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Uma leitura do futebol moderno a partir de José Lins do Rego

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José Lins do Rego. Caricatura: Bapistão Caricaturas.

A proposta deste artigo é fazer uma análise do futebol moderno a partir de José Lins do Rego. Antes de iniciarmos essa proposta, é preciso esclarecer algumas questões importantes.

A minha motivação para fazer essa relação foi fruto das discussões ocorridas junto ao GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol) sobre dois livros que discutem o futebol e a literatura. A base da minha argumentação centra-se nos livros da Fátima Antunes e de Bernardo Buarque de Hollanda. Ambos tiveram contato com a obra de José Lins do Rego, carinhosamente chamado de Zé Lins.

Sei que é sempre fundamental recorrer à fonte original para que se possa fazer a sua própria interpretação, isto é, fazer uma interpretação de primeira mão (GEERTZ, 1989). Se a minha leitura pode ser enquadrada como sendo de segunda ou terceira mão, fruto das primeiras análises e impressões manifestadas pelos autores que interpretaram a obra de Zé Lins. Esse artigo pretende avançar em alguns pontos a partir de relações com o futebol moderno, algo que os autores lidos não pensaram em fazer, mas que foram estimuladas a partir deles.

Zé Lins não viveu o bastante para que ele mesmo pudesse fazer suas análises sobre o futebol moderno, para se ter uma idéia, não chegou a conhecer o Brasil campeão do mundo em 1958 porque faleceu um ano antes. Mesmo sem saber, suas crônicas esportivas falam muito sobre o futebol moderno. Para compreender sua relação com o futebol atual apresentarei alguns trechos de suas crônicas para visualizarmos que o futebol atual mantém semelhanças com o futebol de antigamente. O que mudou, foram apenas, os nomes de certos conflitos, mas que os dilemas ainda estão presentes, só que agora com outra nomenclatura.

No Sul-Americano de Lima disputado em 1953, Zé Lins apresenta um conflito que duraria por muito tempo quando o assunto era a seleção brasileira: ela deveria ser formada por cariocas ou por paulistas? Quem possuía o melhor futebol?

Zezé Moreira, que dirigira a seleção brasileira no Pan-Americano realizado no ano anterior, decidira afastar-se do cargo de técnico, cansado das críticas perversas da imprensa. Mas convenceu a CBD a colocar em seu lugar o irmão Aymoré que tinha sido o técnico do São Paulo, campeão do torneio brasileiro entre seleções estaduais de 1952. Tudo parecia correr bem, até que a equipe se dividiu entre cariocas e paulistas. Era a antiga rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo colocando em risco o sucesso da seleção brasileira. A imprensa de São Paulo defendia a escalação de jogadores paulistas e os apoiava na disputa contra os cariocas (ANTUNES, 2004, p. 101-102).

Essas discussões sobre o privilégio ora de cariocas ora de paulistas foi o mote de calorosos debates. Se durante, principalmente, as décadas de 50, 60 e 70 as conversas giravam em torno de qual time teria mais jogadores na seleção brasileira, atualmente a questão é saber se algum time brasileiro terá algum jogador convocado para a seleção brasileira. Onde estaria a relação de Zé Lins com o futebol moderno? Basta trocar cariocas x paulistas por brasileiros-estrangeiros x brasileiros. Muitas críticas foram feitas aos últimos (e ao atual) treinadores da seleção por privilegiarem, principalmente, os jogadores que atuam no exterior. Os atletas que atuam no país já não fariam mais parte das opções para integrar a seleção brasileira. Com base nisso, muitos críticos, geralmente, da imprensa questionam a falta de identidade quando o Brasil está em campo. Os jogadores que atuam no exterior perderiam e, por isso, não conseguiriam jogar de acordo com o estilo, aqui conhecido como futebol-arte?

Uma outra prática bastante comum dos times brasileiros, nas décadas já mencionadas, era a realização de excursões para o exterior. Zé Lins questionava essa prática.

Em maio de 1957, Zé Lins criticava as constantes excursões de clubes brasileiros ao exterior, promovidas por empresários que haviam se especializado nessa atividade. O que ele mesmo incentivara e valorizara tempos antes, como instrumento de representação diplomática ou simplesmente como um produto de exportação, tornara-se, segundo seu próprio julgamento, um mal para o futebol brasileiro. Os clubes expunham seus jogadores a viagens extremamente longas, a mudanças alimentares e a um cansaço físico acentuado, em razão das disputas de muitas partidas em um curto espaço de tempo (ANTUNES, 2004, p. 114).

Se os clubes brasileiros perderam esse mercado, times como o Real Madrid ou o Barcelona (podemos pensar em inúmeros outros clubes europeus) conquistaram a Ásia e, consequentemente, um grande mercado para vender seus produtos e a sua grife. Ao fazerem a pré-temporada para arrecadar muito dinheiro, os clubes expõem seus atletas ao que Zé Lins considerava um mal, isto é, viagens desgastantes, mudanças alimentares e cansaço provocado pelo grande número de jogos em pouco tempo só acabavam por atrapalhar mais do que ajudar. Essa lógica do desgaste dos jogadores parece que foi incorporada pela Confederação Brasileira de Futebol que agenda os amistosos da seleção para o exterior. As atuações da seleção no Brasil tem se resumido aos jogos das eliminatórias.

Nesse futebol moderno os embates continuam, porém, assumiram outra roupagem. Sai de cena a discussão regional entre cariocas e paulista para entrar uma discussão mais global (seria culpa da globalização?), brasileiros-estrangeiros ou brasileiros “legítimos” devem ser os responsáveis por representar o verdadeiro estilo de jogo do Brasil? As excursões dos times brasileiros praticamente deixaram de existir, mas a seleção brasileira tornou-se uma grande marca que se apresenta mais no exterior do que no próprio país. A desculpa centra-se no fato de que os jogadores convocados atuam no exterior e, por isso, as viagens se tornam menos desgastantes, já que a maioria atua na Europa. Portanto, pode-se perceber que as indagações de Zé Lins ainda continuam atuais, mesmo sendo escritas há muito tempo.

Bibliografia
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. Uma leitura do futebol moderno a partir de José Lins do Rego. Ludopédio, São Paulo, v. 13, n. 5, 2010.
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