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Um recado às esquerdas: é preciso parar de rebaixar o futebol e ocupar as arquibancadas

Um fator que sempre me gerou inquietação foi como as esquerdas, da moderada à radical, trataram o futebol. Seja como ópio do povo, seja o considerando um processo menos importante já que faz parte da cultura de massas. A ideia que o futebol promove a despolitização faz parte do senso comum de diversos espectros da política. Por isso, resolvi falar sobre o tema com o propósito de desmistificar determinados preconceitos, mostrar a capacidade política do futebol e de seus adeptos e promover um debate sobre a importância de ocupar esse espaço.

O estigma de se ver o futebol como forma de alienação vem além do esporte. Essa ideia está conectada à cultura de massas. É importante destacar que esse artigo não pretende se aprofundar nas teorias construídas pela Escola de Frankfurt, mas reconhece a importância do seu legado. Os frankfurtianos foram importantes para os estudos da cultura de massa, apesar de preferirem a terminologia “indústria cultural” para se referirem “ao processo social de transformação da cultura em bem de consumo tendo como plano de fundo uma sociedade imersa no capitalismo avançado”. O objetivo de alguns pensadores dessa corrente era o de diferenciar os estudos da expressão “cultura de massa”, para não atribuir, segundo os autores, “uma falsa impressão de que seria uma cultura que emana do povo” (MOGENDORF, 2012, p. 155).

Essa preocupação dos frankfurtianos em diferenciar cultura de massa como algo que emana do povo e a negação do seu caráter também popular é responsável pelas principais críticas sofridas pela Escola de Frankfurt. Entre elas, estavam acusações de “anacronismo e a posição elitista de seus teóricos, a defesa da cultura erudita e a rejeição da cultura de massa” (MOGENDORF, 2012, p. 157).

Um desses críticos é o espanhol-colombiano Jesús Martin-Barbero. “Para o autor, a Escola de Frankfurt é responsável por dois grandes feitos: levar a problemática cultural para o campo da filosofia, bem como transformá-lo num ponto de partida para os teóricos de esquerda refletirem sobre as contradições sociais” (MOGENDORF, 2012, p. 158). A principal crítica de Barbero aos frankfurtianos, principalmente a Adorno e a Horkheimer, é sobre como a experiência nazista influenciou os dois negativamente em relação à visão dos processos de massificação. Para Barbero, “a voz mais lúcida” da escola foi Walter Benjamim por conseguir entender melhor aspectos do popular na cultura de massa (cf. Ibidem).

Em sua principal obra, Dos meios às mediações, publicada pela primeira vez em 1987, Martin-Barbero traça uma historiografia para entender como o popular se massificou a começar pela literatura com os folhetins, com o teatro, com o jornalismo etc. Uma perspectiva que abre brechas para pensar também como o futebol na Europa tinha um cunho mais popular e, com a industrialização, e as mudanças nos processos produtivos como um todo, acabou por torná-lo um fenômeno de massas.

Ao fazer uma historiografia dos significados e ressignificados de cultura e dos processos histórico-sociais, pode-se compreender o surgimento da chamada cultura de massa. Pensar a indústria cultural, a cultura de massa, a partir da hegemonia, implica uma dupla ruptura: com o positivismo tecnicista, que reduz a comunicação a um problema de meios, e com o etnocentrismo culturalista, que assimila a cultura de massa ao problema da degradação da cultura. Portanto, para descobrir o percurso histórico de transformação social que converteu o popular em massivo, é preciso retornar ao processo de revoluções burguesas e de consolidação definitiva do Estado-Nação, compreendendo as diferenças entre cultura popular e cultura de massa.

Ilustração de jogo de futebol praticado por populares na Crowe Street, em Londres, 1721. Foto: Wikipedia.

As transformações que ocorreram do século XVI ao XIX a partir do período mercantil, o desenvolvimento do capitalismo e a constituição dos Estados modernos alteram diretamente as relações econômicas dentro de determinados territórios.

A centralidade no novo Estado-Nação acontece de duas formas, de acordo com Martín-Barbero (1997): de um lado por meio de uma integração horizontal, de outro, através de uma integração vertical. A primeira destaca a incapacidade do Estado moderno de permitir uma sociedade “polissegmentada”, isto é, que aceita culturas populares regionais e locais. Isso porque as “particularidades regionais, em que se expressam as diferenças culturais, se convertem em obstáculos à unidade nacional que sustenta o poder estatal”. A segunda forma de integração, a vertical, faz com que se comece a hierarquização das relações sociais por meio do Estado, na qual “cada sujeito é desligado da solidariedade grupal e religado à autoridade central. Desligamento que ao romper a sujeição ao grupo ‘liberava’ cada indivíduo, convertendo-o em mão-de-obra livre, isto é, disponível para o mercado de trabalho” (Ibidem).

Segundo Carlos Eduardo Lins da Silva (1980, p. 42), apesar do intenso debate que se faz por causa dos termos, entende-se por cultura de massa um “produto simbólico veiculado pelos meios de difusão massiva (televisão, rádio, cinema, jornais, revistas e livros)”. Já cultura popular se trata de um “produto simbólico, difundido e consumido pelas classes subalternas”.

O debate teórico entre cultura popular e cultura de massa precisa ser feito com cautela devido às controvérsias que os dois termos apresentam em diferentes áreas do conhecimento. Silva (1980, p. 42) se contrapõe à ideia de que a cultura de massas desfigura a cultura popular, assim como confronta a noção purista que se tem da cultura popular. De acordo com o autor, é fundamental que se entenda que ambas sofrem interferência da ideologia dominante e, “tanto uma quanto a outra, são fundamentalmente influenciadas pelas condições econômicas da sociedade e que as relações entre elas devem ser analisadas do ponto de vista dialético, e não mecanicista”.

Inclusive, Silva (1980, p. 43) faz sua crítica à Escola de Frankfurt por seu “pessimismo idealista” e a autores brasileiros que, influenciados pelos frankfurtianos, levantaram teses subestimando a capacidade de reação das classes subalternas, marginalizando a cultura de massas. Por exemplo, o argumento que concebe a cultura de massas como responsável por uma “dominação global dos sistemas de comunicação”, ou mesmo de que existe uma cultura verdadeira, no caso a cultura popular, que apresentaria a real resistência à dominação. 

A análise de Silva consiste em não tratar o tema de forma maniqueísta nem fazer um juízo de valor concebendo a cultura de massas a priori como prejudicial, pertencente aos grupos dominantes, e a cultura popular como algo bom, puro, pertencente ao povo.

Massa designa, no movimento da mudança, o modo como as classes populares vivem as novas condições de existência; tanto no que elas têm de opressão quanto no que as novas relações contêm de demanda e aspirações de democratização social. E de massa será a chamada cultura popular. Isto porque, no momento em que a cultura popular tender a converter-se em cultura de classe, será ela mesma minada por dentro, transformando-se em cultura de massa. […] A cultura de massa não aparece de repente, como uma ruptura que permita seu confronto com a cultura popular. O massivo foi gerado lentamente a partir do popular. Só um enorme estrabismo histórico e um potente etnocentrismo de classe, que se nega a nomear o popular como cultura, pôde ocultar essa relação, a ponto de não enxergar na cultura de massa senão um processo de vulgarização e decadência da cultura culta. (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 168). 

Assim sendo, o futebol como fenômeno da cultura de massas, que sofre influência da dominação capitalista e que atravessa as diferentes frações de classe é percebido como um problema para aqueles que esperam uma consciência de classe dos adeptos do esporte mais popular do mundo. Entretanto, o que essas pessoas não percebem é que o futebol está permeado de disputas políticas e seus momentos de êxtase não elimina essa potência.

Quem reclama do futebol enquanto ópio do povo não conhece a história dessa prática, que tem suas raízes nas classes subalternas e possuiu no passado um caráter subversivo, e que, com as transformações do processo produtivo e com o estabelecimento da nova ordem social, foi inserido no mercado capitalista como mais uma mercadoria em circulação para consumo da massa.

O futebol está marcado por momentos de resistência e luta. Por exemplo, antes da sua modernização e profissionalização, a prática do futebol enfrentou uma série de proibições na Grã-Bretanha, principalmente por se tratar de uma atividade de diversão popular (ALVITO, 2014). Inclusive, os “reis preferiam que seus súditos praticassem arco e flecha, preparando-se para guerra, em vez de baterem uns nos outros em disputa pela pelota” (ALVITO, 2014, p. 24). O futebol se tornou um dos principais problemas para as autoridades não somente por ameaçar a ordem pública em função de favorecer a aglomeração da população, mas especialmente por ser utilizado para organização de protestos.

Há pelo menos dois registros do século XVIII de multidões que se reuniram supostamente para jogar futebol, mas na verdade tinham o objetivo de destruir as cercas que lhe estavam impedindo o acesso a uma terra que durante séculos fora comum[1]. Em 1765, em West Haddon, no condado de Northampton, depois de verem seus protestos formais ignorados pelas autoridades, os camponeses colocaram um anúncio no jornal convocando os “jogadores” a se reunirem nos pubs para em seguida praticarem o futebol. Poucos minutos depois da bola rolar, a multidão tocou fogo nas cercas, causando enorme prejuízo aos proprietários, que queriam expulsá-los daquelas terras. Cinco homens chegaram a ser presos, mas os organizadores do “jogo de futebol” desapareceram. O aumento do preço dos alimentos também gerava revoltas populares, como a ocorrida em Kettering, em 1740, quando quinhentos homens se reuniram com o pretexto de jogar futebol, para em seguida destruir um moinho como forma de protesto (ALVITO, 2014, p. 24-25).

Pôster da “partida da morte”, disputada na cidade de Kiev, em 9 ago. 1942. Foto: Wikipedia.

Em um texto chamado “Ópio dos povos?”, que pode ser encontrado no livro Futebol ao sol e a sombra, Eduardo Galeano (2011, p. 31) faz uma crítica aos intelectuais por seu desprezo e rebaixamento do futebol, por ser uma atividade indigna. Como afirma o uruguaio sobre muitos intelectuais de esquerda que acreditam que o futebol “castra as massas e desvia sua energia revolucionária”. Por isso mesmo, ele busca na história do futebol argentino um episódio que mostra esse contraste.

Segundo Galeano, discursos que surgiram por parte de alguns dirigentes socialistas e anarquistas quando surgiram os primeiros clubes populares foi de que se tratava de uma “maquinação da burguesia destinada a evitar as greves e mascarar as contradições sociais. A difusão do futebol no mundo era o resultado de uma manobra imperialista para manter os povos reduzidos à idade infantil – para sempre” (GALEANO, 2011, p. 31)

Enquanto isso, “o time Argentinos Juniors nasceu chamando-se Clube Mártires de Chicago, em homenagem aos operários enforcados num primeiro de maio, e foi um primeiro de maio o dia escolhido para fundar o clube Chacarita, batizado numa biblioteca anarquista de Buenos Aires” (Idem).

Na Ucrânia ocupada pelos nazistas, o time do Start, formado por ex-jogadores do Dínamo de Kiev disputou o que ficou conhecida como a Partida da morte[2]. Isso porque o jogo foi contra o time dos nazistas e terminou com vitória dos ucranianos que sabiam que um resultado positivo por parte deles traria graves consequências. O desfecho foi terrível. Pouco tempo depois, todos os jogadores foram presos, torturados, alguns foram mandados para campos de concentração ou foram executados. Poucos sobreviveram.

São diversas histórias de luta e resistência dentro do futebol. Podemos destacar a recente manifestação das torcidas organizadas e sua marcha antifascista em diversas cidades do Brasil neste ano[3]. O objetivo era pedir democracia e repudiar o atual presidente Jair Bolsonaro.

Manifestação de torcedores antifascistas na Avenida Paulista, São Paulo, 31 maio 2020. Foto: Pam Santos/Fotos Públicas.

Isso só mostra que existe sim politização por parte dos torcedores e que assistir uma partida, chorar uma derrota ou comemorar um título, impede-o a entender que existe um sistema opressor e uma luta de classes. Pelo contrário, cada dia mais se cresce o número de torcidas antifascistas no Brasil porque se entende que esse é um espaço que as esquerdas (moderada ou radical) abriu mão de ocupar, ao invés disso, preferiu marginalizar o esporte. Mas a grande questão aqui é que esse é um espaço político e ao longo da sua história foi apropriado por tiranos, ditadores, fascistas, não é à toa que Bolsonaro já vestiu dezenas de camisas de times de norte a sul do país.

São muitas lutas dentro do futebol, nenhuma delas é menor do que as outras do dia a dia. Se olharem para além da bola, talvez vocês percebam faixas nas arquibancadas contra homofobia, contra o racismo, contra machismo, contra o fascismo, pelo futebol e pelo poder popular. O futebol também emana do povo e na arquibancada também pode começar a revolução.

Referências

ALVITO, Marcos. A rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. 1ª edição. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014.

GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: L&PM, 2011.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Prefácio de Néstor García Canclini; Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

MOGENDORFF, Janine Regina. A Escola de Frankfurt e seu legado. Verso e Reverso, XXVI, setembro-dezembro, 2012.

SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Cultura de massa e cultura popular: questões para um debate. In: MORAIS, Osvando J. de; MARQUES, José Carlos. Esporte na mídia: diversão, informação e educação. (Orgs.). São Paulo: Intercom, 2012.

Notas

[1] No século XVIII, com o processo de urbanização e industrialização, começou-se um processo de cercamento e expulsão dos camponeses das terras para que estes pudessem se transferir para as cidades e se transformarem em operários.

[2] Futebol e Segunda Guerra Mundial – Dínamo de Kiev e a resistência ao nazismo. Acesso em: 12 out. 2020.

[3] Gaviões e outras torcidas fazem protesto antifascismo na Paulista. Acesso em: 13 out. 2020.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Hevilla Wanderley Fernandes

Formada em comunicação social - jornalismo e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, pela Universidade Federal da Paraíba. Compõe a Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte.

Como citar

FERNANDES, Hevilla Wanderley. Um recado às esquerdas: é preciso parar de rebaixar o futebol e ocupar as arquibancadas. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 33, 2020.
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