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Uma inusitada visita ao torneio de futebol de botão

Wagner Xavier de Camargo 26 de fevereiro de 2017
Folder oficial do 8. torneio de Futebol de Botão, ocorrido no Museu do Futebol
Folder oficial do 8. torneio de Futebol de Botão, ocorrido no Museu do Futebol

No domingo 19 de fevereiro, em um dia ensolarado e quente, tive uma experiência diferente. Acordei cedo, arrumei minha mochila com água, bolachas, boné, protetor solar, dois tickets do metrô de São Paulo e uma câmera antiga, porém ainda em plena forma. O destino eleito seria um torneio de “futebol de botão”, algo das antigas, que me recorria à infância. O local do evento seria no famoso Estádio do Pacaembu, nas instalações do Museu do Futebol, na capital paulista.

Vindo de Campinas, demorei para chegar e no caminho fui revivendo histórias, revisitando minhas memórias relativas ao jogo. A ideia de ver uma competição (que até então eu nem sabia da existência) me deixava ansioso. Lembrei-me de meus botões brancos e pretos, com insígnias estampadas dos jogadores do Corinthians lá dos anos 1980, da era de ouro de Sócrates, presenteados por meu falecido pai, um então corinthiano roxo. Não sei bem onde foi parar tal jogo, mas me recordo que, de tanto eu e meu irmão jogarmos, as peças e mesmo as mini-traves estavam já bem desgastadas.

Um evento assim como esse, apoiado pela Secretaria de Cultura do município de São Paulo e organizado pelo Museu do Futebol, não apenas reedita questões relativas à memória de um jogo inventado há quase 100 anos, mas acalenta novas gerações a tomarem contato com a prática, não a deixando morrer. Consta na história dos sabidos, que o futebol de botão foi criado nos anos 1930 por Geraldo Cardoso Décourt, também artista e pintor, oriundo de Campinas, minha quase-cidade natal.

Na estação Ana Rosa, metrô linha azul, enquanto faço a baldeação para a linha verde, tenho um déjà-vu: lembrei-me de uma historieta do professor Denisart, meu antigo mestre de pintura. Contou-me, certa vez, que o tal Décourt jogava com botões de plástico, provavelmente capturados das caixinhas de reparos da mãe e da avó, costureiras de ocasião. Denisart não era propriamente um esportista, muito menos fanático por futebol. Mas era, sim, um inadvertido apreciador de pormenores, curiosidades, histórias não contadas. Dele, inclusive, veio a dica para encher de chumbinhos nossos goleiros (caixas de fósforos, naquela época). Explicou-me a tática: “quanto mais chumbos dentro da caixinha, mais defensivos eles ficam”. Os chumbinhos deixavam nossos ‘goleirinhos’ mais fortes, mais estáveis e, portanto, mais imbatíveis. Os detalhes dos “chumbinhos” encontram respaldo na realidade, pois até no livro de regras do futebol de mesa de Fred Mello eles aparecem na sessão sobre a “descrição e colocação dos arqueiros e dos botões”.

Livro "Jogo de Botão", de Fred Mello
Livro “Jogo de Botão”, de Fred Mello

Depois de um longo processo de popularização no Brasil, o chamado “jogo de botão” ganhou status de “esporte de salão” quando fora reconhecido pela Confederação Brasileira de Futebol de Mesa (CBFM). Explicou-me seu Joaquim, ex-jogador de futebol de botão, que assistia aos jogos do neto, lá na ocasião. Disse-me, circunspecto: “há uma tensão aí entre ser ‘de botão’ e ser ‘de mesa’, quase como uma crise que se dá entre ser criança e ser adulto”. Foi daí que percebi o quanto era importante, num evento como esse, manter a denominação “futebol de botão”, pois assim a competitividade coabita o lugar da ludicidade, valor tão importante para não deixar essa prática cultural morrer.

O salão onde se realizavam as disputas era um anexo do Museu, ao lado da portaria, num espaço climatizado. A manhã iniciara com a categoria ‘infanto-juvenil’ e, logo após o almoço e ao longo da tarde, jogariam as categorias ‘adulto’ e ‘federado’. Seis mesas-campo sobre cavaletes de madeira, distribuídas pelo espaço, cercada de crianças, pais e mães, árbitros da Federação Paulista de Futebol de Mesa (FPFM), organizadores e curiosos em geral. Assim se compunha o cenário do 8º torneio de Futebol de Botão, um evento ao mesmo tempo informativo e divertido.

Salão anexo ao Museu do Futebol, onde foram realizados as contendas
Salão anexo ao Museu do Futebol, onde foram realizados as contendas. Foto: Wagner Xavier de Camargo.

Se a todo instante flashbacks me vinham à memória acerca de meus tempos de infância, das disputas por campo/bola via par-ou-ímpar, da distribuição dos jogadores, das discussões sobre lances e mesmo dos posicionamentos de lateral ou de pênalti que nós, moleques, tínhamos dúvida, algo distinto notei ali naquele domingo: a tecnologia também chegara ao futebol de botão! A qualidade da mesa (agora de madeira tipo MDF e não mais feltro), os próprios botões de um acrílico de primeira linha (e se diferenciando por tamanhos e funções em campo), as bolinhas detalhadamente pintadas como se fossem miniaturas das bolas oficiais de futebol de campo e mesmo os goleiros (não mais caixas de fósforo e sim bloquinhos pesados de acrílico, decorados com o escudo dos times) deixaram-me fascinado! Mais admirado fiquei com os procedimentos de “polimento” das peças com flanelas e panos macios, que aqueles atletas-mirins repetiam a cada novo recomeço de jogo – quase sempre amparados e ajudados pelos seus pais.

Jogador-mirim polindo triplamente suas peças
Jogador-mirim polindo triplamente suas peças. Foto: Wagner Xavier de Camargo.

O torneio se desenvolvia segundo as regras oficiais do futebol de mesa, porém fora dos tempos regulamentares prescritos. Eram jogados 7 minutos corridos a cada tempo, tendo sido feita uma competição de todos contra todos na categoria dos pequenos.

Dos presentes, as únicas mulheres eram as mães dos meninos jogadores. Havia uma ausência vergonhosa de meninas jogadoras. Isso pode ser indicativo de que ainda mantemos estereótipos de gênero sobre jogos e modalidades esportivas e que direcionamos nossos filhos e nossas filhas para uns e não para outros jogos/esportes. Não haver meninas praticando o futebol de botão num torneio de divulgação como esse compromete, esportivamente, o desenvolvimento da modalidade em si e, politicamente, o gerenciamento e representatividade de gênero do “futebol de mesa” junto aos órgãos federativos.

Não foi a primeira vez que o torneio se desenrolou nas instalações do Museu e, segundo seu pessoal interno, provavelmente não será a última. E é extremamente importante que tal evento esteja atrelado ao Museu do Futebol: mais do que apenas a celebração, o que está em jogo é a preservação e perpetuação da memória coletiva sobre uma das expressões relativas ao universo cultural do futebol que, de modo algum, pode ser esquecida.

Troféus e medalhas das três categorias premiadas, além de brindes extras
Troféus e medalhas das três categorias premiadas, além de brindes extras. Foto: Wagner Xavier de Camargo.

De uma forma ou de outra, o irreverente ‘futebol de botão’ ou o institucionalizado ‘futebol de mesa’ faz(em) parte de nossas infâncias, memórias e histórias e, por meio de ações como essa coordenada pelo Museu, município, federação, e público continuará inspirando gerações futuras.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Uma inusitada visita ao torneio de futebol de botão. Ludopédio, São Paulo, v. 92, n. 23, 2017.
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