Calma, não é mais um texto sobre a situação política atual do país. As artimanhas sobre as quais seguem as próximas linhas dizem respeito unicamente ao futebol. Isso numa visão inocente. Um olhar moldado desde menino ao acompanhar os jogos e os jornais com o noticiário sobre os campeonatos. Sem se preocupar muito com o que acontece por debaixo da cartola de dirigentes, os segredos que se vão em fumaça de charutos fumados em reuniões a que poucos têm acesso. Certa vez, perguntei a um reconhecido narrador esportivo de TV e rádio qual o time de coração: “quando se conhece o futebol por dentro, se perde a paixão”. Fiquei com aquela frase. Não deixei de lado meu interesse pelo esporte. Engano-me a cada começo de campeonato, fecho os meus olhos para a possibilidade de qualquer manobra de bastidor que influencia na tabela. Torço nas partidas, cego pelo meu clube. Fim de semana, começou de novo. Começou de novo. O Brasileiro 2016.

Das edições que minha geração passou a entender como “Campeonato Brasileiro” (desde 1971, antes da unificação dos títulos anteriores pela CBF), parte delas revela situações um tanto constrangedoras, que geram debate até entre os mais calados, que fervem o álcool no sangue nas mesas de bar. Medidas tomadas não sei se “pela família, pelos amigos, pela minha cidade…” Mas seja qual for o motivo, algumas são desmedidas. Seja um errinho bobo de arbitragem aqui, uma ajudinha de juiz ali, um jogador importante julgado fora do prazo, um regulamento mudado teremos motivo para questionar. Pode parecer complexo de perseguição. Ou choro de derrotado. Mas é interessante analisarmos alguns casos que envolvem o Brasileirão.

Não há como fazer um levantamento aqui de todos os possíveis jogos questionados, pelo tempo e espaço, por isso separamos alguns pouco momentos históricos do nosso futebol que envolveram a disputa do título nacional e como a imprensa escrita noticiou os fatos. Os possíveis erros de arbitragem durante a partida (como o título do Flamengo em 1980, o do São Paulo em 1986, ou o do Botafogo em 1995, só para citar alguns casos) ou as questões que envolvem rebaixamento (Sandro Hiroshi e Héverton) reclamados pelos prejudicados ficam para um próximo post.

Em boa parte dos casos, o regulamento é o que gera a polêmica. 1974. O Cruzeiro tinha campanha melhor que o Vasco. Mas o jogo desempate foi levado para o Maracanã e não para o Mineirão. Uma invasão de campo de um vice-presidente no jogo anterior determinou a aplicação de uma regra de inversão de mando de campo. Detalhe que essa mesma regra não foi utilizada em nenhum momento antes no torneio, de acordo com a imprensa. O clube cruzmaltino se apoiou no Artigo 59 do regulamento, pressionou a CBD e venceu em casa. “Vasco não joga no Mineirão. Tem o apoio do regulamento”, era a manchete d’O Globo (30/07/1974, p. 40), e o local da partida ficou definido pouco antes da final.

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O jornal carioca “O Globo” notícia, em 30 de julho de 1974, no seu caderno de esportes, a polêmica envolvendo o mando de campo da final do Campeonato Brasileiro daquele ano, disputada entre Vasco e Cruzeiro (reprodução).

Outro mineiro, o Atlético teve dez pontos a mais que o São Paulo em 1977 e foi para uma final em jogo único, sem vantagem. Os paulistas levaram nos pênaltis. O campeonato invicto do Internacional, em 1979, poderia ter sido dificultado se Corinthians, Portuguesa, Santos e São Paulo participassem. Eles não disputaram o torneio por um entrevero com a Confederação sobre em qual fase entrariam na disputa, já que queriam poupar o time da maratona de jogos. Naquele ano, foram 581 partidas pelo Brasileirão e quase cem equipes (O GLOBO, 24/12/1979, Caderno de Esportes, p. 2).

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A Copa União de 87, como foi chamado o Brasileirão daquele ano, foi um dos torneios de futebol mais controversos do país a ponto de, até hoje, Flamengo e Sport batalharem na Justiça por validação de resultados e títulos, com muitas reviravoltas (reprodução).

A Copa União de 1987 talvez seja a que mais desperta controvérsias. Numa organização confusa que envolveu o Clube dos Treze e a CBF, o Flamengo venceu o módulo com mais equipes tradicionais. O Sport Recife ganhou o outro módulo com equipes como o então vice-campeão de 1986, Guarani. Não se sabia ao certo se os dois módulos eram ou não primeira divisão. CBF queria um quadrangular entre campeão e vice de cada. O Clube dos Treze, não. Ao ler os jornais da época, temos munição para ambos os lados.

“A proposta de [Eduardo] Vianna [presidente da federação do Rio à época, o popular “Caixa D’Água”] mantém a disputa do Brasileiro em quatro módulos, sendo que o verde e o amarelo teriam dezesseis equipes cada um. Cada módulo teria seu campeão, sem a necessidade de um torneio final para decidir o campeão brasileiro. No início do próximo ano, a equipe que representaria o país na Taça Libertadores seria definida após um torneio quadrangular entre os dois primeiros colocados em cada módulo. Octávio [Pinto Guimarães, presidente da CBF] delegou poderes às federações para organizarem o campeonato” (FOLHA DE S.PAULO, 04/09/1987, p. A16).

Ou ainda na reportagem “Copa União começa hoje, com apoio da CBF”: […] “O campeão e o vice mais os dois primeiros colocados do módulo amarelo jogarão um quadrangular para apontar os dois representantes brasileiros na Taça Libertadores da América” (FOLHA DE S.PAULO, 11/09/1987, p. A16).

Até o final, a imprensa, os dirigentes, os torcedores, ninguém sabia o que estava realmente valendo. O Sport venceu em campo e na Justiça. O Flamengo também venceu em campo e ainda briga nos tribunais. O campeonato que ainda não acabou…

Outra competição que começou confusa, com problemas na Justiça Comum, foi a Copa João Havelange, em 2000. Mesclando times de todas as divisões, o final também esteve envolto à contestação. A segunda partida da decisão entre Vasco e São Caetano em São Januário mostrava um time paulista bravo, jogando bem, e de outro lado, um favorito, mas com o craque e artilheiro Romário fora por contusão. Uma briga entre torcedores jogou o alambrado no chão e mais de cem deles ficaram feridos.

Aí, veio a dúvida: o 0x0 era do Vasco, que deu a volta olímpica no dia da tragédia, mas, de acordo com os jornais da época, o regulamento previa que se o clube fosse responsabilizado, seria punido e eliminado.

“O presidente do São Caetano, Nairo de Souza, disse ontem que aceita dividir o título de campeão da Copa João Havelange com o Vasco. […] Mas ninguém no vestiário do São Caetano pensou na hipótese de o time ser proclamado o único campeão com base no artigo oito do regulamento de competição, que determina derrota de 1 a 0 para a equipe que tenha sido responsável pela interrupção da partida”. (O GLOBO, 31/12/2000, p. 36).

Também previa um jogo nos mesmos moldes no dia seguinte. Mas o que vimos foi um adiamento de quase um mês. A equipe do São Caetano perdeu parte do seu plantel e o Vasco, com Romário novamente, venceu por 3×1 sendo o campeão.

Mas artimanha comprovada de manipulação de resultados, com escutas telefônicas e árbitros negociando “ajuda” a time A e B em partidas, aconteceu em 2005. A “Máfia do Apito” fez com que os jogos apitados por Edílson Pereira de Carvalho fossem “rejogados”: 11 resultados anulados e partidas remarcadas. Com isso, times que perderam antes, venceram agora e vice-versa. Nessa, o Corinthians, em melhor momento, melhorou sua posição na tabela e levou a melhor sobre o Internacional.

O mais recente caso, ainda sem apuração e provas consistentes, indica uma certa interferência da CBF em julgamentos para prejudicar o Atlético-MG em 2012.

Esses são apenas alguns, só uma palhinha para aumentar a polêmica. Se é verdade que houve alguma armação nos casos acima, não sei. A forma como a imprensa os noticia, nos apresenta argumentos para criarmos nossa visão sobre aquele fato, ajuda a acirrar a rivalidade entre torcedores, a instigar o debate e o olhar sobre a construção da imprensa sobre momentos “críticos” da organização do esporte mais popular do país.

05/05/2016- São Paulo- SP, Brasil- Brasileirão 2016 foi lançado oficialmente na noite desta quinta-feira (5), em São Paulo, em evento de gala, que reviveu grandes momentos da história da competição e reuniu personagens marcantes para o torneio. Foto: Rafael Ribeiro/ CBF
Taça do Brasileirão 2016. Foto: Rafael Ribeiro / CBF.

Num momento histórico de “judicializações da vida cotidiana”, artimanhas por todos os lados, fica a dúvida sobre o Brasileiro-16 que bate à porta: qual o golpe da vez?

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Chico Brinati

Professor de Jornalismo Esportivo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Pós-doutor em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como jornalista, atuou como produtor e editor na TV Integração, afiliada Rede Globo em Juiz de Fora-MG. Foi repórter de campo e plantonista da Rádio Panorama FM. Escreveu a coluna "Caneladas & Canetadas" no jornal "JF Hoje". Autor do livro "Maracanazo e Mineiratzen: Imprensa e Representação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1950 e 2014".

Como citar

BRINATI, Chico. Vai ter golpe?. Ludopédio, São Paulo, v. 83, n. 7, 2016.
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