Há três semanas, em 1º de maio, data que homenageia as trabalhadoras e os trabalhadores em todo o mundo, o Corinthians ainda andava atônito com a falta de treinador. Pela pressão estúpida de arruaceiros de internet, o clube interrompera as conversas com Roger Machado e tudo indicava que a nova escolha recairia sobre um velho conhecido. Foi o que aconteceu. Com um prenome que remete à presença holandesa em nosso período colonial, outro que homenageia a líder comunista chamada Rosa, e com sobrenome absolutamente luso-brasileiro, Vanderlei Luxemburgo da Silva tornou-se treinador do Corinthians.

Luxa já ocupara o cargo em duas outras oportunidades, conquistando títulos e consolidando uma posição no futebol que o levou, com unânime apoio, ao posto de técnico da seleção brasileira de futebol, em 1998. Enfrentando percalços diversos, não chegou ao Mundial de 2002 na função, tendo sido substituído por Emerson Leão que, por sua vez, deu lugar a Luís Felipe Scolari, o líder o time campeão no torneio jogado no Japão e na Coreia. Foi contra Felipão, aliás, como antes acontecera no enfrentamento a Telê Santana, que Luxemburgo protagonizou alguns de seus melhores momentos dirigindo um time de futebol, na década de 1990. Aconteceu até que em uma das contendas entre Palmeiras e Grêmio, em meio a um desentendimento generalizado entre os dois times, ele saiu dizendo aos jornalistas que havia sido agredido pelo adversário, ao que Scolari respondeu devolvendo ao mundo uma pergunta, muito a seu estilo: “E desde quando peitada é agressão?!”

Vanderlei Luxemburgo
Luexemburgo é apresentado como treinador do Corinthians. Foto: thenews2.com/Depositphoto.

Ex-jogador de futebol, Luxemburgo foi apresentado ao Brasil como treinador com o trabalho desenvolvido no Bragantino, quando chegou ao título nacional da segunda divisão (1989) e ao primeiro lugar no Paulistão (1990). O interior de São Paulo tinha, como tem, ótimos técnicos, e no campeonato estadual a vitória veio sobre outro time do interior, o União São João, de Araras, dirigido por Nelsinho Baptista. Neste time começava a brilhar a estrela de Roberto Carlos, lateral-esquerdo como Vanderlei fora, mas, claro, com muito mais recursos técnicos. Nos anos seguintes, destacou-se ainda Oswaldo Alvarez, o Vadão, responsável pelo Carrossel Caipira do Mogi Mirim, em que despontava nada menos que o atacante Rivaldo.

Quem vê o Corinthians jogando hoje, talvez não tenha noção do quanto Luxemburgo foi decisivo para o moderno futebol brasileiro. Os muitos títulos conquistados não foram por acaso, mas fruto da capacidade de formar e liderar elencos fortes, e de montar times que defendiam e atacavam com igual qualidade e intensidade. Além disso, foi sempre alguém com enorme capacidade de entender o que se passava em uma partida de futebol e mudar rapidamente um esquema tático, fosse com substituições, fosse com os mesmos jogadores desempenhando outras funções.

Li na imprensa que quando a diretoria do Timão, perdidíssima, procurava treinador, os dirigentes do Palmeiras teriam falado muito bem de Luxemburgo. Não deixa de ser interessante – e bom – que os maiores rivais de São Paulo se ajudem em um momento difícil. De fato, o último bom trabalho de Luxa, apesar das ressalvas de parte da crônica esportiva, foi exatamente no Palestra, com o título paulista de 2020. No Parque Antártica que ele alcançou as maiores glórias da carreira, é certo, embora tenha chegado a dirigir a seleção brasileira e, para o pasmo de muitos, o poderoso Real Madrid.

Do banco do escrete, Vanderlei saiu sem muita glória. Apesar do título da Copa América de 1999, fracassou nos Jogos Olímpicos e foi enroscado na CPI do futebol, quando veio a público que seu nome começava com “v” e não com “w”, terminando com “i” e não com “y”, ou seja, não tinha tanto glamour quanto ele pretendia. Soube-se também que ele tinha três anos a mais do que declarava, denunciando-se que fora “gato” durante os anos de categorias de base, vividas no Botafogo e no Flamengo, mas também no selecionado sub-20, campeão, aliás, do prestigioso Torneio Internacional de Cannes, em 1973 e 1974. Neste último, ele já contava com 22 anos, e não com os 19 declarados.

Essas são apenas duas das peripécias, por assim dizer, que um dos treinadores mais cheio de maneirismos que o futebol brasileiro nos ofereceu. Vanderlei, como poucos, personifica a figura do malandro, com tudo o que ele traz na cultura brasileira. Gingando para um lado e para o outro, pode colocar um terno alinhado para orientar o time na beira do campo, ao mesmo tempo em que faz uma piada machista em uma entrevista coletiva, chiste seguido pelo riso exclusivamente dele; personagem liminar, caminha para os vestiários de forma elegante para ser ovacionado pela torcida, minutos antes de terminar uma final de campeonato, sempre que seu time está para ser vencedor, mas também é capaz de se defender obsessivamente, sorriso nervoso, dizendo que não está ultrapassado, que nada mudou no futebol, que segue muito atualizado etc.

Vanderlei Luxemburgo Corinthians
Luxembrugo dirige o Corinthians na partida contra o Fortaleza pelo Campeonato Brasileiro de 2023. Foto: Rodrigo Coca/Agência Corinthians.

Dia desses me lembrei que já na minha infância eu conhecera Vanderlei Luxemburgo, ou, pelo menos, sua esfinge. Ele compunha um time de futebol de botões de plástico, vermelhos, que representavam o Flamengo e no qual colávamos as carinhas dos jogadores. Lá estava ele com Jaime, Júnior, Merica, Zico, Luizinho Lemos e outros, numa das versões rubro-negras para o brinquedo de criança. Decifrar essa esfinge, hoje, talvez não seja tão difícil, já que se trata de alguém com algo muito nosso, brasileiro: o talento que encontra seu limite mais cedo do que poderia, já que sabota a si mesmo atuando pelo verso das coisas. Não, não é bonito. Como diz a canção, “Malandragem dá um tempo”. Por favor.

Ilha de Santa Catarina, maio de 2023.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Vanderlei malandro. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 21, 2023.
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