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“Vacina pouca, meu braço primeiro”: Esporte, vida e ética no novo normal

A certa altura no ano passado, no tempo em que ainda assistíamos lives de cantores e cantoras, e chocávamo-nos com algumas dezenas de mortes por dia, ganhou força entre os otimistas a ideia de que a pandemia teria o seu “lado bom”. As dificuldades impostas pelo Coronavírus, as perdas, o confinamento, a impossibilidade de contato social mais próximo, tudo isso seria uma oportunidade de reflexão sobre nossa vida em sociedade. O vírus faria de nós pessoas melhores.

Pois bem, eis que agora a Conmebol anuncia a intenção de vacinar todos os envolvidos diretamente nas competições organizadas por ela. Jogadores, arbitragem e equipes técnicas seriam imunizados com um lote de 50 mil doses, fornecido por um laboratório farmacêutico em uma jogada de marketing.

Tirinha de fura fila

Se olharmos estritamente pelo viés esportivo, isso já seria problemático. No Campeonato Brasileiro do ano passado, por exemplo, todas as equipes sofreram, em maior ou menor número, com baixas inesperadas, por infecção pelo Coronavírus. Segundo levantamento do Globoesporte.com, só na Série A foram 320 casos, entre atletas e técnicos. Nesse ano, a vacinação, via Conmebol, pode ser uma vantagem indevida para alguns clubes, que estarão mais protegidos, enquanto seus concorrentes seguirão sofrendo com desfalques. Já nas séries B, C e D, assim como nas outras competições de menor visibilidade, a tendência é que o princípio da igualdade prevaleça: todos estarão expostos e seguirão viajando, jogando e se infectando, sem que a mídia, a Conmebol ou a CBF se importe com isso.

Mas há nessa iniciativa uma questão ética mais ampla, que extrapola o campo esportivo, e que não deve ser secundarizada. É justo que a elite do futebol nacional seja imunizada antes de outros grupos, como professoras, motoristas de ônibus, garis, e carteiros?

Vale dizer que a Conmebol não é a única que buscar garantir pra si esse privilégio. O dito popular “Farinha pouca, meu pirão primeiro” tem sido um mantra de muitos. Em meio à incompetência e má vontade do governo brasileiro com a imunização da população, empresários tem pressionado o congresso para autorizar a compra de vacinas pelas empresas. Na prática, a medida busca oficializar o “fura fila”, substituindo a racionalidade científica do Plano Nacional de Imunização pela lógica do mercado. Passariam a ser “prioritários” os funcionários e funcionárias que trabalham para gerar o lucro dos grandes empresários, em detrimento de uma massa de trabalhadores (as) autônomos (as), desempregados (as), aposentados (as), terceirizados (as), ou empregados (as) em funções pouco lucrativas, que seguirão esperando. Fica cada vez mais evidente que a saúde do sujeito vale, portanto, de acordo com a sua importância para o grande capital.

A intenção do governo de vacinar prioritariamente a delegação brasileira que participará dos Jogos Olímpicos de Tóquio também chama a atenção. As autoridades esportivas brasileiras, sempre tão zelosas em defender a suposta “neutralidade política” do esporte quando isso significa cercear críticas ao poder vigente (basta lembrarmo-nos do caso Carol Solberg), aparentemente não vêm problema algum em se associar ao Ministério da Defesa e ao governo de ocasião para articular um tratamento especial para si.

O que esperar do “novo normal”?

O tratamento diferenciado para atletas não é uma novidade. Em 1994, após a Copa do Mundo dos EUA, a delegação brasileira chegou ao Aeroporto do Galeão trazendo a taça, medalhas e mais de 10 toneladas em muambas compradas em Miami. Quando a Receita Federal quis inspecionar a carga, Ricardo Teixeira (ex-presidente da CBF) não permitiu, e utilizou seu prestígio em Brasília para que toda a carga fosse liberada sem prestar conta de nada. Agora, porém, tais práticas vem sendo oficializadas, sem nenhum pudor. 

Sendo uma produção histórico-cultural, o esporte é marcado pelos valores da sociedade em que está inserido. O surgimento dessa prática, no século XIX, expressava alguns valores que, pelo menos no plano retórico, eram caros ao capitalismo em sua fase concorrencial. A igualdade entre os sujeitos, ainda que fosse meramente formal ou aparente, era a base da livre e justa concorrência. O capitalismo do século XXI, entretanto, dá cada vez menos importância para essas formalidades e aparências. O mundo pós-pandemia será ainda mais injusto e desigual, e o esporte não fugirá a essa regra.

Tempos de crise costumam agudizar contradições e tendências sociais, tornando-as mais evidentes. A crise do Coronavírus não foge a essa regra. A pandemia foi miséria e dor para a maioria da população mundial, mas também lucros sem precedentes para uns poucos. Enquanto milhões perderam suas vidas ou seus empregos pelo mundo, a fortunas dos 500 mais ricos cresceu 31% no último ano. No Brasil, a mesma dinâmica fez com “ganhássemos” 10 novos bilionários no mesmo período.

Da mesma forma, no mundo dos esportes, essa desigualdade também se faz sentir. A tentativa recente de criação da superliga europeia de clubes, embora temporariamente fracassada, indica uma triste tendência. Já não basta receberem cotas de TV e patrocínios muito maiores que os demais, alguns clubes se julgam grandes demais e importantes demais para seguir as regras básicas do jogo. Da mesma forma, peças chave em uma indústria bilionária, os atletas se tornaram valiosos demais para serem tratados como “meros mortais”. Já não somos todos iguais. Não demora, teremos leis que separarão definitivamente os “especiais”, de sangue azul, de todo o resto. O “novo normal” se parece incrivelmente ao Antigo Regime…

Luis XIV ou "Rei sol"
Luis XIV ou “Rei sol” do Antigo Regime. Fonte: Wikipédia
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Renato Saldanha

Professor da UFPE (CAV/UFPE), formando em Educação Física pela UFV, Doutor em Estudos do Lazer pela UFMG.Membro do GeFUT/UFMG (Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas) e coordenador do GEFFuT-PE (Grupo de Estudos sobre Festas, Futebol e Torcidas - Pernambuco)

Verônica Toledo Ferreira de Carvalho

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer (EEFFTO/UFMG).Membra do grupo de pesquisa FuLiA/UFMG e do GEFFUT-PE.

Como citar

SALDANHA, Renato Machado; CARVALHO, Verônica Toledo Ferreira de. “Vacina pouca, meu braço primeiro”: Esporte, vida e ética no novo normal. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 9, 2021.
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