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Uma biografia nas sendas da ficção – Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro

“Tudo isto deve ser considerado como dito

                                                                           por uma personagem de romance.”

                                                                                                        Roland Barthes

 

Em meados do século XIX, Charles Augustin Sainte-Beuve rompeu com as “hagiografias” de sua época que retratavam a vida do biografado com veneração. O crítico francês não negava a importância do indivíduo, mas criticava a imprecisão dos fatos e a falta de “realidade” e de “exatidão” nas obras. A partir dessa crítica nasce o “método de Sainte-Beuve”, que consistia em explorar ao máximo a vida e obra do “grande homem”, retratando com fidelidade os fatos vividos. Sainte-Beuve julgava ser necessário trazer à luz todos os momentos da vida do biografado, mesmo seus afazeres domésticos. Seu método foi questionado, pois, evidentemente, não podemos recompor a intensidade e a complexidade da vida.

Por esse tipo de abordagem, nota-se que a biografia é um gênero conflituoso, pois se encontra na fronteira da pretensa representação do real vivido e da reconstrução fictícia de um passado perdido. Segundo o historiador e filósofo francês François Dosse, “[g]ênero híbrido, a biografia se situa em tensão constante entre a vontade de reproduzir um vivido real do passado, segundo as regras da mimesis, e o polo imaginativo do biógrafo que deve refazer um universo perdido segundo sua intuição e talento criados” (DOSSE, 2009, p. 55). A ideia seria, pois, a de um biógrafo romancista, que não se ocupa de fatos infrutuosos, distinguindo e valorizando os fatos significativos, combinando bem o real e o imaginário em suas produções.

Ruy Castro é esse biógrafo romancista que, em Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, revela seu gênio criador e imaginativo. Sua obra conta a vida de Manuel Francisco dos Santos, que se tornaria um mito do futebol brasileiro. Garrincha era “esse herói de perna torta, quase um aleijado, esse herói inviável”, como certa vez o definiu o crítico e cineasta Oswaldo Caldeira (2008, p. 43). No primeiro capítulo da obra, Ruy Castro apresenta as origens étnicas e as ramificações da família de Garrincha:

Não foi preciso nem laçá-los – e olhe que estávamos por volta de 1985. Bastou um pouco de mímica prometendo pinga, facas, espelhos. O pequeno grupo de índios saiu de seu esconderijo […] Trezentos anos de história do Brasil já lhes tinham ensinado que os brancos eram velhacos, mentirosos e mais traiçoeiros que cobras. Mas a certas tentações era impossível resistir. (CASTRO, 1995, p. 7).

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O autor apoia-se, portanto, na memória coletiva brasileira para reconstituir as origens de Garrincha. Para a construção da memória individual, nessa passagem do livro, Ruy Castro se vale da memória coletiva no intuito de confirmar e precisar algumas de suas lembranças, confundindo-se às vezes com ela. Como, aliás, ressalta o sociólogo francês Maurice Halbwachs,

[s]e essas memórias se penetram frequentemente; em particular se a memória individual pode, para confirmar algumas de suas lembranças, para precisá-las, e mesmo para cobrir algumas de suas lacunas, apoiar-se sobre a memória coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente com ela; nem por isso deixa de seguir seu próprio caminho, e todo esse aporte exterior é assimilado e incorporado progressivamente a sua substância. A memória coletiva, por outro, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal (HALBWACHS, 1990, p. 53-54).

A partir de tal procedimento, o biógrafo preenche as lacunas deixadas pelo tempo perdido: “[e]ra o século XIX e foi isso o que aconteceu aos bisavós de Garrincha em Pernambuco: expulsos de seu aldeamento fulniô, eles saíram para o mundo e, já sem a picardia de outrora, foram apanhados e levados em coleiras para o mundo branco” (CASTRO, 1995, p. 9).

Acresce também que a instância narrativa de Estrela solitária revela-se em sua onisciência e apresenta casos pitorescos da vida do biografado, emprestando à obra um tom romanesco: “[o] campinho onde jogava era a barreira perto da rua do Chiqueiro […] Conduzir a bola descalço, sem torcer o pé num daqueles buracos, já seria uma façanha” (CASTRO, 1995, p. 38).

O futebol para Garrincha era sinônimo de lazer, que, na narrativa de Ruy Castro, configurava-se, ao mesmo tempo, como um índice de drama social:

Eram multidões de garotos para treinar. Um a um, eram chamados a entrar em campo, davam um toque na bola e eram substituídos antes de ouvir a frase que liquidava suas esperanças:

“Olha, não precisa voltar, viu?”

[…] O sonho de todos os garotos bons de bola do Brasil ainda era jogar no time de Ademir, Ely, Danilo, Jorge, Ipojucan, Barbosa, Augusto. E, na manhã em que Garrincha apareceu no estádio de São Januário, era como se todos aqueles garotos estivessem lá. (CASTRO, 1995, p. 40-41; grifo no original)

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Garrincha retratado no trabalho do artista Paulo Consentino no muro que cerca o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Foto: Leonardo Lourenço – Portal da Copa.

A vida de Garrincha não foi “um mar de flores”, Ruy Castro traz à luz momentos de alegria, glória, tristeza, vício e desespero. Uma vida dramática que encontrou no futebol certo alívio para alma. Mas o alcoolismo foi mais forte que o futebol e que “Mané”, e o consumiu aos poucos: “Em julho de 1968, ao olhar-se ao espelho, Garrincha se via como peixes deviam vê-lo: uma ampliação grotesca e deformada. Estava com doze quilos a mais, flácido, inchado, com bolsas empapuçadas sob o branco amarelado dos olhos” (CASTRO, 1995, p. 374).

Podemos observar que Ruy Castro buscou nos documentos, mapas e fotos do passado um “elo” com o real vivido. Ele apresentou dados e testemunhas para compor o romance da vida do herói brasileiro que, diante de tanta luta, foi vencido. Sua biografia é constituída de memórias que suplementam os fragmentos e as lacunas do vivido com imaginação e ficção.

Referências

CALDEIRA, Oswaldo. Futebol, tema de filmes: ‘Garrincha, alegria do povo’ e ‘Canal 100’. In: MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria (org.). O esporte vai ao cinema. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Nacional, 2005, p. 39-51.

CASTRO, Ruy. Estela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

DOSSE, François. O desfio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Vértice, 1990.

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Erilma Desireé

Graduanda do curso de Letras da UFMG bolsista de Iniciação Científica PIBIC. Recentemente, desenvolveu pesquisa sobre os hinos de clubes de futebol em Minas Gerais. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre " Memória e Futebol no Brasil - Escritas da vida de ex-jogadores brasileiros."

Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CONCEIçãO, Erilma Desiree da Silva; CORNELSEN, Elcio Loureiro. Uma biografia nas sendas da ficção – Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro. Ludopédio, São Paulo, v. 74, n. 5, 2015.
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