que comparecia no registro jornalístico apenas na condição de palco onde se realizara o encontro entre brasileiros e espanhóis. De fato, era como se o futebol, ali, não existisse. E, no entanto, ele não apenas já possuía uma longo história como se revestia de uma significação central para a sociedade marroquina. Introduzido pelos franceses no contexto da dominação colonial, entre o final do século XIX e início do século XX, o futebol viria a se constituir em uma importante fonte de identidade nacional.      

Com efeito, ao mesmo tempo em que se difundia e ramificava pelas diversas esferas da vida social, o futebol no Marrocos se convertia rapidamente em um instrumento de luta pela emancipação política. Nesse sentido, a fundação de clubes muçulmanos objetivava corporificar, não o “cristianismo muscular”, conforme a estratégia dos colonizadores, mas a resistência à opressão estrangeira, caso, precisamente, do Wydad Athletic Club, criado em 1937 na cidade de Casablanca. Vinte anos depois, já no quadro da emancipação colonial, havia cerca de oito mil atletas no país, distribuídos por mais de duzentos e cinquenta clubes.[2]

Eis, em suma, o contexto histórico da breve incursão do Santos de Pelé pelo Marrocos. Olhando em retrospecto, podemos avaliar não apenas o desenvolvimento da prática esportiva no país, como, sobretudo, a reviravolta no palco do jogo. De fato, se, em 1960,  o futebol marroquino sequer era mencionado na cobertura jornalística de um evento que a rigor o excluía; em 2022, ele emerge como protagonista de uma campanha admirável, coroada pela participação inédita de uma equipe árabe e africana nas semifinais da Copa da FIFA.

Em compensação,  o futebol brasileiro, habituado a desempenhar o papel de protagonista, se vê pouco a pouco relegado ao papel de mero coadjuvante, ou, pior ainda, reduzido à condição de simples espectador. O jogo bonito se nos afigura cada vez mais uma miragem. Como na frase famosa do filme Casablanca: “Estamos no meio do deserto”.[3]

Casablanca

 


Notas

[1] “Cf. “Fadiga impediu melhor exibição”, Antonio Guenaga, A Tribuna, 21 de junho de 1960.

[2] Todas as informações sobre a introdução e o desenvolvimento do futebol no Marrocos encontram-se no livro de Dietschy, Paul; Keimbou, Kemo. Le Football et L`Afrique. Paris: EPA, Hachette Livre, 2008, pp. 50-81

[3] Sobre os diálogos do filme estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, ver “Ecos de Casablanca”, Ruy Castro, Folha de S. Paulo, 11 de dezembro de 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Um jogo em Casablanca. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 22, 2022.
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