Não sei o quanto é comum hoje em dia que os mais jovens considerem as histórias do esporte que praticam. Com tanta informação disponível na rede e, especialmente, com o desprezo pela memória que alimenta nosso presentismo compulsivo, talvez os atletas mirins e juvenis já não queiram escutar os veteranos. Atleta profissional na passagem da infância para a juventude e durante toda ela, vivi outra experiência em uma época rica em narrações. À beira das pistas de atletismo, ao final de treinos ou durante competições, colegas consagrados que admirávamos imantavam nossa atenção. Eles eram legitimados pelos feitos e viagens realizadas tanto quanto pela capacidade de dar forma épica para o que tinham experienciado ao longo da carreira. Uma das impressionantes histórias ouvidas naqueles anos foi a dos velocistas Rui (1951-2000) e Delmo da Silva (1954-2010).

Os irmãos tinham resultados extraclasse, Rui nas provas de 100 e 200, Delmo nos 400 metros rasos. De Milton Castro, finalista dos 4×100 metros nos Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980, e recordista sul-americano da mesma prova, ouvíamos que Rui era capaz de completar a prova mais rápida do atletismo não apenas em 10.2 segundos em pista não sintética, desempenho que repetira várias vezes, mas em dois décimos a mais correndo descalço ou então depois de uma partida de futebol. De Delmo, que fora o primeiro atleta brasileiro a correr sua prova em menos de 46 segundos (sendo que nenhum outro brasileiro, em sua época baixara dos 47), além de semifinalista nos Jogos de Montreal em uma das duas provas que consagraram o cubano Alberto Juantorena, campeão olímpico também dos 800m.

Sabíamos, ainda, que havia cada um deles composto um dos quartetos de revezamento da equipe das Américas na Primeira Copa do Mundo de Atletismo, em Stuttgart, conquistando, com cubanos e jamaicanos, as medalhas de bronze no 4×100 m e no 4×400 m. Para muitos, a curva em velocidade de Rui era a melhor do mundo, qualidade que o levou ao quinto lugar nos 200 metros rasos em Montreal, nas Olimpíadas de 1976. Antes de ouvir sobre os velocistas, eu lera sobre eles na Placar. Gostava de atletismo, que praticava aos poucos no colégio, assim como era fã de futebol. A leitura da revista me fizera conhecê-los, e lembro também das imagens televisivas dos feitos no torneio na capital do estado de Baden-Württemberg, na Alemanha. Mas, eu sabia também que ambos haviam tentado a sorte no futebol profissional, ainda que tivessem permanecido com o status de amadores.

Foto: skeeze/Pixabay.

Não fora sem surpresa que eu lera que os dois atletas, para os quais se antevia medalhas nas Olimpíadas de Moscou, em 1980, haviam jogado no Fortaleza Esporte Clube, emprestados pela equipe de origem, o Clube de Regatas Vasco da Gama, pelo qual, aliás, competiam nas pistas. Em partida contra o Ceará Sporting Club, no derby local, Rui “estourara” o tornozelo direito em uma bola dividida com Tiquinho, jogador adversário emprestado pelo Botafogo de Futebol e Regatas. Recuperado da lesão e já de volta ao Rio de Janeiro, trabalhou em um laboratório e passou a defender o time da empresa em campeonatos amadores. Algo semelhante aconteceu com Delmo que, além de veloz, dizem que era dotado de boa técnica para jogar no meio-de-campo. Já findavam os anos 1970 e as competições de atletismo passaram a ver os irmãos já sem o mesmo desempenho de outrora, eles que foram sendo paulatinamente superados por outros velocistas.

Não é tão comum que atletas de altíssimo nível se aventurem fora de suas modalidades de origem, sendo os casos mais famosos, em relação ao futebol, os que vêm do futsal. Em tempos em que havia menos rigidez na formação de jogadores, não eram raros, no entanto, que velocistas fossem chamados a tentar a sorte nas quatro linhas, geralmente em posições de ataque. É o que os veteranos nos diziam haver acontecido com eles mesmos. Com frequência e sem surpresas, eram fãs de futebol e guardavam o sonho da fama e do estrelato, além do retorno financeiro, que não tinham no atletismo, malgrado o excepcional desempenho que ostentavam. Visto como inimigo das outras modalidades por treinadores e dirigentes, fosse por causa da monocultura esportiva que nele se materializava e da abissal diferença de apoio privado e estatal, fosse porque os movimentos em campo não seriam compatíveis com a prática do atletismo, o futebol era quase um vilão a ser combatido. Esse era o discurso de quem dirigia, mas não o de muitos atletas que esperavam as férias ou às vezes nem isso para, longe dos olhares de censura, jogarem o jogo de todos.

Enquanto Rui e Delmo não alcançaram sucesso no futebol, e tampouco outros velocistas que, mesmo chamados, não chegaram a se aventurar, o primo do soccer nos Estados Unidos da América, o football, é um contumaz recrutador de destaques do atletismo. O caso recente mais emblemático deve ser o de Marquise Goodwin (1990-), atleta de salto em distância estadunidense nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, e medalha de prata nos Pan-americanos de Toronto, em 2015. Wide receiver e kick returner do San Francisco 49ers, depois de atuar pelos Buffalo Bills, ele segue uma longa tradição cujo ponto máximo provavelmente é de Bob Haynes (1942-2002), wide receiver que brilhou no Dallas Cowboys. Estamos falando do campeão olímpico dos 100 metros rasos e do revezamento 4×100 metros, pelos Estados Unidos nas Olimpíadas de Tóquio, em 1964, e também o primeiro homem a correr sua prova principal em menos de 10 segundos, resultado que, pelo vento favorável superior ao permitido, uma vez, e por limites técnicos na cronometragem, em outra, não pôde ser homologado.

O atletismo é modalidade esportiva muito exigente, com sacrifícios diários que o culto à performance exige. Sua dimensão lúdica é restrita, a atuação geralmente individual. Para a força imaginária do futebol prevalecer, não é difícil, nele resta algo de contingência, solidariedade, jogo. Não seria verdade dizer que os praticantes de outras modalidades só o são porque o futebol não lhes abriu as portas que demandavam. Mas, tampouco seria inteiramente falso afirmá-lo.

Mülheim, Colônia, janeiro de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Velocistas famosos, futebolistas sem glória. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 4, 2019.
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