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Um torcer alvinegro: o jogo das pedaladas por um corinthiano e uma santista

Pedaladas Robinho
Lance das pedaladas de Robinho na final de 2002. Reprodução: Acervo Santos FC.

Em 2002, o Santos foi campeão brasileiro em cima do Corinthians, mas isso você, corinthiano ou santista, talvez já saiba. O jogo[1] foi, sem dúvidas (ao menos para as partes envolvidas), um dos grandes da história de nosso futebol, com grandes viradas e reviravoltas, além de gols nos acréscimos. E, talvez, disso você também saiba. Sim, aquele clássico alvinegro foi o que ficou marcado como o jogo das pedaladas de Robinho em cima de Rogério, e isso com certeza você já sabe. Mas aqui queremos tratar de algo que talvez você não saiba: como aquele jogo foi um ponto crucial na trajetória torcedora de muita gente, seja pela alegria improvável do triunfo santista, ou do sofrimento inesperado da derrota corinthiana.

Este texto não pensará isso como um mero acontecimento futebolístico, sobretudo porque foi escrito literalmente por uma santista e um corinthiano, ambos que em torno daquele jogo, visto de “arquibancadas” rivais, construíram uma parte fundante de suas trajetórias torcedoras. Aqui abordaremos as peculiaridades daquele jogo na vida – e na memória – de cada um de nós, e como que mesmo quase 20 anos depois continua sendo um dos principais momentos de nossas experiências do torcer.

preto e branco e preto: um domingo em comum

Em uma conversa, daquelas que antes acontecia em mesa de bar, mas que agora pela pandemia é via whatsapp, conversávamos (Marianna e Roberto) sobre nossas memórias torcedoras, que apesar de rivais possuem muitas semelhanças. Ao tocarmos no assunto de nossas primeiras memórias, chegamos em uma resposta em comum: a final alvinegra do campeonato brasileiro de 2002. Para ela, santista, sua primeira grande memória torcedora, de pura alegria; para ele, corinthiano, a primeira grande tristeza da qual se lembra.

Foi aí então que percebemos que o torcer vai crescendo na gente entre sorrisos e lágrimas, entre apertos e alívios, entre histórias que doem só de lembrar e vitórias que choramos ao revisitar. E aquela decisão de domingo à tarde foi um desses momentos que, para a gente, mesmo com diferentes efeitos e narrativas, construiu uma parte fundante da trajetória torcedora de nós dois.

Para Marianna, que ainda era uma criança, aquele despretensioso domingo de férias que parecia só mais um domingo qualquer de churrasco em família, se tornou uma de suas primeiras e mais deliciosas memórias. Enquanto ainda se constituía como torcedora, ela assistiu ao jogo com seu pai santista, sua principal referência de torcer e aquele que a apresentou a todo o universo do futebol e ao amor ao Santos Futebol Clube; e seu avô palmeirense, que dada às circunstâncias do jogo e  às rivalidades em campo, estava torcendo para o Santos, também. 

É claro que a fila de 18 anos de títulos que o Santos enfrentava e a dificuldade em vencer o Corinthians (que era tido como favorito naquela ocasião) são fatores já conhecidos e cruciais para o final inesperado e alegre desta história. Entretanto, esses fatores só são melhor compreendidos por ela hoje em dia. Na época, tudo o que ela entendia era apenas a importância do título, por perceber o nervosismo de seu pai, e pelas lágrimas que correram no rosto dele após o apito final. 

Era a primeira vez que ela via ele chorar, era a primeira vez que ela, e toda uma geração de torcedores, gritavam “é campeão!” 

Foi preciso 18 longos anos para que toda a redenção vinda das arquibancadas tornasse a festa ainda mais bonita, para que a virada para 3 a 2, aos 46 minutos do segundo tempo, trouxesse ainda mais êxtase à comemoração santista. E aquele gol do Léo tornou-se certamente um dos mais importantes da vida de boa parte de uma geração, assim também para Marianna. 

Torcedores e amantes da bola em geral vão dizer que a graça principal do jogo está na imprevisibilidade, que o imponderável da partida pode fazer qualquer história sem graça ter um baita desfecho. É claro que vieram outros títulos, jogos menos sofridos, gols mais bonitos, mas na visão da Marianna, nenhum deles, talvez, tão emocionantes quanto aquele de 2002.

Santos Mano Brown
Torcida do Santos na final: destaque para Mano Brown com rádio no ouvido. Reprodução: Twitter – Santos FC

as dores e as delícias do torcer

Aquele mesmo gol do Léo, que fez Marianna aprender nas lágrimas de seu pai o que era a alegria de torcer, também fez com que Roberto sentisse o chão se abrir sob seus pés que recém estreavam a trilha torcedora. Aquele domingo, que também começou em churrasco na casa do Roberto, terminou como um dos piores dias de sua infância. E ele, mesmo sem entender tudo isso na época, já sabia, através do sofrimento que via em seu pai e em seu tio, ambos corinthianos que o ensinaram o caminho que devia andar, que aquele momento era de tristeza e dor.

Corinthians torcedores
Torcedores do Corinthians lamentando. Reprodução: Fábio Soares (@fcmpo)

Por muitos anos Roberto viveu sem revisitar aquele jogo em suas memórias, ou ao menos tentou. Sem muito sucesso, é verdade. Visto que era impossível jogar bola na rua com seus amigos e não ver algumas pedaladas a la Robinho em cada jogada de ataque. Mas fato é que todo o resto daquele jogo foi se apagando de sua memória, só sendo revisitado agora, para a escrita deste texto. E na vida somos de certa forma assim com boa parte de nossas dores, preferimos esquecer e evitar ao máximo lembrar. Com o torcer esperamos que não seja diferente. Mas é. 

O torcer segue seu rumo tabelando bem mais com a dor e o sofrimento do que com as delícias e alegrias (CALDAS, 2021). E assim o é para todos nós. Tentamos com frequência adotar a estratégia do Roberto, de não falar mais e tentar esquecer, mas não demora muito e já somos tomados por novas tristezas e sofreres. Pois se no torcer há uma constante, essa constante não é a alegria, mas a dor. Por que então seguimos com esse jogo injusto que nos entrega tão pouco?

Talvez pela sensação de alívio que paira entre uma coisa e outra. Pois não há sofrimento que não esbarre em pequenas alegrias, seja numa vitória sobre um rival que está em melhor fase, ou numa luta para escapar do rebaixamento. Assim também não há alegria permanente no futebol, tampouco no torcer. Talvez, por isso, Pelé tenha dito, logo após a conquista do topo do mundo em seu segundo título em copas, que “o grande presente que você ganha na vitória não é a joia, é o alívio mesmo”.

Também porque vez ou outra temos domingos como o de Marianna. E mesmo que eles demorem 18 ou 27 anos de fila, quando eles chegam parece que cada segundo de sofrimento valeu a pena. Torcer é ser constantemente torcido numa história em que não se sabe o final, mas que não se consegue parar de viver.

 

Notas

[1] Aqui nos referimos ao jogo de 15 de dezembro de 2002, a última final do campeonato brasileiro antes da era dos pontos corridos, disputado no Estádio do Morumbi, e vencido pelo Santos por 3 a 2.

 

Referências

CALDAS, Phelipe. A última palavra é sempre do povo: a topofilia começa pelo nome. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 25, 2021. 


Sobre o LELuS

Aqui é o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade. Mas pode nos chamar só de LELuS mesmo. Neste espaço, vamos refletir sobre torcidas, corporalidades, danças, performances, esportes. Sobre múltiplas formas de se torSER, porque olhar é também jogar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marianna Andrade

Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tem experiência na área da Antropologia e estuda as torcidas organizadas e as relações de gênero no futebol.  Compõe o Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da EFLCH (GEFE) e o LELuS (Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e Sociabilidade). Contato: [email protected]

roberto souza junior

Doutorando e mestre em Antropologia Social no PPGAS da UFSCar, onde também é bacharel em Ciências Sociais. Pesquisador associado ao LELuS (Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade). Trabalha, a partir de etnografias urbanas e fotografias, com torcidas organizadas de futebol que são também escolas de samba do carnaval paulistano. E-mail: [email protected]

Como citar

ANDRADE, Marianna C. Barcelos de; SOUZA JUNIOR, Roberto A. P.. Um torcer alvinegro: o jogo das pedaladas por um corinthiano e uma santista. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 13, 2021.
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