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Vida e morte varzeana

Enrico Spaggiari 30 de outubro de 2017

As perspectivas e experiências corporais dos futebolistas que se movimentam pelas situações urbanas não são muito diferentes das de outros atores sociais que trafegam pela permeabilidade da experiência citadina, vivenciam a cidade, intervêm e interagem com o espaço, ou seja, apropriam-se do urbano. Em deslocamento, articulam uma multiplicidade de contextos e relações vivenciadas entre campos de futebol e espaços esportivos, territorialidades continuamente atualizadas. Um olhar para o modo como a cidade é vivenciada e inventada em situações cotidianas nos bairros, ruas, espaços domésticos ou de trabalho, dentre outras, permite compreender a cidade do ponto de vista dos citadinos, aqueles que vivem, sentem e fazem a cidade. As principais mudanças no universo varzeano nas últimas décadas, quando pensadas em relação às dinâmicas históricas do futebol de várzea, permitem perceber um extenso conjunto de experiências cotidianas, práticas e relações políticas, como bem revela a recente realização de ciclos de eventos que tematizaram o fenômeno futebolístico em sua dimensão mais tradicional e popular.

O Seminário Futebol Amador em Debate, realizado nos dias 26 e 27 de outubro de 2017, pelo Centro de Memória do Esporte e do Lazer e a Diretoria de Eventos Esportivos e de Lazer da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer (SMEL) da Prefeitura de Belo Horizonte, teve como ponto de partida uma das maiores competições de futebol amador do país, a Copa Centenário de Futebol Amador Wadson Lima. Para além das comemorações dos 20 anos da Copa Centenário, o Seminário provou um amplo debate sobre o futebol varzeano, confrontando a memória e perspectivas do futebol amador em Belo Horizonte com outras experiências de cidades brasileiras do Sul, Sudeste e Nordeste. As pesquisas apresentadas pelos doutorandos Raphael Rajão Ribeiro e Felipe Vinícius de Paula Abrantes revelam como as intensas experiências em torno desse esporte permitem problematizar a própria cidade mineira e a relação das pessoas com ela. Um dos principais temas do evento colocou foi a discussão sobre a importância e desafios do futebol feminino amador, prática ainda pouco reconhecida e valorizada, mesmo em sua matriz espetacularizada, como revela a recente demissão da treinadora de futebol Emily Lima da Seleção Brasileira de Futebol Feminino.

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Jogo na Zona Leste de São Paulo. Foto: Cassimano.

O Museu do Futebol, localizado no Estádio do Pacaembu em São Paulo, tem realizado o Ciclo Histórias da Várzea: o futebol amador na cidade de São Paulo”, que além de abordar o panorama histórico do futebol na capital, tem colocado os próprios varzeanos, representantes de times e outros atores relacionados ao universo amador, descortinando a pluralidade de experiências, estratégias e intervenções relacionados a uma prática esportiva que se transformou não só no que se refere ao jogo, mas também no modo de se relacionar com uma tessitura citadina desenhada por campos de futebol e memórias.

Um dos encontros colocou em pauta o pioneiro estudo de tombamento do Parque do Povo na década de 1990, quando o amplo espaço de área verde no bairro Cidade Jardim, próximo à Marginal do Rio Pinheiros, zona sul de São Paulo, ainda abrigava oito campos, diversos clubes e milhares de praticantes. A patrimonialização da área e os lamentáveis desdobramentos desse processo, revertido frente aos inúmeros interesses imobiliários que alimentam as dinâmicas segregadoras observadas em toda a cidade, revelam-se atuais para pensar episódios recentes, principalmente o que tem envolvido os clubes e praticantes que utilizam diariamente o Complexo Esportivo de Lazer e Cidadania do Campo de Marte, na zona norte, cujos seis campos podem ser desativados nos próximos meses, em mais um exemplo de como os espaços da cidade são disputados e reinventados por aqueles que se apropriam dela.

Portanto, as dinâmicas do futebol aparecem atreladas à nossa história urbana, pautada por um processo acelerado de transformações, alto crescimento demográfico e desenvolvimento industrial. Frente ao processo de crescimento urbano, os campos de futebol foram (e são) decisivos na ampliação e delimitação das cidades brasileiras, cujos espaços ainda se transformam rapidamente, mas que permanecem assinalados pela segregação territorial, que gera e salienta desigualdades. A várzea não acabou, pois seu fim ou permanência não é determinado exclusivamente pela diminuição dos campos, extinção de clubes ou avigoramento de seus contrários/complementares (futsal, society), mas sim pelos modos de viver as mudanças no futebol e na cidade a cada final de semana de partidas, principalmente nas periferias das cidades brasileiras.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. Vida e morte varzeana. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 30, 2017.
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