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Valeriy Lobanovskiy, o vanguardista soviético

Dyego Lima Universidade do Esporte 12 de julho de 2020

No longínquo ano de 1939, quando, em pleno governo Stalin, a União Soviética ainda iniciava seu processo de influência política mundial, e a Segunda Guerra estava em vias de iniciar, nascia um homem que, anos depois, se tornaria uma lenda do futebol desconhecida no Ocidente. No dia 06 de janeiro, na cidade de Kiev, Valeriy Vasilyevich Lobanovskiy veio ao mundo ao qual “revolucionaria”. Ele mudaria seu tempo justamente por estar à frente dele. Essa constante busca por conhecimento lhe permitiu não só construir equipes históricas em três décadas diferentes, mas também o tornou uma influência dentro e fora dos gramados para as gerações posteriores.

Podendo ser considerado um dos primeiros casos de “técnicos estudiosos”, Lobanovskiy já demonstrava essa personalidade enquanto jogador. Ele iniciou sua carreira no Dínamo de Kiev em 1957. Com 1,87m de altura, ele foi um ponta-esquerda que, apesar de fugir dos padrões, impressionava pela capacidade de drible. No entanto, era a forma cirúrgica como batia na bola que chamava atenção. Graduado no Instituto Politécnico de Odessa, relatos da época afirmam que o atacante se utilizava de fórmulas da Física e cálculos matemáticos para aperfeiçoar seu chute “folha seca” e, principalmente, suas cobranças de escanteio, que acabaram lhe rendendo alguns gols olímpicos. Depois de uma passagem pelo Chornomorets Odessa, pendurou as chuteiras no Shakhtar Donetsk em 1968, aos 29 anos. No total, marcou 71 vezes em 255 jogos e conquistou dois títulos.

Já no ano seguinte, Lobanovskiy iniciou sua trajetória como treinador ao assumir o modesto Dnipro, que batalhava nas divisões inferiores da URSS. O objetivo do clube era claro: alcançar a elite do país. Nas quatro temporadas que lá passou, o técnico conquistou o título da segundona soviética em 1971, e na estreia do clube na primeira divisão, terminou num surpreendente sexto lugar. Como seu assistente, “Loba” tinha o professor da Universidade de Dnipro, Anatoly Zelentsov, que dizia ser capaz de melhorar a performance dos jogadores através da análise de desempenho.

Com o auxílio de um computador, Zelentsov observava a velocidade de cada jogador, o período em que passavam em determinadas zonas do campo, a forma como trabalhavam com e sem a bola, além de como se relacionavam dentro do gramado. Segundo ele, a equipe não perderia uma partida se, em momentos-chave, os erros não excedessem 18%. Unindo a inteligência futebolística de Lobanovskiy ao trabalho estatístico de Zelentsov, eles desenvolveram um sistema matemático que auxiliava no processo de treinamento e modelagem de carga física para a equipe. Nascia, assim, o “futebol científico”, sistema de jogo que foi amplamente difundido entre os clubes do leste europeu e que serviu de influência para outros vários times ao redor do globo.

O sistema acabou recebendo esse nome pois tudo, desde a preparação dos atletas ao esquema tático, era pensado cientificamente. A ideia era deter a posse da bola o menor tempo possível e ser letal no contra-ataque, avançando em toques rápidos e ocupando bem os espaços vazios. Assim, o futebol não consistia na individualidade de um jogador, mas na forma como ele se ligava e relacionava aos restantes. O sucesso do time era definido pela eficiência do sistema como um todo, e não pela eficiência individual. O atleta era visto como a peça de uma grande “máquina”, que funcionava por meio da velocidade, capacidade atlética e rigor tático.

Para moldar uma equipe que fosse quase invencível e preparada física e psicologicamente para errar o mínimo possível, Lobanovskiy e Zelentsov elaboraram um programa de preparação em três níveis. Os atletas eram avaliados para se saber como reagiam ao treino físico, tático e psicológico. Tudo que era colocado em prática nos jogos era mecanicamente planejado, tendo sido ensaiado à exaustão durante os treinamentos:

Nível 1: Sessão individual de treino técnico para que os jogadores pudessem compreender inteiramente o seu papel e as tarefas que teriam de desempenhar na partida.

Nível 2: Sessão específica de táticas e tarefas a executar de acordo com o adversário da vez, de modo a explorar as fragilidades do oponente.

Nível 3: Apesar de cada duelo deter de uma estratégia específica, era impossível manter a execução do plano em alto nível em todos os jogos. Dessa maneira, conseguir um empate na casa de um forte adversário não era considerado um resultado ruim.

Valeriy Lobanovskiy. Fonte: Wikipédia

Lobanovskiy desenvolveu um estilo de jogo que se assemelhava ao “futebol total” praticado por Rinus Michels naquele mesmo período. Além da constante pressão ao adversário, o treinador queria que os atletas pudessem, sem maiores problemas, assumir a função de qualquer outro jogador durante uma partida. Assim, o esporte acabou sendo seu grande “laboratório”, onde, a cada jogo, ele fazia experimentos diferentes.

Com o repentino sucesso no Dnipro, “Loba” chamou a atenção do Dínamo de Kiev, sua primeira casa e clube do coração, sendo contratado no fim de 1973. Já em sua temporada de estreia, apesar das constantes críticas da imprensa ao futebol praticado pela equipe, visto como defensivo ao excesso, o clube venceu tanto a Liga quanto a Copa Soviética. A passagem pelo clube ucraniano durou até 1982. Nesse período, foram cinco títulos nacionais e três copas, além da conquista da Cup Winner’s Cup de 1975.

Com uma campanha impressionante de oito vitórias e um empate em nove jogos, o Dínamo bateu o Ferencváros por 3 a 0 na decisão, tornando-se, assim, o primeiro time da URSS a ganhar um título continental. O time-base era composto por: Rudakov; Troshkin, Fomenko, Reshko e Matviyenko; Muntyan, Konjkov, Kolotov e Buryak; Onyshchenko e Oleg Blokhin, que venceria a disputa pela Bola de Ouro daquele ano ao deixar para trás os enormes Franz Beckenbauer e Johan Cruyff. Essa mesma equipe bateria, dias depois, o Bayern de Munique, que era base da seleção alemã campeã do mundo em 1974, na disputa da Supercopa da Europa. 1 a 0 na ida, em Munique, e 2 a 0 na volta. Lobanovskiy receberia o prêmio de melhor técnico do mundo do ano de 1975.

Paralelamente ao trabalho no Dínamo, “Loba” aceitou o cargo de técnico da seleção soviética, que se preparava para a disputa das Olimpíadas de Montreal, no Canadá, em 1976. Após perder para a Alemanha Oriental na semifinal, os soviéticos, com a base da equipe titular formada pelo time de Kiev, venceram o Brasil na disputa de terceiro lugar e acabaram com a medalha de bronze. De volta ao clube, o técnico fez com que o time fizesse grandes campanhas em nível continental novamente. Pela Champions League, o Dínamo caiu nas quartas em 1976 para o Saint-Étienne, e na semifinal em 1977, diante do Borussia Mönchengladbach.

Em outubro de 1982, Lobanovskiy deixou Kiev para se tornar técnico exclusivo da seleção soviética. A passagem durou apenas doze meses. A derrota para Portugal na última rodada das eliminatórias para a Eurocopa de 1984 custou o cargo. No ano da Euro, o técnico retornou ao clube ucraniano para sua segunda passagem, que duraria até 1990. Depois de uma primeira temporada prejudicada pelas lesões de seus principais jogadores, “Loba” levou o clube à dobradinha Liga-Copa na época seguinte.

Em 1986, mais uma conquista continental. Após derrota na estreia, o Dínamo venceu todos os jogos restantes e, novamente, foi campeão da Cup Winner’s Cup. O clube não tomou conhecimento do Atlético de Madrid, que era comandado por Luis Aragonés, e fez 3 a 0 na decisão. Lobanovskiy se tornou o único treinador a conquistar dois títulos continentais com um clube do leste europeu. A equipe que entrou em campo naquela final foi composta por: Chanov; Bessonov, Kuznetsov, Baltacha e Demyanenko; Yakovenko, Yarenchuk, Rats e Zavarov; Oleg Blokhin e Igor Belanov, que venceria a Bola de Ouro daquele ano, deixando para trás Gary Lineker e Emílio Butragueño. Os jornais apontavam aquele Dínamo como um “time de outro planeta”, além de praticarem o “futebol do século XXI”. 

O ótimo trabalho credenciou o técnico a nova oportunidade como comandante da seleção soviética, mas dessa vez, sem deixar o clube de Kiev. Ele assumiu às vésperas da Copa de 1986, conseguindo avançar às oitavas com vitórias por 6 a 0 contra a Hungria e 2 a 0 diante do Canadá, além do empate por 1 a 1 contra a campeã europeia França. A eliminação veio num jogaço ante a Bélgica. Lobanovskiy seria, mais uma vez, eleito o treinador do ano.

Após o Dínamo ser eliminado pelo Porto na semifinal da Champions de 1987, o ano de 1988 veio, e com ele, trouxe a Eurocopa. E a seleção soviética, ainda com Lobanovskiy no comando, surpreendeu. Novamente com a base formada pelos atletas do clube de Kiev, a URSS só foi freada na grande final. O algoz foi a Holanda, a qual eles já haviam vencido na fase de grupos. Sobre o jogo, é impossível não lembrar do sem-pulo absurdo de Van Basten, sem ângulo, que resultou em um dos gols mais bonitos da história.

A segunda passagem de “Loba” pelo Dínamo acabou na metade de 1990. Com a URSS caminhando para a dissolução, os jogadores do país acabaram tendo permissão para se transferir para equipes ocidentais. Com o time enfraquecido, o técnico aceitou o cargo na seleção dos Emirados Árabes Unidos, onde conquistaria uma célebre quarta colocação na Copa Asiática de 1992. Dois anos depois, por conflitos com os dirigentes, Lobanovskiy saiu para assumir o comando da seleção do Kuwait, onde, em dois anos de trabalho, venceria a Copa do Golfo e a medalha de bronze dos Jogos Asiáticos.

No entanto, não poderia ser diferente. O último trabalho de Lobanovskiy tinha de ser em sua eterna casa. Após seis anos no Oriente Médio, o técnico acertou seu retorno ao Dínamo de Kiev para sua terceira passagem. E teria de ser emblemática, de forma a coroar sua brilhante carreira e gravar para sempre seu nome na história do futebol soviético/ucraniano e mundial. O contrato foi acertado em janeiro de 1997, e já na primeira temporada, surpresa.

Na Champions League, o Dínamo alcançou as quartas de final mais uma vez. O clube avançou em um grupo – considerado o da morte naquela edição – que contava com Barcelona, Newcastle e PSV. Contra os espanhóis, vitória nos dois jogos: 3 a 0 em Kiev, além de um sonoro 4 a 0 no Camp Nou, que contou com um hat-trick de Andriy Schevchenko. A eliminação viria para a Juventus, vice-campeã daquela edição.

Na temporada seguinte, o clube estava disposto a ir mais longe, e foi o que aconteceu. Porém, a semifinal foi o obstáculo da vez, e o algoz, o Bayern de Munique. A grande notícia ficou por conta de Schevchenko. Artilheiro daquela edição do campeonato europeu, ele acabou em terceiro na eleição da Bola de Ouro em 1999. Um sinal do que estava por vir, já que o atacante venceria o prêmio anos depois, em 2004, atuando pelo Milan.

A última passagem de Lobanovskiy pelo Dínamo de Kiev, que acabou sendo também seu último trabalho como técnico, durou até 2002. Simultaneamente, ele também comandou a seleção ucraniana, de onde seria demitido após falhar na tentativa de classificar o país para a Copa do Mundo de 2002. Durante o período, a equipe de Kiev foi campeã nacional em todas as temporadas, da Copa outras três vezes, além de outros três títulos da Cis Cup – um torneio entre clubes oriundos de países que compunham a antiga União Soviética -, que acabou sendo também o último torneio do qual Lobanovskiy foi vencedor enquanto técnico. A grande formação do Dínamo em sua última passagem era formada por: Shovkovskiy; Luzhnyl, Vashchuk, Golouko e Kaladze; Belkevich, Gusin, Khatskevich e Kosovskyi; Schevchenko e Rebrov.

Lobanovskiy deu, literalmente, a vida pelo Dínamo. Ele estava na área técnica quando viveu seus últimos momentos em vida. Ele sofria com problemas de saúde desde 1988, ano em que teve sua primeira parada cardíaca. Uma segunda, ocorrida em 2001, o obrigou a se submeter a uma cirurgia. Em 07 de maio de 2002, durante uma partida contra o FC Metalurh Zaporizhzhya, “Loba” sofreu um derrame e foi levado às pressas ao hospital. Seis dias depois, seu coração bateu pela última vez. Cerca de 150 mil pessoas compareceram ao seu funeral, inclusive o presidente da Ucrânia à época, Leonid Kuchma, que afirmou que Lobanovskiy “fez mais pelo país do que muitos políticos”.

Em seus 32 anos como técnico de futebol, Lobanovskiy venceu 30 títulos oficiais, o que o torna o terceiro do mundo com mais conquistas, atrás apenas de Sir Alex Ferguson e Mircea Lucescu. “Pai” de três vencedores da Bola de Ouro, foi eleito o sexto maior treinador de todos os tempos em uma lista elaborada pela France Football. Se por um lado ele era apontado como extremamente rigoroso, por outro, era muito querido por seus atletas, que o consideravam um ótimo “psicólogo”. Tanto é que Schevchenko, quando venceu a Champions League e o prêmio de melhor do mundo atuando pelo Milan, não esqueceu daquele ao qual considerava sua “figura paterna”, e fez questão de viajar com os troféus até a estátua de seu ex-treinador em Kiev. Em entrevista, “Loba” explicou sua relação com os jogadores:

“Um treinador sempre deve se lembrar que trabalha com pessoas. Pessoas que, em grande parte, o tornam o que ele é agora. E as pessoas, ao contrário dos robôs, têm uma alma que, muitas vezes, é muito vulnerável e, às vezes, obstinada. É realmente importante conhecer a personalidade e o caráter de cada jogador. Você pode ser mais rigoroso com um e menos com outro, mas, para isso, precisa conhecer o personagem. Você deve saber quais botões pressionar para que cada um traga o maior benefício possível”.

Postumamente, Lobanovskiy foi condecorado Herói da Ucrânia, maior honraria do país, além de receber as medalhas de Ordem de Mérito da Uefa e da Fifa. Ainda, o estádio do Dínamo de Kiev foi renomeado em sua homenagem. Escrito em sua lápide estão os dizeres: “Permanecemos vivos enquanto somos lembrados”. Sendo assim, o povo ucraniano jamais permitirá que Lobanovskiy e seu legado sejam esquecidos.   

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Dyego Lima

Jornalista formado pela UFRN. Aficionado por esportes. Futebol principalmente, mas não somente.Made in Universidade do Esporte! 

Como citar

LIMA, Dyego. Valeriy Lobanovskiy, o vanguardista soviético. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 28, 2020.
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