Chegamos ao centenário de Moacyr Barbosa, o goleiro Barbosa, um personagem da história brasileira que ultrapassa a mística e o folclore e, como os Corvos de Odin, deve representar a memória e o pensamento, trata-se de um mito brasileiro real e que fala muito sobre nossa condição histórica. Memória e Pensamento, os Corvos de Odin carregavam nomes que tinham esses significados. Segundo a lenda, voavam pelo mundo e voltavam para Odin para contá-lo o que haviam visto, Odin confessava que temia que algum dia eles não voltassem.
A honra do nome está em todas as coisas, em seus significados e em seu poder. O nome de Barbosa é Moacyr, com Y mesmo, com mística, com o peso de quem é eterno. Barbosa carregou e carrega sobre seu nome o estigma do goleiro que falhou na final da Copa de 50 e “brindou” o país com o mais trágico sentimento de derrota perante o mundo. Discurso amplamente disseminado pelos jornais do país pelos mais célebres escritores e jornalistas.
Barbosa é um espelho para o país, a metáfora do espelho pode ser usada aqui pra que se escreva de várias formas: raivosa, angustiada, irônica, sarcástica, melancólica, agressiva, orgulhosa, feliz, esperançosa e, porque não, vencedora; um pouco do que somos e do que foram com ele. São sentimentos que Barbosa absorveu, mas que apenas os negativos prevaleceram; a Copa de 50 era uma tragédia que unificava um país sempre muito desigual e estratificado, escravista e racista.
Como sabemos, o racismo opera na desqualificação simbólica, Barbosa infelizmente continua a ser o goleiro que supostamente falhou no segundo gol do Uruguai naquela final e nada além disso. Poucos sabem e pouco é dito que Barbosa trouxe ao país os primeiros campeonatos internacionais para o futebol brasileiro, primeiro com o Vasco em 1948, vencendo o primeiro campeonato continental de futebol do Mundo de clubes, que foi disputado no Chile, celebrando o futebol num mundo pós-guerra. E depois com a Seleção brasileira em 1949, ganhando a primeira Copa América do Brasil já na era profissional. A imprensa infelizmente não faz questão de lembrar desses fatores, muito menos lembrar que antes desse título a Seleção amargou 5 vice-campeonatos de Copa América para a Argentina.
A desconstrução simbólica de Barbosa é tão lamentável que poucos sabem que ele se tornou uma lenda no Chile após o título com o Vasco. No Chile, quando um goleiro chutava a bola de sua área e a bola ultrapassava o meio-campo, se passou a chamar de um chute “a la Barbosa”. Pois foi a primeira vez que puderam presenciar tal potência. Um fato novo para o futebol, o chute de Barbosa fez da bola um Condor Andino que voou direto para a sala de troféus de São Januário. Barbosa é o jogador com mais títulos pelo Vasco, encerrou a carreira com 20 títulos oficiais e 17 vezes foi o goleiro menos vazado de um torneio.
O Centenário de Barbosa nesse contexto de pandemia que vivemos tem até um caráter profético. Num momento em que o país precisa de união e coalizão na tragédia que vivencia, a memória de Barbosa cumpre seu centenário. Meu pensamento lembra aqui as palavras do engenheiro Ozires Silva em uma entrevista no programa Roda Viva dizendo que havia perguntado a alguns membros do comitê do Nobel porque o Brasil não tinha ainda nenhum prêmio Nobel enquanto os países vizinhos, todos possuíam em sua maioria. Ozires disse que lhe responderam o seguinte: “vocês brasileiros são destruidores de heróis, de seus próprios heróis”.
Barbosa pode ser um desses heróis. Humilde, inteligente e sempre soube falar de seu calvário com sabedoria. Seu coração já carregava a Cruz vermelha de Cristo, simbolizada na camisa do CRVG; como diria sua filha Tereza Borba Barbosa, uma cruz oposta à do calvário, uma cruz de vitória e pioneira. Barbosa é um desses pássaros de Odin, ou melhor, é um Corvo do Vasco, esquecido como o próprio significado do nome do clube que defendeu, Vasco significa Corvo, mas ninguém sabe ou se lembra porque era justamente um símbolo do Expresso da Vitória, base da seleção de 50, um mascote esquecido e apagado junto com Barbosa. Um corvo que exige Memória e Pensamento. É preciso que saibamos honrá-lo para que possamos verdadeiramente tratar sua memória, a de um Timoneiro, como diria Paulinho da Viola, acima de tudo a de um vencedor, um herói brasileiro… Pioneiro.