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“Vai ser vagabundo”

José Paulo Florenzano 4 de abril de 2019

Em março de 1972, decepcionados com a campanha do time no Campeonato Pernambucano, os dirigentes do Náutico decidiram demitir o treinador Nelson Lucena, substituindo-o por Francisco de Souza Ferreira. Ao contrário do jovem e inexperiente antecessor, o Gradim, como ele era conhecido o novo treinador, já havia percorrido uma longa estrada no futebol. Calejado pelas experiências acumuladas no transcorrer de uma carreira iniciada nos anos vinte do século passado, no Rio de Janeiro, Gradim pedia “paciência” à torcida do alvirrubro, uma vez que tinha nas mãos uma equipe composta basicamente por jovens valores, salpicada com alguns atletas mais rodados no futebol nordestino, além de uma incógnita chamada Allan Cole, cujo futebol, segundo a imprensa, suscitava “as opiniões mais contraditórias”[1].

Enquanto para alguns ele não passava de um “bonde” irrecuperável, para outros ele se revelava um “craque” incompreendido[2]. Nesse ínterim, começaram a circular intensos boatos pela cidade do Recife sobre o iminente retorno do atleta ao Caribe, informação, contudo, logo desmentida pelo próprio Allan Cole, o qual, aliás, fazia questão de declarar o quanto se sentia “satisfeito no Náutico”, acrescentando que “não havia razão para deixar” o clube[3]. A única ressalva dizia respeito ao “carro que lhe foi oferecido para firmar novo contrato”[4]. Ele ainda o aguardava.

Em suma, os desafios que o novo treinador tinha pela frente não eram poucos. O “Velho Mestre” precisava o quanto antes resgatar a autoestima de uma equipe jovem e inexperiente; contornar o problema dos salários atrasados e, por último, mas não menos importante, “entender o jamaicano” e fazê-lo jogar. “Que Deus esteja do nosso lado, ” rogava Gradim antes da estreia contra o time do Central, de Caruaru, na rodada de abertura do terceiro turno do campeonato estadual[5].

Disputada na “Capital do Agreste”, no domingo, 2 de abril, a partida reuniria todos os ingredientes de um bom espetáculo de futebol, consoante a avaliação do jornalista Adonias de Moura. Do primeiro ao último minuto houve “técnica, tática, velocidade de jogo, ações individuais, entusiasmo, virilidade e até alguns poucos lances de violência”[6]. Esta visão de jogo se revelava tributária de um imaginário social mais vasto, cuja existência ajuda-nos a compreender melhor o lugar privilegiado que a exaltação da virilidade desfrutava dentro e fora das quatro linhas. Para mostrá-lo, detenhamo-nos por um instante na Capital do Agreste.

À época da partida de estreia do treinador Gradim, a cidade de Caruaru se encontrava convulsionada por um padre católico determinado a organizar ali o I Congresso de Homossexuais do Nordeste, evento logo classificado pelo Diário de Pernambuco como a “reunião de Bonecas”. Vinculado à autodenominada Igreja Católica Ortodoxa de Roma, o padre Henrique Monteiro incursionava também pela região do “baixo meretrício” com o objetivo de conduzir as “ovelhas desgarradas” para o “Reino dos Céus”[7]. Visto pelos seguidores como uma espécie de “novo Messias”, mas encarado pelas autoridades como simples charlatão, a atuação heterodoxa do religioso polarizava as opiniões[8]. Para um vereador da Câmara de Caruaru, o aludido congresso deveria ser realizado uma vez que tinha por escopo “conscientizar os viciados sexuais”[9]. Já para o encarregado da seção de Costumes da Polícia do Recife a iniciativa se afigurava intolerável:

Enquanto estiver à frente da Delegacia de Costumes não permitirei que anormais tentem inverter nossos costumes, degenerar nossas tradições e manchar o nome do nordestino, cabra macho e exemplo de masculinidade.[10]

A defesa intransigente da virilidade do nordestino permeava o discurso do delegado de polícia tanto quanto o do cronista de futebol. Ela mobilizava até mesmo o comediante popular, Antonio Silva, o qual, em nome do “humorismo viril”, pedia a palavra para reafirmar que “na terra de cabra macho não pode ter uma reunião de bichas”[11]. Os limites geográficos da pátria imaginada pelo comediante, no entanto, transcendiam as fronteiras do estado de Pernambuco. De fato, se nos deslocarmos por um momento para o Rio Grande Sul, veremos o centroavante do Grêmio, Alcindo, transmitir aos jovens que almejavam o ofício de atacante uma exigência imperativa: “Vai lá e seja macho”[12]. De um extremo ao outro do País, nos vários espaços da vida social, deparamo-nos com a mesma exortação em favor da masculinidade viril.

Compreende-se, assim, o quiproquó criado pelo padre Henrique Monteiro. Pressionado pelas autoridades públicas, conduzido à delegacia de polícia para prestar esclarecimentos, ele teve de abdicar do propósito de curar moralmente os homossexuais. Não lhe consentiram sequer o direito de realizar a missa para redimir as prostitutas. Programada para o domingo, 9 de abril, a cerimônia religiosa coincidiria com o jogo do Santa Cruz, na cidade de Caruaru, e os responsáveis pela ordem pública temiam que os torcedores corais pudessem “visitar a zona do Almirante Barroso, com a possibilidade de provocar confusão”[13].  

Esta breve digressão através da “Missa das Madalenas” e do “Congresso das Bonecas” nos permite aludir ao ambiente moral que cercava o exercício da profissão de atleta, no Recife, no início dos anos setenta. De um modo ou de outro, todos deviam corresponder ao estereótipo do “cabra macho”, cuja figura, decerto, compunha o estoque de “verdades” elaboradas a respeito do “nordestino” – consoante a análise acurada do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior[14]. A invenção do jogador macho emergia como fruto de uma produção discursiva e imagética dilatada no tempo e no espaço. Ela ecoava, por exemplo, nas memórias de Francisco das Chagas Marinho, o antigo lateral esquerdo do Náutico. Para realçar os atributos requeridos para o sucesso na carreira profissional, ele traçava um paralelo emblemático da força do estereótipo em tela:

O pistoleiro com uma arma só, [quando] acabavam as seis balas, ele morria. Quem tinha doze balas, [isto é] as duas pernas, era melhor. E quem [tinha] três revólveres era melhor ainda…. Se [soubesse] cabecear e chutar com as duas pernas…[15]

Assim como nas demais esferas da vida social, também no futebol, como nos permite entrever as reminiscências de Marinho Chagas, a questão se resumia, muitas vezes, em “matar ou morrer”. Neste cenário inóspito em que o então jovem lateral esquerdo do Náutico buscava sobreviver, exibindo em campo um jogo ao mesmo tempo refinado e irreverente, Allan Cole se achava situado na linha de tiro de uma crítica implacável que o classificava como inapto para o “faroeste caboclo” que se desenrolava dentro das quatro linhas[16]. Sendo assim, retomemos a narrativa do terceiro turno do campeonato estadual, no momento em que Náutico e Sport se preparavam para mais um clássico. Sem Allan Cole, entregue ao departamento médico, os timbus venceram os leões, 2 a 0, em plena na Ilha do Retiro. Conquanto a surpreendente vitória não alterasse o rumo da competição, o desempenho do alvirrubro emitia os primeiros sinais de recuperação. “Tratar com jovens valores”, explicava Gradim, “sempre foi a minha rota”[17]. Desde o início da carreira de treinador ele demonstrara possuir um “faro” aguçado para identificar o potencial de cada atleta[18]. O temor da comunidade alvirrubra de que o Náutico navegasse à deriva estava afastado, o Velho Mestre conhecia como poucos os segredos do mar. Restava, porém, o risco de colisão com uma estrela cujos mistérios ninguém lograva elucidar. Gradim, no entanto, parecia ter um diagnóstico preliminar e um plano de trabalho para recuperar Allan Cole:

Acredito no seu futebol, pois os jogadores do Náutico que o enfrentaram na Jamaica fazem-lhe ótimas referências e creio mesmo que ele está passando por uma fase de ambientação, sentindo ainda a diferença no modo de jogar. Recomendei ao major Alves, nosso preparador físico, para preparar Allan no sentido de lhe dar mais velocidade, pois, ao que sei, ele joga à base de trotes. [19]

As considerações acima nos dão um quadro mais completo das deficiências que jornalistas, atletas e treinadores atribuíam ao atacante jamaicano. Além de lhe faltar combatividade no corpo a corpo com os adversários, ele também carecia da velocidade necessária para prevalecer sobre os marcadores ou abrir espaços aos companheiros. A ambientação, vista por este prisma, referia-se aos parâmetros impostos pelo futebol força. Com toda probabilidade, Allan Cole jamais imaginara se encontrar na “terra de Pelé” sob os cuidados de um major do Exército. O processo da militarização, contudo, não se desenrolava de forma linear, sem atritos ou resistências, assim como muitos dos agentes nele envolvidos desempenhavam amiúde papéis ambíguos, como, por exemplo, Gradim. Coerente com a tradição de autonomia do futebol brasileiro, ele admirava a habilidade técnica, valorizava o jogo ofensivo, cultivava a troca de passes. Mas, ao mesmo tempo, o técnico negro precisava sobreviver em um contexto no qual os jogos se decidiam cada vez mais na batalha das trincheiras travada no meio de campo, nas incursões em alta velocidade dos contra-ataques, na capacidade de recomposição rápida do conjunto para obstar o avanço dos adversários. Sob este último aspecto, Gradim ministrava “alguns conselhos” ao lateral esquerdo, Marinho Chagas, relativos à “disciplina tática”[20]. Conforme recordava o jogador potiguar: “Eu era abusado”[21].

Considerado de forma unânime a principal promessa da equipe, ele merecia cuidados especiais dos dirigentes do alvirrubro e dos integrantes da comissão técnica, os primeiros, interessados em auferir um bom lucro com a provável negociação do passe; os segundos, empenhados em encontrar a posição ideal para extrair do atleta todo o potencial que lhe era reconhecido e isto desde o início, quando jogava no ABC de Natal. O primeiro obstáculo que teve de superar foi o estigma que, naquela época, ainda pairava sobre os trabalhadores da bola: “Você quer ser vagabundo”, esbravejara o pai, desalentado com o rendimento escolar do filho, “então vai ser vagabundo”[22]. Determinado a seguir a carreira de jogador de futebol, Marinho Chagas agarrava-se à cada oportunidade que lhe era oferecida, adaptando-se às exigências das equipes por onde passava. Queria jogar de centroavante, mas foi atuar de lateral. Embora destro, jogava na esquerda. Gostava de atacar, teve de aprender a marcar. Não o suficiente, porém, para satisfazer as exigências de uma concepção de jogo cada vez mais centrada no sistema defensivo.

Allan Cole no Náutico. Foto: Reprodução.

A “deficiência” defensiva de Marinho Chagas, já presente nos tempos do Náutico, demandava uma solução. Nelson Lucena, pouco antes de ser demitido do Náutico, tomara a iniciativa de escalá-lo na posição de “meia-armador”[23]. Gradim, ao assumir o cargo, quis levar adiante a experiência, mantendo o jovem atleta na nova posição durante praticamente todo o terceiro turno. Uma vez encerrado o campeonato estadual, o Náutico programara uma série de jogos amistosos a fim de se preparar para a disputa de uma nova competição, organizada pela FPF para indicar o segundo representante de Pernambuco no recém-criado Campeonato Nacional. A série foi iniciada em Caruaru com uma partida que assinalava o retorno de Allan Cole à equipe, depois de quase um mês e meio afastado por causa da distensão muscular. Ele regressava escalado no meio de campo ao lado de Cordeiro, volante incumbido da marcação, e de Marinho Chagas, coringa com o qual deveria dividir a responsabilidade de “armar o time”.

Como se vê, uma formação ofensiva, ousada, concebida por Gradim para garantir as condições ideias de trabalho aos atletas de talento. No que se refere especificamente ao jamaicano, era a primeira vez que o novo treinador iria dirigi-lo em campo[24]. A barreira linguística constituía um desafio à comunicação entre os dois. De fato, para transmitir as orientações ao jogador, nos treinamentos, Gradim recorria ao médico Omar Braga, “um bom intérprete”, mas aduzia que Allan Cole começava a “arranhar o português”, tornando possível a “gente conversar”.

Não é tarefa fácil reconstituir os termos em que se desenrolava esta interlocução, identificar com precisão quais os fatores que concorriam para o entendimento mútuo, ou, inversamente, quais os obstáculos que reforçavam o estranhamento recíproco. Fosse como fosse, o amistoso agendado para a cidade de Caruaru surgia como um primeiro teste na referida relação. Jogando em um estádio de dimensões acanhadas, sobre um terreno irregular e praticamente sem grama, Allan Cole forneceria argumentos em favor da continuidade do diálogo. O gol do Náutico, assinalado aos vinte e oito minutos, nasceria “no meio-campo com Allan Cole ganhando o combate” do marcador, e tocando para Edvaldo “penetrar e chutar com êxito”, na saída do goleiro[25].      

Tratava-se, sem dúvida, de um simples amistoso, mas a descrição jornalística do lance transmitia a impressão de que Allan Cole começava a se expressar de forma mais adequada na linguagem futebolística imposta pelos novos tempos. A exigência de combatividade, ponto nevrálgico no estilo de jogo do jamaicano, emergia no texto como um alento para os críticos. Nem tudo estava perdido. Talvez houvesse a possibilidade de redenção para o atleta rastafári. Mas, então, quando o trabalho de recuperação física, tática e técnica parecia encaminhado na direção correta, sobreveio uma nova fisgada na coxa, no mesmo local da antiga contusão, no amistoso contra o Sergipe, em Aracaju, no dia 19 de maio. O novo período de inatividade, cerca de doze dias, ocasionado pela lesão mal curada, desta vez lhe custaria a titularidade na equipe. No final de junho, em Recife, no amistoso contra o América, de Natal, a direção do Náutico apresentava aos torcedores o centroavante Paraguaio, contratado por empréstimo como parte do negócio envolvendo Marinho Chagas, cujo passe havia sido cedido ao Botafogo. Clóvis Moura Rodrigues, 26 anos, gaúcho de Porto Alegre, alcunhado de Paraguaio, chegava para ocupar o lugar que o jamaicano deixara vago, por deficiência técnica, desentrosamento tático ou contusão física.

Allan Cole, com efeito, começava a perder espaço na preparação do Náutico para o Torneio Eraldo Gueiros, a competição idealizada pela FPF para indicar o segundo representante do estado de Pernambuco no Campeonato Nacional. Como se não bastasse a reserva, por causa da contusão ele também ver-se-ia cortado da Mini Copa promovida pela CBD, sob os auspícios do regime civil-militar, dentro das celebrações do Sesquicentenário da Independência. Graças à condição de ídolo no Caribe, e por atuar no país sede, o atacante jamaicano recebera a convocação para reforçar a Seleção da CONCACAF, a entidade que congregava as federações de futebol da América Central e da América do Norte[26]. Não obstante a fragilidade do time, e a despeito dos problemas envolvendo a competição, a Taça Independência constituía-se na chance de se exibir para uma audiência mais ampla. Com sedes espalhadas por três capitais nordestinas, Aracajú, Maceió e Salvador, o Grupo 1 reunia, além da Seleção da CONCACAF, França, Colômbia, Argentina e a Seleção da Confederação Africana de Futebol, CAF. O Grupo 2, com sedes em Natal e Recife, estava formado por Irã, Chile, Equador, Irlanda e Portugal[27]. Mas a principal sensação nesta última chave, além da presença do atacante Eusébio, seria a inauguração do Estádio José do Rego Maciel, logo cognominado pela imprensa de Mundão do Arruda.

Erguido com o “apoio do governador Eraldo Gueiros”, o estádio do Santa Cruz obteve o generoso financiamento público do Banco do Estado da Paraíba[28]. Ele representava, no discurso oficial das autoridades públicas, o “início de uma nova etapa para o futebol do Estado”[29]. Com capacidade superestimada para oitenta mil lugares, o novo estádio substituía o antigo “Alçapão”, fornecendo ao Santa Cruz uma casa à altura da representação que o tomava por “Clube das Multidões”, ao mesmo tempo em que proporcionava ao governador do Estado a oportunidade de se projetar na arena política[30]. Aprendiz de feiticeiro, Eraldo Gueiros seguia à risca os passos de Garrastazu Médici, comparecendo às cerimônias esportivas, distribuindo benefícios aos clubes, emprestando o próprio nome às competições oficiais. Na inauguração do Mundão do Arruda, no domingo, 5 de junho, ele comparecia ao evento para colher os frutos da instrumentalização do futebol. De acordo com a cobertura apologética feita pelo Diário de Pernambuco, os torcedores, no foro íntimo, diziam para si mesmos: “Obrigado, governador”[31]. A diretoria coral, certamente grata pela ajuda oficial, homenageava Eraldo Gueiros com o título de sócio benemérito, a fim de saudar aquele que “dia a dia se identifica mais com o povo pelas suas realizações”[32]. Os interesses convergentes da autoridade política, da agremiação esportiva e do jornal impresso constituíam uma equação perfeita em que todos, aparentemente, saíam ganhando. Inclusive o Náutico, pois, afinal de contas, como salientava um acólito, “o nosso governador era alvirrubro”[33].

No início de julho teve início o Torneio Eraldo Gueiros[34]. Seis clubes estavam inscritos para a “luta” pela última vaga do Campeonato Nacional, mas o Santa Cruz, na condição de campeão estadual, apenas cumpria tabela. Ferroviário, América e Central participavam como azarões improváveis, restringindo-se a Sport e Náutico a disputa efetiva por um lugar ao sol na cobiçada competição criada pela CBD. A perspectiva de ficar de fora do Campeonato Nacional, sem jogos atrativos durante todo o segundo semestre, causava calafrios nos dirigentes, às voltas com imensas dificuldades financeiras para manterem os clubes. Por essa razão, o Torneio Eraldo Gueiros revestia-se de importância crucial para os dois rivais da capital. Para Allan Cole, em particular, a eventual classificação significava a chance de enfrentar os grandes clubes do futebol brasileiro e, quem sabe, de se transferir para o Rio de Janeiro ou São Paulo, sonho recôndito do atleta jamaicano.

Às vésperas da estreia do alvirrubro no Torneio Eraldo Gueiros, no entanto, durante um coletivo no Estádio dos Aflitos, ele voltaria “a sentir a distensão” que o perseguia de forma implacável havia mais de três meses. Depois de ter sido examinado pelo médico, a reportagem do Diário de Pernambuco o flagrara cabisbaixo, sentado no banco de reservas, o “drama” da contusão “estampado no rosto”, o comentário em tom de desabafo: “Não é possível. Mais problemas depois de tanto tempo parado”[35]. Em vão os integrantes da comissão técnica e os dirigentes do clube procuravam consolá-lo. Perto do final do mês de julho, coroando a sequência de adversidades, Allan Cole daria entrada no Hospital Centenário para uma operação das amígdalas. Enquanto vivia o inferno astral, afastado dos gramados, o Náutico renascia das cinzas no Torneio Eraldo Gueiros, com Marinho Chagas reposicionado na lateral esquerda, uma dupla de volantes escalada no meio de campo para proteger a defesa e Paraguaio centralizado no comando do ataque, marcando gols em profusão, três somente na goleada de 6 a 0 contra o Central, e gols decisivos, também, como o da vitória por 1 a 0 contra o Santa Cruz.

Dessa maneira, como salientava o Diário de Pernambuco, Paraguaio se consolidava como “o novo artilheiro do nosso futebol”[36]. Decerto muito satisfeito com o desempenho da linha de ataque, Gradim, no entanto, não olvidava Allan Cole. O Velho Mestre tinha “muita fé” no jovem jamaicano e acreditava que ele poderia se tornar “uma atração” no Campeonato Nacional[37]. No princípio de agosto, já recuperado da operação das amígdalas, o atacante retornou aos treinamentos e se colocou à disposição do treinador. Gradim, depois de havê-lo testado no meio de campo, pensava agora em utilizá-lo na ponta-esquerda[38]. As deambulações do atleta rastafári pelas diversas posições do ataque indica-nos a dificuldade aparentemente insuperável de lhe encontrar o lugar ideal. A necessidade de inseri-lo de alguma forma na equipe, porém, traduzia não somente a confiança do técnico nas qualidades de Allan Cole, mas, também, a preocupação em atender as manifestações que emanavam das arquibancadas. Antes da partida contra o Ferroviário, no sábado, 13 de agosto, Gradim recebeu a reportagem do Diário de Pernambuco e enviou através do jornal “um pedido à torcida alvirrubra”, relacionado ao atacante jamaicano:

Gostaria que a torcida não ficasse pedindo a sua entrada. Sei que se trata de um craque, mas que deve voltar aos poucos. [39]

De fato, Allan Cole sairia do banco de reservas para assinalar o terceiro gol da vitória de 4 a 0 do Náutico contra o time da Estrada de Ferro, jogo realizado no novo palco do futebol pernambucano, o Mundão do Arruda. Mas enquanto o atleta rastafári se recondicionava para voltar à equipe, Marinho Chagas se preparava para deixá-la. O jovem lateral jogava as derradeiras partidas pelo Náutico, antes de se transferir para o Botafogo. Considerado o “termômetro do quadro”, irrefreável em sua ânsia de atacar, ele disputava a artilharia da competição com o centroavante Paraguaio[40]. Com efeito, o estilo de jogo ofensivo, concebido pelo comandante negro e alicerçado no talento e na rebeldia dos atletas reunidos em campo, transformava o Clube Capibaribe, naquele torneio, em mais uma das inúmeras figurações do futebol-arte.

Mas no exato momento em que a equipe de Gradim, Allan Cole e Marinho Chagas ascendia na tabela de classificação, empolgando a torcida alvirrubra e arrebatando a crônica esportiva; os dirigentes brasileiros entraram em ação para imprimir, no texto intercultural escrito pelo Náutico, o carimbo da autoridade esportiva, lembrando a todos a plena vigência do código tradicional que estabelece o favorecimento obtido a partir da rede de relações pessoais em detrimento do resultado alcançado com base na igualdade das regras do jogo[41]. Através da “Taça Eraldo Gueiros”, rememorava quarenta anos depois, Marinho Chagas, “tivemos o direito, pela CBD, de participar da Copa do Brasil do ano seguinte”[42]. As datas e os dados se confundiam na memória do excepcional do jogador potiguar. Não se tratava da Copa do Brasil, mas do Campeonato Nacional. A participação do Náutico dar-se-ia naquele mesmo ano de 1972, mas não somente por mérito, como, também, por favorecimento! Para mostrá-lo, devemos retomar o fio da narrativa.

Ainda no princípio de agosto, a diretoria do Sport veio a público para alertar que tudo havia sido “tramado para dar ao Náutico a segunda vaga no certame da CBD”[43]. O alvo preferencial da denúncia era a Federação Pernambucana de Futebol, responsabilizada de escalar árbitros com o objetivo inconfessado de favorecer o rival. Sem provas, a acusação foi relegada ao esquecimento. Mas por pouco tempo. O torneio seguia adiante, quando, de repente, começaram a circular os primeiros rumores de que a CBD havia ratificado a participação do Náutico no Brasileiro na condição de clube convidado[44]. Em meados do mês as suspeitas se confirmaram. O Torneio Eraldo Gueiros ainda não havia terminado e a entidade presidida por João Havelange já tinha publicada a tabela do Campeonato Nacional com as presenças de Santa Cruz e Náutico[45]. A “escolha” da CBD, com ou sem a cumplicidade da FPF, lançava uma nódoa sobre uma competição que, esvaziada da finalidade para a qual havia sido criada, a saber, indicar pelo mérito o segundo representante de Pernambuco, perdia parte importante do valor, interesse e significado de que se revestira inicialmente. De fato, resignado com a decisão política, o Sport passaria a entrar em campo com um “time misto”[46]. Não é difícil imaginar o sentimento de logro que deve ter se espalhado tanto pelas arquibancadas quanto pelos gramados. E o pior de tudo era que o Náutico, o principal beneficiado pela decisão, liderava a competição e prescindia da ajuda extraesportiva. A interferência da CBD, paradoxalmente, auxiliava e prejudicava a agremiação da Rosa e Silva, à medida que lhe retirava a legitimidade de uma vaga obtida dentro das quatro linhas.

De qualquer forma, em meados de agosto, numa quarta-feira à noite, perante quase trinta mil torcedores que acorreram ao Colosso do Arruda, os alvirrubros conquistaram o Torneio Eraldo Gueiros, derrotando o Santa Cruz por 3 a 1. No domingo, no mesmo estádio, mas diante de um público mais reduzido, cerca de dez mil espectadores, os timbus coroavam o título com a virada de 2 a 1 sobre os leões. O jogo marcava a despedida de Marinho Chagas, o “garoto taticamente indisciplinado”, e oferecia a plateia uma das melhores atuações de Allan Cole, com direito à participação “valiosa” nos lances capitais que resultaram nos dois gols de Paraguaio. Embalado pela Charanga do Náutico, que atacava com o frevo “Vassourinhas”, o jogador-compositor convidava os defensores do Sport à dança. Do banco de reservas, Gradim aplaudia a “boa jogada” do atacante estrangeiro, “colocando a bola sob as pernas de um adversário”[47]. O “endiabrado” jamaicano, como o denominara um colega de time, estava de volta.


[1] Cf. “Central e Náutico dividem o escore”, Diário de Pernambuco, 16 de maio de 1972.

[2] Cf. “Gradim arma seu 4-3-3 para tentar classificar a equipe”, Diário de Pernambuco, 10 de setembro de 1972. De acordo com o verbete “Bonde”, de autoria de Geraldo Monteiro de Barros: “Mau jogador; jogador lento, pesado”. Cf. “Dicionário Ilustrado de Futebol”, revista Placar, n° 94, 31 de dezembro de 1971.

[3] Cf. “Alan Cole confirma convocação da Concacaf”, Diário de Pernambuco, 10 de maio de 1972.

[4] Cf. “Gradim pede paciência com os jovens atletas”, Diário de Pernambuco, 29 de março de 1972.

[5] Cf. “Gradim estreia no Náutico contra o Central”, Diário de Pernambuco, 2 de abril de 1972.

[6] Cf. “Central fez sua festa em Caruaru”, Diário de Pernambuco, 4 de abril de 1972.

[7] Cf. “Mulheres apoiam Congresso de Homossexuais”, Diário de Pernambuco, 7 de abril de 1972.

[8] Cf. “Condenado certame das ´Bonecas`”, Diário de Pernambuco, 8 de abril de 1972.

[9] Cf. “Juiz não quer Congresso de Homossexuais e padre volta”, Diário de Pernambuco, 8 de abril de 1972.

[10] Cf. “Delegado proíbe o Congresso das ´Bonecas`”, Diário de Pernambuco, 5 de abril de 1972.

[11] Cf. “Humorista é contra reunião de ´Bonecas`”, Diário de Pernambuco, 13 de abril de 1972.

[12] Cf. “O fácil caminho do gol”, revista Placar, nº 107, 31 de março de 1972. Alcindo foi o autor do gol da Seleção Brasileira, na derrota de 3 a 1 para a Hungria, na Copa de 1966.

[13] Cf. “Todo pronto para missa de amanhã”, Diário de Pernambuco, 8 de abril de 1972.

[14] Cf. Albuquerque Júnior, Durval Muniz de (2011) A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo, 5. ed. Editora Cortez.

[15] Entrevista concedida pelo ex-atleta Marinho Chagas em 12 de janeiro de 2012 no âmbito do projeto: “História Oral: Futebol, Memória e Patrimônio”, da Fundação Getúlio Vargas/CPDOC e Museu do Futebol/Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), coordenado pelo historiador Bernardo Buarque de Hollanda.

[16] Trata-se de uma referência à música “Faroeste Caboclo”, do grupo Legião Urbana, do álbum “Que país é este”, 1987. Mais acima, a expressão “mata ou morrer” remete à música de Cazuza, “O tempo não para”, do álbum homônimo, 1988.

[17] Cf. “Gradim pede paciência com os jovens atletas”, Diário de Pernambuco, 29 de março de 1972.

[18] Cf. “Futebol perde uma das suas mentes lúcidas”, Jornal do Brasil, 14 de junho de 1987.

[19] Cf. “Sigilo de Gradim sobre alteração que fará”, Diário de Pernambuco, 14 de abril de 1972.

[20] Cf. “Gradim tira última dúvida hoje de manhã no coletivo”, Diário de Pernambuco, 21 de abril de 1972.

[21] Entrevista concedida pelo ex-atleta Marinho Chagas em 12 de janeiro de 2012 no âmbito do projeto: “História Oral: Futebol, Memória e Patrimônio”, da Fundação Getúlio Vargas/CPDOC e Museu do Futebol/Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), coordenado pelo historiador Bernardo Buarque de Hollanda.

[22] Entrevista concedida pelo ex-atleta Marinho Chagas em 12 de janeiro de 2012 no âmbito do projeto: “História Oral: Futebol, Memória e Patrimônio”, da Fundação Getúlio Vargas/CPDOC e Museu do Futebol/Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), coordenado pelo historiador Bernardo Buarque de Hollanda.

[23] Cf. “Dé e Jucélio culpados dos tentos”, Diário de Pernambuco, 28 de março de 1972.

[24] Cf. “Gena pode ser novidade do Náutico em Caruaru”, Diário de Pernambuco, 13 de maio de 1972.

[25] Cf. “Central e Náutico dividem o escore”, Diário de Pernambuco, 16 de maio de 1972.

[26] Cf. “Allan Cole confira convocação da Concacaf”, Diário de Pernambuco, 10 de maio de 1972.

[27] Havia, ainda, o Grupo 3, com sedes em Curitiba, Campo Grande e Manaus, que reunia Bolívia, Paraguai, Peru, Venezuela e Iugoslávia. O Grupo 4 seria formado pelo campeão dos três primeiros grupos, mais as cinco seleções pré-classificadas para esta nova etapa: Brasil, Uruguai, Escócia, Tchecoslováquia e União Soviética. Sobre a instrumentalização política do evento esportivo pelo regime civil-militar, ver o trabalho de Adjovanes Thadeu Silva de Almeida (2013).

[28] Cf. “Arruda, único estádio de clube na eliminatória”, Diário de Pernambuco, 7 de maio de 1972.

[29] Cf. “Uma nova fase para o futebol pernambucano com o estádio do Arruda”, Diário de Pernambuco, 30 de maio de 1972.

[30] De acordo com o engenheiro André de Paula, presidente da Comissão Patrimonial do Santa Cruz, o novo estádio possuía capacidade total para cerca de setenta mil pessoas, “podendo chegar a 80.000 em condições precárias”. Cf. “Bilheteria esquecida aumenta renda para 222.834 cruzeiros”, Diário de Pernambuco, 6 de junho de 1972.

[31] Cf. “Aval do estado foi lance decisivo para o ´Mundão`”, 4 de junho de 1972. A inauguração do “Salgueirão”, no sertão de Pernambuco, também contaria com a presença de Eraldo Gueiros. Cf. “Salgueiro ganha o maior estádio do Sertão”, 2 de julho de 1972. Veja-se, também, “Eraldo Gueiros vai a Caruaru para solucionar construção do estádio”, 8 de julho de 1972. Todas as reportagens publicadas no Diário de Pernambuco.

[32] Cf. “Eraldo será sócio benemérito do Santa Cruz”, Diário de Pernambuco, 2 de junho de 1972.

[33] Cf. “Meta do Náutico é ganhar o Eraldo Gueiros”, Diário de Pernambuco, 27 de junho de 1972.

[34] Cf. “Começa luta por vaga no Nacional”, Diário de Pernambuco, 3 de julho de 1972.

[35] Cf. “Allan Cole volta a se machucar e Gradim tem dúvidas na equipe”, Diário de Pernambuco, 5 de julho de 1972.

[36] Cf. “Náutico defende liderança com força total”, Diário de Pernambuco, 26 de julho de 1972.

[37] Cf. “Gradim fala da etapa final do torneio e dos planos para o Nacional de clubes”, Diário de Pernambuco, 3 de agosto de 1972.

[38] Cf. “Gradim alerta Timbu”, Diário de Pernambuco, 8 de agosto de 1972.

[39] Cf. “Líder completo para jogar contra o Ferrim”, Diário de Pernambuco, 13 de agosto de 1972.

[40] Cf. “Marinho vai embora. Quem será o seu substituto? ” Diário de Pernambuco, 13 de agosto de 1972.

[41] Damatta, Roberto (1997) Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco.

[42] Entrevista concedida pelo ex-atleta Marinho Chagas em 12 de janeiro de 2012 no âmbito do projeto: “História Oral: Futebol, Memória e Patrimônio”, da Fundação Getúlio Vargas/CPDOC e Museu do Futebol/Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), coordenador pelo historiador Bernardo Buarque de Hollanda.

[43] Cf. “Está deflagrada guerra contra a Federação”, Diário de Pernambuco, 11 de agosto de 1972.

[44] Cf. “Leão com time misto nas finais do torneio”, Diário de Pernambuco, 13 de agosto de 1972.

[45] Cf. “Náutico e Santa Cruz representarão Estado no Campeonato Nacional”, Diário de Pernambuco, 15 de agosto de 1972.

[46] Cf. “Leão com time misto nas finais do Torneio”, Diário de Pernambuco, 13 de agosto de 1972.

[47] Cf. “Arruda, palco da festa alvirrubra” e “Ídolo homenageia torcida”, 22 de agosto de 1972, ambas as matérias publicadas no Diário de Pernambuco.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. “Vai ser vagabundo”. Ludopédio, São Paulo, v. 118, n. 5, 2019.
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