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Um Maraca lotado gritava dentro e fora de mim

Carlos Meijueiro 22 de abril de 2021

Há uns 10/11 anos atrás, numa final de um torneio de futebol em Quintino entre Tijuca e Madureira, fiquei com a responsabilidade de bater o último pênalti. Era um domingo de sol massacrante. Os jogos das categorias de base normalmente eram nesses horários ingratos, e todos já estavam desgastados depois de duas horas de tempo normal e prorrogação. Um jogador do time adversário tinha errado a cobrança anterior, e se eu fizesse acabava.

Estava nessa posição confortável de poder errar, e ao mesmo tempo de fazer o do título. Bater o último pênalti nem sempre é bom. Pode ser a melhor ou a pior coisa pra se fazer. Do meio campo até a bola você anda alguns poucos segundos, e até tomar distância e bater demora mais alguns poucos segundos. Foram eternos aqueles míseros segundos. Lembro da terra do campo iluminada pelo sol vertical, do barulhos das travas da minha chuteira roçando na terra, dos gritos de incentivo dos meus companheiros de time, das pessoas assistindo o jogo nas laterais, imaginava o que eles imaginavam.

Pensei as duas possibilidades, eu errando, vendo o goleiro vibrar e me provocar e depois olhando pra trás meus companheiros com olhos de compaixão, consolo e apreensão e os tricolores de Madureira comemorando o empate. As cores do uniforme do Madureira são bonitas. Finalmente cheguei no juiz, ele me deu a bola e falou “boa sorte, jogador”. Ficamos eu e ela, lembro da textura da pele dela até hoje.

Era uma Penalty dura igual um coco. Eu chutava bem e sabia disso, mas mesmo assim naquele momento eu estava entre as pessoas que mais sentiam medo no mundo. Fui com ela até a marca, dei uma olhada rápida pro goleiro, ele falava algumas merdas pra mim. Nesses momentos de nervosismo, quando os encaro, eu consigo ser irônico, manter a pose apesar do medo. Mandei um sorriso pra ele e voltei a olhar pra bola. A segurava com as duas mãos e lembrava dos truques que o Marcelinho Carioca ensinava pra bater na bola, mas sabia que não as utilizaria.

Cheguei na marca de pênalti, que quase sempre é um espaço altamente danificado. Podia contar o número de pedrinhas de cal que tinha naquele círculo. Coloquei a bola num pedaço mais plano do círculo, mas ela saiu do lugar, tentei realocá-la em outro lugar mas que também saiu do lugar. Mais um pouquinho de carinho e ela finalmente parou, um pouco a esquerda do círculo. Lembro dela grande como uma melancia, mas era porque eu era de fato um pouco menor também. A cabeça ia a mil, pensava na estratégia da cobrança.

Estádio Maracanã
Estádio Maracanã, em 1976. Foto Wikipedia

Qual lado? O goleiro não era grande nem parecia tão bom, mas já tinha garrado dois pênaltis naquele dia. Fui me distanciando da bola, de costas pra ela e pro gol, dei uma olhada pros amigos de time e eles estavam lá me dando força, eu não era capaz de discernir nenhuma palavra que me dirigiam, nem de dentro nem de fora do campo. Imaginei eles correndo na minha direção comemorando caso acertasse. Virei pro gol, ele é imenso, ainda mais pra um goleiro que tem entre catorze e quinze anos no meio dele. É simples, se acertar o canto é gol, mas se não for tão no canto o goleiro pode pegar se acertar o lado. Pros lados também tinha as traves e o infinito, ao contrário do que penso a respeito de desejos, eu queria que aquela bola tivesse um limite, e que este fosse a rede. Imaginei a bola estufando. Imaginei o que eu faria se acertasse. Imaginei todas as possibilidades e lados. Olhei pro chão. Vi minha chuteira preta da Penalty com sua marca arrancada. Nunca gostei de símbolos em chuteiras, arrancava todos.

Olhei pra bola. Pensei, pensei, e pensando escutei o apito do juiz atravessar as minhas ideias. Não tinha mais como fugir dali. Corri pra bola pensando no que fazer. Se dependesse das minhas ideias eu tomava a distância do meio de campo pra ter mais tempo pra pensar. Mas na verdade tomei pouca distância, pra fingir estar seguro. No meio da corrida pensei: foda-se. Vou dar um tiro no meio do gol e vamos ver o que acontece. Senti a bola no pé e já sabia que ela iria no gol, do jeito que eu queria, sem ser rasteira, subindo aos poucos, mas de uma maneira que também não seria isolada nem bateria no travessão. Se o goleiro ficasse parado de pé com as mãos pro alto ele pegava, ou então a bola poderia bater nele antes que ele saísse pros lados.

Levantei a cabeça, a bola já estava chegando no gol e o goleiro saindo pro canto direito fitando a bola entrar no meio do gol. Ela foi lá no fundo, no meio do gol, abraçada pela rede. Não formulei ideias nesse momento, e como um relâmpago, um batedor de carteira ou um gato meus amigos de time já estavam em cima de mim, e minha cabeça no chão. No meio de muitos palavrões de alegria e muita terra, abraços, tapas, e debaixo de uma tonelada que era o time inteiro, eu me acalmei e pensei. Estava feliz, mas na verdade, mais aliviado que feliz. Queria chutar aquela bola o quanto antes pra parar de sentir aquele medo.

Fiquei feliz por aliviar e alegrar meus amigos de time. Esse é um momento que revivo até hoje. Sempre que bato pênalti em pelada ou vejo uma disputa de pênaltis nos jogos da TV lembro dessa minha sensação, e penso no que eles estão sentindo. O pessoal assistindo no momento diz: imagina esse estádio inteiro gritando. Não posso falar porque nunca vivi essa experiência de jogo grande e tudo mais, mas sempre penso o que está passando pela cabeça do jogador. O cara ganha um puta salário e vive do que ele sonha viver desde os 10 anos de idade, mas ainda sim, naquele momento ali, ele sente medo. Naquele domingo, num campo de várzea em Quintino, um Maraca lotado gritava dentro e fora de mim.

* Publicado originalmente em Janela Destravada (2015)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MEIJUEIRO, Carlos. Um Maraca lotado gritava dentro e fora de mim. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 44, 2021.
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