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Vídeo-árbitro, ou a gameficação do futebol

José Carlos Marques 15 de junho de 2017

No dia 7 de maio de 2017, o futebol brasileiro conheceu de forma pioneira a utilização do árbitro de vídeo no confronto entre Sport e Salgueiro, pelo primeiro jogo da final do Campeonato Pernambucano. Em campo, quem controlava o apito era José Woshington da Silva. Numa unidade móvel dentro do Estádio da Ilha do Retiro em Recife, estava outro árbitro, Péricles Bassols, acompanhado de representantes da Fifa e da CBF. Diante deles, sete câmeras exibiam lances da partida.

A experiência passaria quase que despercebida não fosse um lance já nos acréscimos do encontro, quando o placar marcava 1 x 0 para o Sport e José Woshington da Silva anotou um pênalti a favor do Salgueiro. Pouco convicto da marcação, Woshington consultou Péricles Bassols e inclusive foi rever a jogada num monitor à beira do gramado. Após longos seis minutos, o pênalti foi confirmado, originando o gol de empate do Salgueiro e definindo o resultado final do jogo. Para o Sport, porém, o árbitro errou duas vezes: vendo o lance dentro de campo e revendo o lance na televisão.

07/05/2017- FINAL CAMPEONATO PERNAMBUCANO 2017: SPORT X SALGUEIRO - Foto: Williams Aguiar/Sport Club do Recife
Ao fundo o árbitro José Woshington da Silva acompanha lance da final do Campeonato Pernambucano de 2017 entre Sport e Salgueiro. Foto: Williams Aguiar/Sport Club do Recife.

O árbitro de vídeo (ou vídeo-árbitro, como o chamam em Portugal) foi pensado para dirimir dúvidas em caso de gols, pênaltis, cartões vermelhos e em possíveis erros na identificação de jogadores advertidos ou expulsos em lugar de outro. No futebol português, aliás, a novidade foi implantada oficialmente na final da Taça de Portugal, no último dia 28 de maio, quando o Benfica venceu o Vitória de Guimarães, por 2 x 1. Na ocasião, entretanto, não foi preciso recorrer às imagens de vídeo. Em contrapartida, a Federação Portuguesa de Futebol já anunciou que todas as 306 partidas do Campeonato Português da próxima temporada vão contar com o vídeo-árbitro. O custo médio da iniciativa será de dois mil euros por partida.

A iniciativa faz eco ao anúncio feito pelo presidente da FIFA, Gianni Infantino, que recentemente confirmou o uso do árbitro de vídeo na Copa do Mundo da Rússia em 2018. A própria Fifa já havia colocado a experiência para funcionar no Mundial de Clubes de 2016, mas o resultado não foi dos mais positivos: na semifinal entre Kashima Antlers e Atlético Nacional, a arbitragem interrompeu a partida para anotar um pênalti sobre um jogador que estava em impedimento; na final, entre o mesmo Kashima e o Real Madrid, Sergio Ramos poderia ter sido expulso caso a comunicação entre árbitro central e árbitro de vídeo tivesse funcionado a contento.

À primeira vista, a novidade é bem-vinda se puder ser efetiva na correção de erros crassos da arbitragem. No entanto, é preciso fazermos algumas ponderações para se evitar o que temos visto até agora. A primeira delas tem a ver com o tempo que se leva para se referendar uma decisão tomada dentro de campo. Não é admissível que um árbitro de jogo ou de vídeo leve seis minutos para decidir se houve pênalti ou não. O problema é que muitas das regras de futebol têm uma margem grande de subjetividade e de interpretação, e não será incomum se árbitros de campo e de vídeo tiverem opiniões distintas sobre lances ocorridos no gramado.

Em segundo lugar, dirigentes, árbitros e membros da imprensa não percebem que a sintaxe de um jogo de futebol é a sintaxe da continuidade, não a da interrupção. Ao contrário das modalidades normalmente disputadas indoor (como por exemplo o futsal, o basquete, o vôlei, que têm interrupções constantes e contínuas), o futebol de campo não tem o cronômetro parado quando o jogo é interrompido. Além do mais, o futebol de campo é aeróbico por excelência, enquanto que as modalidades indoor são mais anaeróbicas. Prova disso é o fato de que atletas até conseguem disputar duas partidas de vôlei ou basquete com intervalos de um dia, algo improvável no futebol de campo.

Em terceiro lugar, é preciso levar em conta que o futebol não é popular por força do uso de aparatos tecnológicos ou por força das polêmicas que envolvem o trabalho da arbitragem. O futebol é popular justamente pelo fato de suas regras serem universais e por terem uma razoável compreensão de sua aplicação. Nesse sentido, qualquer mudança na aplicação das regras deveria ser universal, isto é, deveria valer e ser aplicada não apenas em jogos decisivos, em Copas do Mundo ou em um campeonato da primeira divisão, mas sim em todos os jogos ao redor do planeta, desde a quarta divisão do futebol brasileiro até os campeonatos distritais de Portugal, país que inova ao implantar o vídeo-árbitro em todos os jogos do próximo campeonato nacional da primeira divisão.

Por último, cabe referir o quanto há de fetiche, especialmente por parte da imprensa, na referência que se faz ao uso de engenhocas eletrônicas para auxiliar as tomadas de decisão em jogos de futebol. Emissoras de televisão adoram propagandear e difundir o uso da tecnologia em transmissões esportivas, e as experiências atuais mostram-se sempre encantadoras em torno da sedução pela tecnologia. Para a indústria eletrônica, então, nada melhor do que alimentar essa sedução, já que diversos fabricantes terão à disposição mais um nicho de mercado bastante promissor.

07/05/2017- FINAL CAMPEONATO PERNAMBUCANO 2017: SPORT X SALGUEIRO - Foto: Williams Aguiar/Sport Club do Recife
O goleiro Magrão do Sport reclama de lance dentro da área. Foto: Williams Aguiar/Sport Club do Recife.

Em torno do árbitro de vídeo, podemos perceber o quanto o mundo virtual e o mundo dos games vem provocando impactos no mundo do futebol. Recorrer às imagens de vídeo para arbitrar lances polêmicos é provocar uma total gameficação do ludopédio, como se estivéssemos brincando de Fifa Soccer ou de Pro Evolution Soccer. De todo modo, os problemas e os erros de arbitragem não serão resolvidos facilmente, mesmo com o vídeo-árbitro. A medida será bastante útil para a identificação correta dos jogadores que devem ser punidos disciplinarmente, evitando-se assim a amostragem de cartões para o jogador errado. Mas as polêmicas em torno da marcação de pênaltis permanecerão. E até mesmo as decisões em torno de a bola ter transposto ou não a linha de gol deverão permanecer confusas.

Detalhe: os seis intermináveis minutos que o árbitro Woshington da Silva levou para confirmar a marcação do pênalti a favor do Salgueiro parece ter contaminado o próprio Campeonato Pernambucano, que após mais de um mês desde o primeiro jogo da decisão ainda não conhecia o campeão estadual. Depois da partida do dia 7 de maio, o Sport ainda continuou disputando a Copa do Nordeste, a Copa do Brasil e a Sul-Americana, o que atrasou o agendamento do jogo de volta. Vejamos como a experiência terá lugar caso seja utilizada novamente no estádio do Salgueiro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Carlos Marques

José Carlos Marques é Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e integra o Departamento de Ciências Humanas da mesma instituição. É Livre-Docente em Comunicação e Esporte pela Unesp, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciou-se em Letras (Português Francês) pela Universidade de São Paulo. É autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (São Paulo, Educ/Fapesp, 2000) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas).

Como citar

MARQUES, José Carlos. Vídeo-árbitro, ou a gameficação do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 15, 2017.
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